O modelo biopsicossocial de Engel (1977), bem como suas evidências na Psiconeuroimunologia, evidenciam que o adoecimento humano é, antes de tudo, uma forma de expressão particular, caracterizada pela inter-retro-reação das dimensões celulares, teciduais, orgânicas, assim como interpessoais, ambientais e históricas, concebendo o sujeito de forma holística.
O objetivo terapêutico da medicina não deve mais ser restituir a “normalidade” anatomofisiológica do corpo, e sim resgatar a autonomia comprometida, voltando-se assim para a dialética da prevenção de doenças e da promoção da saúde.
Na atualidade, o modelo de Engel encontra possibilidade principalmente na clínica, cuja característica fundamental é o foco na humanização, onde a "observação (visão externa), introspecção (visão interna), e o diálogo (entrevista) são a base da tríade metodológica para o estudo”, e no modelo de Medicina Integrada, cuja função é promover a integralidade (inclusão de diferentes facetas da pessoa e do processo do adoecer)
e a integração (a articulação de diferentes formas assistenciais do sistema de saúde).
Apesar dos esforços dessas novas concepções do processo saúde-doença (que dá seus primeiros passos com a psicanálise até ser universalmente adotada pela OMS em 1948, encadeando diversas reações de questionamento profissionais nas quais Engel está incluído), o modelo biomédico, como o próprio Engel afirma, permanece como um “imperativo cultural”, semelhante a um dogma:
“The biomedical model has thus become a cultural imperative, its limitations easily overlooked. In brief, it has now acquired the status of dogma. In science, a model is revised or abandoned when it
fails to account adequately for all the data. A dogma, on the other hand, requires that discrepant data be forced to fit the model or be excluded”.
Para o modelo biopsicosocial, o todo é mais do que a soma das partes, e se o indivíduo está doente, deve-se buscar compreender não apenas porquê doente, mas também de que maneira doente.
1. O Modelo Biomédico
Descartes (1596–1650), em seu paradigma cartesiano, defende o recorte da realidade em suas partes constituintes, retirando o fenômeno de seu ecossistema para analisá-lo de forma isolada e em si mesmo. Assim se constitui a medicina anatomoclínica, ainda nos séculos XVI e XVII, necessariamente estabelecendo dualidades como mente x corpo, razão x emoção, mundo material x mundo espiritual, ser humano x mundo,
natureza x cultura que perduram mesmo hoje na prática médica.
Assim como o universo nas teorias mecanicistas, também o homem é tomado como máquina, e a doença, como um comprometimento específico pontual dessa maquinaria.
o modelo biomédico alcança seu ápice no século XIX e pensa o conceito de doença de forma emergencial (Pratta & Santos, 2009), caracterizado pela explicação unicausal da doença, fragmentação do indivíduo e especialização dos cuidados. Orienta-se exclusivamente pela sintomatologia - que, ao focar na enfermidade esquece o indivíduo que sofre - e técnica diagnóstica, de tratamento unidimensional e abordagem fisiopatológica. Na revolução tecnológica, as doenças passam a ser descritas de maneiras cada vez mais microscópicas
e moleculares, de modo que o modelo biomédico torna-se, então, biotecnológico.
O homem assume uma posição de mero informante daquilo que, supostamente, acontece e se origina no seu corpo.
2. O Modelo Biopsicossocial
Em The need for a new medical
model: a challenge for biomedicine (1977), George L. Engel, psiquiatra americano, alega que o modelo biomédico se mostra insuficiente frente à complexa crise civilizatória que também se refletia na saúde; assim, elabora o modelo biopsicossocial, que concebe a doença como um resultado da interação de mecanismos celulares, teciduais, organísmicos, interpessoais e ambientais (Fava & Sonino, 2008) e argumenta que a relação saúde-doença não se trata de uma dicotomia, mas sim de um processo sem ponto fixo.
Tal modelo tem como uma de suas bases a teoria dos sistemas gerais, de Von Bertalanffy (1952), na qual era reconhecida a mútua e diversa influência entre os diferentes níveis de organização - moléculas, células, órgãos, organismo, a pessoa, a família, a sociedade e a biosfera -, em que a alteração de um dos fatores comprometeria os outros e assim sucessivamente.
Assim, embora a doença possua sua dimensão biológica e quase não manipulável, suas dimensões psicológicas e sociais são manipuláveis - chamadas de Determinantes Sociais da Saúde (DSS).
