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distorções cognitivas (Beck & Burns, 1989)

o modelo cognitivo de psicopatologia foi proposto inicialmente na década de 1970 por Beck, e enfatiza o papel central do pensamento na evocação e manutenção da transtornos mentais/de personalidade.

apesar de ser a psicologia uma ciência recente (final do século XIX),  muitas das questões hoje sistematicamente abordadas através de métodos e técnicas específicas são discutidas desde a filosofia antiga, e assim também o foi com o modelo cognitivo: no século III a.C os estoicos já acreditavam que erros de julgamento eram os responsáveis por emoções e comportamentos destrutivos e na utilidade da lógica para identificar e descartar essas crenças falsas.

os princípios que orientam a terapia cognitiva (Margraf, 2009) são o foco no presente, na pessoa e na especificidade dos problemas, sendo portanto definidos os objetivos do processo terapêutico; voltada para a intervenção (ação), a TCC não se basta da tomada de consciência/identificação do problema dinâmico (insight), e reitera a responsabilidade do paciente sobre a resolução do problema através de técnicas denominadas de reestruturação cognitiva.

o nível mais imediato ou básico das avaliações cognitivas são os pensamentos automáticos, que surgem espontaneamente e parecem extremamente válidos, induzindo a emoções e comportamentos; pensamentos automáticos disfuncionais foram descritos por Beck (1975) e Burns (1989), como distorções cognitivas, ou seja, vieses interpretativos que vulnerabilizam o sujeito a eventos negativos e prejudicam o julgamento, pois alteram a percepção das situações até que estas pareçam mais intensas, ameaçadoras ou mesmo irresolúveis. Beck e Burns (1989) identificaram vários desses pensamentos automáticos disfuncionais/distorções cognitivas:

  1. Leitura mental: o sujeito infere equivocadamente pensamentos alheios a partir de expressões, gestos ou comportamentos não suficientemente indicativos;
  2. Adivinhação do futuro: o sujeito crê fielmente em perspectivas pessimistas (pioras, erros, perigos);
  3. Catastrofização: crença de que os acontecimentos são muito mais negativamente intensos e que não será possível suportá-los;
  4. Rotulação: atribuição constante de traços negativos a si mesmo e aos outros;
  5. Desqualificação dos aspectos positivos: invalidação e menosprezo das realizações ou acontecimentos positivos;
  6. Filtro negativo: tendência ao foco exclusivo nos aspectos negativos;
  7. Supergeneralização: percepção de um padrão global de aspectos negativos com base em um único (ou poucos) incidente(s);
  8. Pensamento dicotômico: tendência a perceber eventos ou pessoas de forma antagônica ou polarizada (tudo x nada, bom x mau); é a base do splitting/clivagem no borderline.
  9. Afirmações do tipo “deveria”: interpretação dos eventos em termos de como as coisas deveriam ser (idealização) e não como são concretamente;
  10. Personalização: atribuição de culpa desproporcional a si mesmo por eventos negativos, e consequente incapacidade de atribuir responsabilidade aos outros;
  11. Atribuição de culpa: espécie de transferência em que o sujeito acredita que a outra pessoa é a fonte de eventos negativos (vilanização);
  12. Comparações injustas: interpretação dos eventos a partir de padrões irrealistas que se originam da comparação compulsória com outras pessoas (é concomitante com a percepção de inferioridade);
  13. Orientação para o remorso: foco excessivo em acontecimentos passados e nos sentimentos de arrependimento, fracasso e culpa evocados;
  14. E se...?: orientação do raciocínio através da máxima do “e se...” — condições pouco realistas e insatisfação com as respostas;
  15. Raciocínio emocional: interpretação da realidade e posteriores comportamentos guisados exclusivamente por sentimentos disfuncionais;
  16. Incapacidade de refutar: rejeição de qualquer evidência ou argumento que possa contradizer os pensamentos negativos;
  17. Foco no julgamento: compulsória avaliação segundo padrões arbitrários e impossibilidade de descrever ou compreender.
deve-se frisar que as distorções estão assim descritas apenas para fins didáticos e que não acontecem de fato isoladamente. 

os pensamentos automáticos e a vulnerabilidade a eles dependem dos pressupostos subjacentes, isto é, modos de percepção das experiências que se tornam crenças ou regras internas, conectadas a memórias e formando-se relativamente cedo; esses pressupostos constituem o conteúdo dos esquemas cognitivos pessoais, um agrupamento estruturado e inter-relacionado de conceitos “utilizado para representar eventos, seqüência de eventos, preceitos, situações, relações e até mesmo objetos” (Eysenck & Keane, 1994). o esquema atua como um filtro, priorizando estímulos e selecionando informações de acordo com a estrutura do esquema, isto é, criando atenção e memória seletivas.

o modelo cognitivo acredita que pressupostos pessoais mal-adaptados aumentam a vulnerabilidade a transtornos psicológicos e que são os esquemas pessoais disfuncionais os ativados na manifestação da psicopatologia, prejudicando o processamento de informações. 

os Esquemas Iniciais Desadaptativos, por exemplo, foram abordados por Young em 2003 (o maior representante da teoria dos esquemas), para compreender a dinâmica interna dos transtornos de personalidade; neles os esquemas são a) incondicionais (verdades a priori), b) autoperpetuadores (resistentes à mudança), c) disfuncionais de maneira significativa e recorrente, d) ativados por acontecimentos ambientais relevantes para o esquema específico, e) ligados a altos níveis de afeto, e f) parecem resultar da interação entre o temperamento (inato) e as experiências relacionais disfuncionais nos primeiros anos de vida.

a “materialização” dos pressupostos e esquemas acontece através dos pensamentos automáticos, que canalizam as informações. basicamente, pensamentos criam sentimentos e induzem a comportamentos; por isso a intervenção na TCC é uma seta descendente, isto é, orienta-se desde o pressuposto subjacente para modificar a emoção e o comportamento.

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