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O eu dividido (Laing, 1960) - parte I

O eu dividido: estudo existencial da sanidade e da loucura (1960) é uma tentativa de fuga da técnica estática da linguagem e da interpretação psiquiátrica da época. Sem aprofundar-se na literatura específica, utiliza-se da fenomenologia existencial de Sartre, Heidegger, Kierkegaard e outros, na busca por definir um lugar digno e pleno para a realização da (perda) de autonomia e do senso de realidade dos chamados esquizóides e esquizofrênicos.
Faz-se ressalvas quanto a terminologias: aqui, paciente “esquizoide” tem sentido de um esquizofrênico em potencial que ainda não manifestou psicose aguda (“ruptura entre o relacionamento consigo mesmo e com o mundo”); “esquizofrênico” refere-se ao indivíduo em crise, e “psicopata” é tomado como sinônimo da pessoa social e medicamente considerada insana.
1. Fundamentos existenciais-fenomenológicos para uma ciência das pessoas 

Laing procura, a partir da abordagem existencialista e tomando de empréstimo os avanços psicanalíticos, romper com o diálogo psiquiátrico de cisão verbal e conceitual que isola e circunscreve a vida da pessoa a uma entidade clínica, abstraindo-a, assim, de seu relacionamento com o outro no mundo. Para tal, admite que toda visão do outro é intencional, sendo possível conceber o ser humano tanto como pessoa quanto como um organismo (complexo de coisas “-its”) - e a tradição clínica de então parecia tender para essa segunda concepção, de “analogia biológica” (MacMurray, 1957). Entretanto, Laing garante que a objetividade científica não necessariamente precisa conduzir à despersonalização do paciente.

O relacionamento com o paciente como pessoa ou objeto

A tarefa primordial da fenomenologia-existencial consiste em articular o que é o “mundo” do outro e a maneira de nele se encontrar. Partindo disso, recorremos à ideia de alteridade no âmbito psiquiátrico, ou seja, o ato de contemplar o paciente para além de um objeto em nosso mundo ou restrito ao sistema total de nossa própria escala de referências. O indivíduo saudável deve ser, ao mesmo tempo, independente de seus semelhantes e com eles relacionado: o relacionamento pessoal só pode existir entre seres separados, mas não isolados.

2. Fundamentos existenciais-psicológicos para compreensão da psicose 

Para o jargão psiquiátrico da década de 1960, a psicose consistia numa falha no ajuste social ou biológico, numa inadaptação de determinada espécie particularmente radical, com perda de contato com a realidade e da possibilidade de insight. Laing chama atenção para o reducionismo da doença aos sintomas psicóticos, que permite que apenas essas tais mentes sejam consideradas problemáticas e/ou perigosas, quando na verdade inúmeras mentes taxadas de “saudáveis” também podem ser radicalmente doentias, embora não em tal sentido médico.

“Os textos-padrão convencionais contêm descrições do comportamento de pessoas num campo behavioral que inclui o psiquiatra. O comportamento do paciente é, até certo ponto, uma função do comportamento do psiquiatra no mesmo campo behavioral. O paciente padrão da psiquiatria é uma função do psiquiatra padrão e do manicômio padrão”. Em tal excerto, o psiquiatra aponta para a já mencionada ausência de alteridade plena, solidificada pelo conforto hierárquico e higienizado do consultório: o paciente é visto apenas do ponto de vista clínico e isolado de suas demais realidades consigo e com os outros, sendo transmutado numa amálgama de sinais ou sintomas mecânicos e deterministas. O indivíduo supostamente adoentado torna-se, então, uma expressão pouco ambulante dos preconceitos médicos.

Por vezes, os estados psicóticos do paciente são rotulados como “inacessibilidade” do mesmo, justamente porque existe um esforço de definir a psicose e criar, a partir disso, expectativas práticas de como aniquilá-la, dissociando-a da experiência extrema de ruptura do senso de humanidade que é; mas afinal, quando se declara que um paciente em crise está “inacessível”, o que seria tido como uma “informação útil” dada por ele? Não existe uma dedicação em entender como os estados se expressam singularmente, concedendo, assim, unicidade ao paciente.

A interpretação como função do relacionamento com o paciente 

confinamento objetivo do psiquiatra ao comportamento observável do paciente 

Fica entendido, então, que limitar-se a ver os “sintomas” de doenças não é ver com neutralidade. 

Dilthey embasa tal raciocínio com sua teoria da interpretação ou decifração da fala e das ações psicóticas “hieroglíficas”, remetendo à necessidade clínica de interação holística com outras áreas, abordando o texto do paciente a partir de uma análise formal em termos de estrutura e estilo, traços linguísticos e idiossincrasias características de sintaxe, além do conhecimento do nexo sócio-histórico das condições das quais o mesmo emerge, sem deixar de lado as hipóteses dinâmico-genéticas - na intenção, assim, de ampliar a análise formal e estática dos “sintomas” clínicos isolados para compreender seus lugares na vida da pessoa. compreensão do texto só é possível no exercício da empatia e do relacionamento entre o autor e o intérprete.