“[...] os DSS são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população” (Buss & Filho, 2007).
Os DSS consistem naquilo que pode ser moldado ambientalmente para intervir na enfermidade, e contempla desde políticas públicas (como o acesso aos serviços de saúde) quanto a hábitos particulares como uma rotina de sono e exercícios físicos equilibrada, boa alimentação e relações interpessoais estáveis.
Assim como introduz a psicanálise e comprova-se por diversas teorias neuropsicológicas posteriores, o bem-estar psicológico desempenha papel protetor ao organismo, e as perturbações afetivas e o comportamento em relação à doença podem afetar o curso e a resposta terapêutica à mesma; portanto, os fatores psicossociais podem atuar facilitando, mantendo ou modificando o curso da enfermidade, embora suas influências variem de doença para doença, de pessoa para pessoa, e até mesmo para a mesma pessoa, de acordo com o momento. O modelo de Engel permite explicar porquê uma mesma enfermidade se manifesta de maneiras distintas em pessoas e momentos diferentes e porquê as intervenções terapêuticas devem atentar para essa particularidade. Assim, Engel legitima as várias nuances do sofrimento individual.
“Na resposta a um estímulo ou evento estressor estão envolvidas as características do estímulo, a codificação simbólica e cognitiva que determinam as emoções da pessoa. Também fazem
parte da resposta a estrutura social, (suporte, rede, etc.) e o estado de funcionamento do próprio organismo”.
3. Psiconeuroimunologia
Em meados da década de 1970, o psicólogo Robert Ader e o imunologista Nicholas Cohen da Universidade de Rochester, cunharam o termo “Psiconeuroimunologia”, por meio de uma experiência com ratos. Usando uma combinação de água com sacarina (estímulo condicionado) e a droga Cytoxan, que induz à supressão do sistema imunológico e produz incondicionalmente náuseas e aversão
ao sabor. Após a morte de alguns ratos, os pesquisadores descobriram que um sinal emitido pelo sistema nervoso (paladar) afetava a função imunológica.
Assim, foi possível depreender a existência de interações entre o comportamento humano e os sistemas nervoso, endócrino e imunológico, bem como as relações entre os processos mentais e a saúde.
Exemplo (Anderson & Rodrigues, 2016): nas doenças cardiovasculares, o tipo de resposta ao estresse, o baixo nível
socioeconômico, o isolamento ou o baixo nível de suporte social, bem como aspectos da personalidade, emoções negativas, como angustia, hostilidade, depressão e ansiedade atuam como
fatores que influenciam diretamente a morbidade e a mortalidade. As disfunções psicológicas citadas estão intimamente relacionadas ao incremento da ativação
do sistema nervoso simpático (aumento da pressão arterial, da freqüência cardíaca, da resistência vascular periférica, do output cardíaco).
Atualmente, a tecnologia permitiu um grande corpo de estudos que evidencia as comunicações bidirecionais entre os sistemas neuroendócrino, neurológico e o sistema imunológico.
Destacam Marques-Deak & Sternberg (2004):
O eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA) e o sistema simpático adrenomedular são os componentes neuroendócrinos e neuronais primários da resposta ao estresse. O cortisol (córtex adrenal), as catecolaminas (medula adrenal) e a norepinefrina (terminais nervosos) respondem aos estressores e regulam o sistema imunológico. Este, por sua vez, produz citocinas, que atuam como ponte entre os sistemas imunológico e neuroendócrino, mediando as respostas inflamatórias e imunes. As interrupções nessa regulação entre estresse e resposta imunológica influencia na suscetibilidade e resistência às doenças auto-imunes, inflamatórias, infecciosas e alérgicas. A liberação excessiva desses hormônios de estresse antiinflamatórios, tais como o cortisol, pode predispor o hospedeiro a mais infecções devido à imunossupressão relativa. Por outro lado, uma ativação insuficiente da resposta hormonal ao estresse pode predispor a doenças auto-imunes e inflamatórias tais como artrite, lupus eritematoso sistêmico, asma alérgica e dermatite atópica.
As citocinas pró-inflamatórias, liberadas durante uma infecção, induzem a um conjunto de mudanças de comportamento e mal-estar associados à enfermidade, denominados sickness behavior. Este consiste em um conjunto de sintomas não-específicos que incluem: febre, fraqueza, mal-estar, apatia, incapacidade de concentração, sentimento de depressão, letargia, anedonia e perda do apetite.
