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mas, afinal, o que é psicopatia?

o estereótipo de que toda desordem mental possui um perigo latente aproximou a psiquiatria da justiça criminal, em busca de saber em quais condições pode-se responsabilizar alguém por seus atos e se há mesmo estados que, por si só, conduzem à conduta criminosa. 

a "psicopatia", conceito que mais responde a essa demanda atualmente, surgiu dentro do âmbito forense e da medicina legal para se referir a criminosos que não apresentavam manifestações creditadas como insanidade "típica", isto é, marcada por sintomas psicóticos como delírios e alucinações, em que há prejuízo óbvio à racionalidade.

acontece que o conceito apresenta uma série de problemas: 

a) é popularmente associado à condenação moral e à criminalidade, já que se fez conhecido através das caricaturas de indivíduos cruéis, manipuladores, insensíveis e sem remorso, e até mesmo assassinos em série;

b) possui uma grande variedade de termos tomados como sinônimos, dentre os quais se destacam sociopatia, transtorno de personalidade dissocial e transtorno de personalidade antissocial;

c) de acordo com a natureza etimológica da palavra, "psicopatia" indicaria qualquer patologia que afeta a dimensão mental;

d) por fim, psicopatia não é mais um diagnóstico clínico reconhecido em manuais como o DSM ou a CID, nos quais usa-se "personalidade antissocial" e "personalidade dissocial". 

mas qual a diferença?

tanto “sociopatia” como “anti-social” querem dizer que as desordens presentes nas condições são dirigidas contra a sociedade e suas regras e convenções; o comportamento anti-social é, antes de tudo, um padrão de infração à moralidade subjacente -- o que pode ou não incluir infração das leis e crimes, mas também abrange comportamentos cotidianos de exploração nas relações interpessoais e desrespeito aos direitos e sentimentos alheios. sendo assim, a criminalidade não é um componente essencial da definição da psicopatia, mas sim o comportamento anti-social. 

além disso, comportamento antissocial não é o mesmo que personalidade antissocial; comportamento antissocial ocorre com frequência em outros transtornos (de personalidade, por controle de impulsos, de conduta etc) e condições diversas, já o transtorno de personalidade antissocial é um diagnóstico presente no DSM criado especificamente para substituir a classificação em personalidade psicopática. 

explicando melhor:

os DSM I (1952) e II (1968) falavam de psicopatia em termos de distúrbio de personalidade psicopática; a mudança ocorre no DSM-III (1980) com o Transtorno Anti-Social de Personalidade, que descreve um indivíduo com um padrão crônico de infrações legais e comportamentos anti-sociais iniciados desde a infância. ou seja, a ideia de psicopatia se desloca de fatores constitucionais de personalidade para a prática de atos criminosos, de modo que o diagnóstico pode ser aplicado à maior parte dos autores de crimes encarcerados, refletindo a tendência de patologização de condutas criminais.

de acordo com o DSM-V (2013), o transtorno de personalidade antissocial é 

A. Um padrão difuso de desconsideração e violação dos direitos das outras pessoas que ocorre desde os 15 anos de idade, conforme indicado por três (ou mais) dos seguintes:

1. Fracasso em ajustar-se às normas sociais relativas a comportamentos legais, conforme indicado pela repetição de atos que constituem motivos de detenção.

2. Tendência à falsidade, conforme indicado por mentiras repetidas, uso de nomes falsos ou de trapaça para ganho ou prazer pessoal.

3. Impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro.

4. Irritabilidade e agressividade, conforme indicado por repetidas lutas corporais ou agressões físicas.

5. Descaso pela segurança de si ou de outros.

6. Irresponsabilidade reiterada, conforme indicado por falha repetida em manter uma conduta consistente no trabalho ou honrar obrigações financeiras.

7. Ausência de remorso, conforme indicado pela indiferença ou racionalização em relação a ter ferido, maltratado ou roubado outras pessoas.

B. O indivíduo tem no mínimo 18 anos de idade.

C. Há evidências de transtorno da conduta com surgimento anterior aos 15 anos de idade.

D. A ocorrência de comportamento antissocial não se dá exclusivamente durante o curso de esquizofrenia ou transtorno bipolar.

embora o DSM considere TPA e psicopatia sinônimos, isso não corresponde à realidade; indivíduos psicopatas, na verdade, formam um subgrupo especial do transtorno de personalidade anti-social -- e apenas 15% a 30% das pessoas com TPA podem ser considerados também com psicopatia.