“Explicamos por meio de processos puramente intelectuais, mas entendemos por meio da cooperação de todas as forças da mente na compreensão. Ao entender, partimos da conexão com o todo vivo, a fim de tornar o passado compreensível nesses termos”, diz Dilthey.

As ações do paciente não podem ser consideradas unicamente como sinais de uma doença, sob o risco de impor nossas categorias de pensamento e tentar explicar seu presente como resultado mecânico de um passado imutável. Dessa forma, é comum que exista o conhecimento dos sintomas e expressões da condição de esquizofrenia, mas não do indivíduo esquizofrênico: “os dados são todos maneiras de não compreendê-lo”.

Laing afirma que “o esquizofrênico precisa ser conhecido sem ser destruído”; isso significa que é necessário valer-se de noções ampliadas de saúde e doença, como fenômenos multideterminados e não circunscritos a status, à fisiologia ou tratamentos diretivos; a sanidade ou a psicose devem ser classificadas pelo grau de conjunção ou disjunção entre duas pessoas, pois se trata, antes de um aglomerado de sintomas desconexos, de uma incongruidade entre eu e meu próximo.

O entendimento, assim como o tratamento, obrigam a compreensão e o contato com o desespero típico do estado do paciente.

3. Insegurança ontológica 

O termo “ontologia”, aqui, é definido como melhor derivado adverbial ou adjetival de “ser”.

No prosseguimento do capítulo, Laing distingue a segurança primária ontológica de seu oposto - a insegurança primária ontológica, presente no cerne da subjetividade dos mentalmente adoecidos.

A segurança define-se como um firme senso da própria realidade e da própria identidade, assim como a dos outros. Essa sensação própria de ser uma entidade real e biologicamente viável é a certeza da qual dependem todas as outras certezas. Assim, a insegurança ontológica cria um indivíduo precariamente diferenciado do restante do mundo, de modo que sua identidade e autonomia estão sempre postas em dúvida, faltando-lhe a experiência de sua própria continuidade temporal, de seu senso dominante de consistência ou de coesão pessoal. Quaisquer circunstâncias comuns da vida se revelam terrivelmente ameaçadoras; nesse ínterim, a pessoa empreende uma busca por meios para tentar ser real, já que o mundo de sua experiência não é mais partilhado com os outros.

São então delimitadas três formas de ansiedade na insegurança ontológica:

A) absorção: caracteriza um comportamento matriz em que as atividades não se destinam à gratificação, mas sim à preservação da existência; na experiência psiquiátrica, “é muito fácil evocar ‘sinais’ [de psicose] numa pessoa cujo nível de segurança básica seja baixo a ponto de praticamente qualquer relacionamento com outra pessoa, por mais tênue ou aparentemente ‘inócuo’, ameaçar dominá-lo”. Assim, busca-se o deslizar do foco para a realização dessa ansiedade, em que toda e qualquer relação ameaça o indivíduo com a perda da identidade: o mesmo teme o relacionamento com qualquer pessoa e até consigo mesmo, tornando-se ameaças mesmo as possibilidades de ser compreendido, incluído, amado ou visto. Na absorção, a principal manobra para preservar a identidade é o isolamento; entretanto, orienta-se numa antítese entre a completa perda do próprio ser pela absorção na outra pessoa (engulfment) e a completa solidão (isolamento).

“O amor do outro é, portanto, mais temido que seu ódio, ou antes, todo amor é sentido como uma versão do ódio”.

B) implosão: termo derivado da “invasão da realidade”, de Winnicott; o indivíduo é, ele próprio, um vazio/vácuo/nada, e portanto qualquer contato com a realidade é uma ameaça ao seu status negativo.

C) petrificação e despersonalização: a petrificação pode ser definida como uma forma de terror - o temor da possibilidade de ser transformado em algo sem subjetividade, através do ato pelo qual se nega a autonomia do outro, a Despersonalização. É importante frisar que, nessa ansiedade, as pessoas não apenas temem ser e sentem-se despersonalizadas, como também despersonalizam os outros.  Também exigem constante confirmação por parte dos demais de que possuem sua própria existência como pessoa. A despersonalização empreendida a partir do temor da petrificação ocorre na possibilidade de conceber o outro como livre agente, pois assim há o perigo de sentir a si mesmo apenas como objeto da experiência desse indivíduo, e ter esvaída de si sua própria subjetividade. Num primeiro momento, a atitude parece contraditória, mas é preciso ter em mente que ao destruir, aos próprios olhos, o outro como pessoa, rouba desse outro o poder de aniquilá-lo.

Em determinado ponto, os perigos mais temidos podem ser conjurados para adiar sua ocorrência na vida real: dessa forma, renunciar à própria autonomia pode tornar-se o meio de secretamente salvaguardá-la. A antítese mencionada anteriormente entre a absorção no outro e o completo isolamento é novamente retomada aqui, através do fracasso no senso de autonomia; trata-se de uma ligação que transgride as possibilidades de relacionamento, já que desenvolve-se uma posição de dependência ontológica do outro, ou seja, oscila-se perpetuamente entre os extremos de isolamento e dependência.

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