Licinio & Wong propuseram que, nos transtornos psiquiátricos, o compartimento central das citocinas estaria ativado. Esta ativação central das citocinas, não necessariamente seria desencadeada por um processo inflamatório, mas poderia estar relacionado a outros fatores, tais como estresse, neurodegeneração e uma possível predisposição genética.
5. Medicina Integrada
Preceitos (Anderson & Rodrigues, 2016):
a vida humana e os processos a ela relacionados se dão de forma sistêmica e só acontecem e ganham sentido e existência a partir das relações que estabelecem entre si.
o ser humano é uma totalidade biológica, psicológica e social.
o binômio saúde-adoecimento se inscreve no campo dos fenômenos de grande complexidade, porque incorpora diferentes dimensões — biológicas, psicológicas, espirituais e socioculturais inter-relacionadas.
a complexidade do binômio saúde-adoecimento não está somente na multiplicidade dos fatores envolvidos com o mesmo, mas, especialmente, na forma como estes se relacionam, interagem e se retroalimentam.
por meio da racionalidade biomédica não é possível entender isso, pois a mesma separa e isola um fator dos demais.
a medicina centrada no modelo geral-integral ou biopsicossocial resgata a noção de complexidade saúde-adoecimento, realça as relações homem-ambiente e valoriza a totalidade biopsicossocial do ser humano, bem como a historicidade dos fenômenos relativos à sua saúde.
em consequência, a abordagem correspondente à medicina centrada neste modelo da integralidade é holística. A participação dos indivíduos e sociedade é indispensável. A dicotomia entre medicina preventiva e curativa é superada. Mente e corpo são únicos. Saúde individual e coletiva, inseparáveis.
a abordagem das interações pessoa-mundo realça a importância do cuidado centrado na pessoa, na família e na comunidade, assim como do trabalho em equipe.
o referencial básico da medicina centrada no modelo da integralidade não é prevenir a eclosão de doenças, mas preservar a qualidade e colaborar para promover a plenitude da vida.
o processo diagnóstico e terapêutico da medicina centrada no modelo da integralidade é de base sistêmica. Quando um componente da rede biopsicossocial é afetado (seja no plano individual, familiar ou comunitário) há repercussão na totalidade orgânica que se remodela para fazer frente a esta nova situação. Estratégias para favorecer um rearranjo adequado contribuem para incrementar a resiliência.
O modelo de Engel se expressa mais fortemente em métodos e práticas da Medicina Integrada, como no Método Clinico Centrado na Pessoa - em que se explora a forma como a pessoa entende e sente o seu adoecimento, o contexto envolvido com este processo, e o fortalecimento da relação
médico-paciente. Além desse método, outras estratégias seguem tal centralização do indivíduo, como a escuta ativa, a medicina narrativa, a valorização dos aspectos que as pessoas acreditam fazer parte ou tenham contribuído para o seu adoecimento, a abertura de espaço para tratar da espiritualidade e da transcendência, a meditação, a exploração outras formas de expressão verbal e escrita, as atividades de grupo, a abordagem familiar e comunitária, etc.
Fontes:
Atenção à Saúde: Discussão Sobre os Modelos Biomédico e Biopsicossocial
Psicologia da Saúde. Costa, Rodrigo Vieira da. 2012
https://psicologado.com.br/atuacao/psicologia-da-saude/atencao-a-saude-discussao-sobre-os-modelos-biomedico-e-biopsicossocial
O modelo biopsicossocial: Trinta anos depois. Fava & Sonino.
Psychotherapy and psychosomatics. 2008; 77: 1-2.
O paradigma da complexidade e os conceitos da Medicina
Integral: saúde, adoecimento e integralidade. Anderson & Rodrigues. revista.hupe.uerj.br. v. 15, n. 3, jul-set/2016
Psiconeuroimunologia – A relação entre o sistema nervoso central e o sistema imunológico. Marques-Deak & Sternberg. Rev. Bras. Psiquiatr. vol.26 no.3 São Paulo Sept. 2004
The Need for a New Medical Model:
A Challenge for Biomedicine. George L. 1977
https://dorcronica.blog.br/classicos-da-dor-1/
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