a concepção mais assertiva de psicopatia atualmente é atribuída a Robert Hare, criador do principal instrumento de avaliação de psicopatia, o Psychopathy Checklist-Revised (PCL-R, 1991); opondo-se ao DSM, Hare classifica a psicopatia de acordo com quatro dimensões: interpessoal, afetiva, estilo de vida e comportamento anti-social. além disso, para Hare, a psicopatia não é um diagnóstico fechado, mas uma questão de gradação, apresentando-se através de traços acentuados ou atenuados de personalidade psicopática, em estatísticas com índices que variam entre 1% (mulheres) a 3% (homens) da população geral.

o aspecto interpessoal envolve superficialidade e manipulação das relações, auto-estima grandiosa e mentira patológica; a dimensão afetiva indica falta de remorso, afeto superficial, falta de empatia e não-aceitação de responsabilidade pelos próprios atos; o estilo de vida está relacionado à busca de sensação, impulsividade, irresponsabilidade, parasitismo em relação aos outros e falta de objetivos realistas; a dimensão anti-social refere-se a pouco controle do comportamento, problemas de comportamento precoces, delinquência na juventude, versatilidade criminal e revogação de liberdade condicional.

a pontuação do PCL-R é baseada em dois fatores: o Fator 1 engloba traços afetivo-interpessoais (centrais da psicopatia), caracterizados por desapego e distanciamento emocional, e o Fator 2 refere-se ao comportamento anti-social concreto.

Os 20 elementos que compõem a escala são: 

1) loquacidade/charme superficial; 

2) auto-estima inflada; 

3) necessidade de estimulação/tendência ao tédio; 

4) mentira patológica; 

5) controle/manipulação; 

6) falta de remorso ou culpa; 

7) afeto superficial; 

8) insensibilidade/falta de empatia; 

9) estilo de vida parasitário; 

10) frágil controle comportamental; 

11) comportamento sexual promíscuo; 

12) problemas comportamentais precoces; 

13) falta de metas realísticas em longo prazo; 

14) impulsividade;

15) irresponsabilidade; 

16) falha em assumir responsabilidade; 

17) muitos relacionamentos conjugais de curta duração; 

18) delinquência juvenil; 

19) revogação de liberdade condicional;

20) versatilidade criminal.

assim, a psicopatia é entendida como um construto de distintos traços da personalidade que afetam as emoções e a interpessoalidade, gerando em diferentes graus comportamentos antissociais. perturbações e transtornos de personalidade não são considerados doenças, mas sim anormalidades do desenvolvimento psicológico que prejudicam a integração psicológica a longo prazo e resultam em padrões inflexíveis e mal-ajustados quanto à percepção e à relação da pessoa consigo mesma, com os outros e com o ambiente. isso significa que indivíduos com psicopatia apresentam lógicas distintas, sistemas de raciocínio distintos, códigos distintos, valores diferentes e necessidades diversas das apresentadas pelas demais pessoas.

dúvidas comuns:

1) uma pessoa com psicopatia que comete um crime sabe o que faz ou foi controlada pela condição?

nesses quadros os principais prejuízos incidem sobre a capacidade afetiva e a consciência moral, manifestando-se através de apatia e não-incorporação de valores. 

a priori, não há comprometimento ou deficiência cognitiva, e estão preservadas as capacidades volitivas e de discernimento. 

a psicopatia não costuma apresentar sintomas psicóticos, em que o sujeito delira e alucina, perdendo a capacidade racional e fugindo à lógica e comportamentos comuns.

entretanto é preciso atentar para a realidade de que essa cognição pode ser coagida por várias características inerentes à condição, o que resulta em grande vulnerabilidade a cometer transgressões, já que em geral são pessoas que não conseguem assumir a perspectiva do outro e se preocupar pelo sofrimento dele, não apresentam medo ou ansiedade quanto às consequências negativas geradas por comportamentos imorais (havendo até mesmo redução das respostas fisiológicas diante de estímulos de ameaça), possuem déficits na atenção quanto a sinais de sofrimento alheio ou ameaça de punição, têm dificuldade de aprender com a experiência e alterar comportamentos prejudiciais, e apresentam maior sensibilidade à recompensas.

ainda assim acredita-se que eles possuem a habilidade de discriminar certo e errado -- isso implica que, embora a impulsividade seja inerente ao quadro, os comportamentos agressivos são considerados intencionais. 

acontece que os julgamentos morais são feitos de forma instrumental, pois possuem entendimento intelectual do que é ou não aceitável de acordo com padrões e expectativas sociais, mas não o arcabouço necessário às decisões morais genuínas, tais como empatia, compaixão, respeito, culpa, vergonha, que possibilitam atribuição de valor moral pelo próprio indivíduo.

o padrão apropriado de moralidade envolve ser apto a reconhecer que as reivindicações de outras pessoas intensificam suas próprias razões morais, ou seja, há casos em que apenas saber que certos atos envolvem uma transgressão moral não é suficiente, sendo preciso também identificar as próprias razões morais a favor ou contra uma determinada ação.

mas escolhas morais variam em necessidade maior ou menor de envolvimento emocional; não matar, por exemplo, é um imperativo social generalizado, e ainda que você se sinta compelido a matar, o entendimento de que não deveria fazê-lo permanece. 

sendo assim, na maioria das situações cotidianas, eles sabem e podem diferenciar o certo e o errado -- embora isso aconteça com base nas convenções e costumes sociais estabelecidos (razões externas e alheias), já que internamente esse sentido não existe.

de todo modo, como a psicopatia é uma questão de grau (mais ou menos traços de personalidade), é preciso avaliar caso a caso para saber o nível de comprometimento.

2) pessoas com psicopatia não sentem nada?

a capacidade emocional e afetiva é severamente prejudicada, mas o modo como isso se expressa no cotidiano difere dos estereótipos. 

embora não sintam genuinamente, com frequência as próprias pessoas não são completamente conscientes disso ou não é algo muito relatável entre as pessoas do convívio, embora a socialização tenda a ser problemática devido ao comportamento. 

mas pessoas com psicopatia costumam manifestar o que acham que são emoções ou as aparências corretas de uma emoção, e é assim que trabalham, casam, têm filhos etc.

3) toda pessoa com psicopatia comete crimes? todo criminoso brutal, como serial killers, têm psicopatia?

primeiro, é preciso entender que a violência e o crime não podem ser reduzidos a variáveis biológicas ou psiquiátricas, tais como uma anomalia cerebral ou um diagnóstico.

as caricaturas hollyoodianas e o sensacionalismo acerca dos serial killers americanos são responsáveis por fomentar essa ligação. 

a tendência a patologizar a conduta criminosa perdura também porque conforta pensar que um estuprador ou um assassino possuem algo que os diferencia e afasta das "pessoas normais", havendo algo (como loucura) para justificar. 

é preciso ter em vista que entre existem centenas de milhões de pessoas com psicopatia e esses indivíduos não são criminosos natos: a maioria está entre nós e até criam conflitos, mas não chegam a ultrapassar o limite legal. 

entretanto, em pesquisa conduzida por Stone (2001), 86,5% dos serial killers preenchiam os critérios de Hare para psicopatia.

a grande maioria da população carcerária seria de fato classificada com TPA -- isso porque os critérios diagnósticos foram organizados de modo a atender essa demanda. a ligação entre pessoas com psicopatia e criminosos brutais ocorrem também porque, na maioria das vezes, essa população só é percebida quando se encontram no cenário forense. na verdade, a incidência dos transtornos na população carcerária não é unânime em todos os países, mas pesquisas norte-americanas apontam predominância de traços psicopáticos, traços sádicos, transtornos esquizoide, narcisista e borderline.

resumindo: nem todos os agressores violentos possuem psicopatia e nem todos os que possuem psicopatia se tornam agressores violentos -- embora alguma parte desses agressores possam possuir traços consistentes com a psicopatia. no entanto, a psicopatia por si só não explica as motivações de um agressor.

4) mulheres também podem apresentar psicopatia?

embora haja mais homens com psicopatia que mulheres, elas também formam uma população relevante: as estatísticas apontam que cerca de 1 a cada 5 ou 6 pessoas com psicopatia são mulheres, mas é difícil estimar com precisão, pois a literatura descreve os quadros de psicopatia com base masculina, enquanto que mulheres expressam a condição de forma diferente, sendo por isso menos percebidas e identificadas. 

a psicopatia feminina é mais sutil e menos declaradamente anti-social: as pontuações femininas no PCL-R são menores no fator "insensibilidade" porque costumam exibir menos violência e agressão em seus comportamentos, o que não significa que não sejam tão insensíveis quanto homens, mas que essa insensibilidade e essa apatia são mais disfarçadas.

5) crianças podem apresentar psicopatia?

não!, crianças não podem ser classificadas com psicopatia e nem mesmo com transtorno de personalidade antissocial, embora possam apresentar comportamentos antissociais

crianças e adolescentes podem ser agressivos, violentos e infratores por várias outras razões, tais como resposta à violência doméstica, abandono e negligência, incentivo cultural ou outros transtornos subjacentes, como de conduta.

diagnósticos de psicopatia e TPA só podem ser feitos após os 18 anos. 

dependendo do nível do transtorno, elas manifestam sinais precoces (como desapego e dissimulação), mas crianças e adolescentes jovens são demasiado proteiformes para se atribuir classificações rígidas às suas personalidades.


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