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alterações cerebrais na psicopatia (S. Weber et al., 2008)

possíveis anormalidades cerebrais naqueles considerados psicopatas começaram a ser investigadas ainda em 1876, por Lombroso, que popularizou o conceito de "criminoso nato"; influenciado pela frenologia de Gall, Lombroso acreditava que uma mente criminosa poderia ser identificada por deformações cranianas e em outras partes do corpo.

a ideia ganha notoriedade com o caso de Phineas Gage (1848), que após ter a parte frontal do cérebro atravessada por uma barra de ferro, apresentou alterações severas na personalidade, incluindo prejuízos à dimensão afetiva e surgimento de comportamento agressivo e violento.

casos como esse introduziram o conceito de psicopatia adquirida ou pseudopsicopatia: quando as pessoas mostram comportamento inapropriado e agressivo após lesão no lobo frontal (mostrando pontuações mais altas no fator 2 do PCL-R). assim, embora a psicopatia adquirida difira da condição nata nas alterações funcionais, prejuízos à cognição social e moral apontam principalmente para lesões e disfunções no lobo frontal. 

existem duas teorias principais (que atuam como complementares) para explicar a psicopatia: a hipótese do marcador somático de Damasio (1994) e o modelo de mecanismo de inibição da violência proposto por Blair (1995). 

MARCADOR SOMÁTICO (Damasio, 1994): os marcadores somáticos são associações entre estímulos de recompensa que induzem um estado afetivo / fisiológico diante de decisões complexas e conflituosas que exigem processos emocionais além dos cognitivos; a função deles é simplificar o processo de tomada de decisão através do direcionamento da atenção para opções mais vantajosas. assim, a hipótese sugere que danos pré-frontais prejudicam as habilidades de tomada de decisão levando à insensibilidade às consequências potencialmente negativas. o equivalente neurobiológico desta teoria é o córtex pré-frontal ventromedial.

MECANISMO DE INIBIÇÃO DA VIOLÊNCIA (Blair, 1995): o modelo enfatiza o papel da empatia para a socialização moral; pistas de medo, angústia e submissão (como as expressões faciais tristes em humanos), quando são atacados, são mecanismos desenvolvidos pela maioria dos animais com o objetivo de interromper o comportamento do agressor. a disfunção de tal mecanismo resulta em dificuldades de empatia, como o reconhecimento e a preocupação com o sofrimento alheio. foi relatado que indivíduos com traços de personalidade psicopáticos apresentam prejuízo seletivo no processamento de rostos tristes e com medo. o principal equivalente neurobiológico dessa teoria é a amígdala. 

como dito anteriormente, as duas teorias se completam, já que o córtex pré-frontal ventromedial e a amígdala estão intensamente interconectados.

ALTERAÇÕES

as principais alterações acometem o sistema pré-frontal-temporal-límbico, principalmente córtex ventromedial e orbitofrontal, giro temporal superior, amígdala e hipocampo, e corpo caloso.

como o córtex pré-frontal (principalmente ventromedial) e as estruturas límbicas estão intensamente interconectadas, alterações em uma dessas regiões resultam em anormalidades nas outras; assim, há primeiro anormalidades nas estruturas límbicas que, a longo prazo, também resultam em prejuízos ao cortex pré-frontal.. isso se soma ao comum estilo de vida de abuso de substâncias nos quadros de psicopatia, que produz adicional prejuízo às áreas cerebrais.


  • áreas pré-frontais

são cruciais na cognição social e moral, as quais incluem funções como controle de impulsos, tomada de decisão, aprendizagem emocional e adaptação comportamental.

no lobo frontal, a psicopatia afeta particularmente os córtex pré-frontais ventromedial e orbitofrontal, havendo reduções de volume da substância cinzenta e lesões principalmente no orbitofrontal;

Raine, Lencz, Bihrle, LaCasse, & Colletti (2000), por exemplo, encontraram redução de 11% da substância cinza, no lobo frontal de homens com TPA.

Yang et al (2005) também encontrou associação entre altas pontuações de psicopatia e redução do volume de substância cinzenta pré-frontal. 

  • áreas temporal-límbicas

essas estruturas estão envolvidas nas experiências afetivas interpessoais e no desenvolvimento da regulação do comportamento emocional; sintomas típicos de psicopatia, como falta de empatia, perturbação das relações interpessoais e agressão instrumental apontam para danos no lobo temporal. em comparação com controles saudáveis, psicopatas não ativam circuito límbico-pré-frontal (incluindo amígdala, córtex pré-frontal orbitofrontal, insula e córtex cingulado anterior) durante condicionamento de medo. 

estudos de imagem reportaram anormalidades no giro temporal superior, na amígdala e no hipocampo.

1. giro temporal superior: desempenha um papel central na habilidade de empatia e na perspectiva consciente (percepção de si, dos outros e do ambiente).

Müller et al. (2007) reportaram que pessoas com altas pontuações de psicopatia mostraram uma perda significante de substância cinzenta no giro temporal superior direito, resultando em hipofunção emocional.

as disfunções emocionais se relacionam a déficits de processamento de informação abstrata; Kiehl et al. (2004) reportou anomalias no giro temporal superior durante o processamento de palavras abstratas, o que indica dificuldade cognitivas diante de material que não apresenta realização concreta no mundo externo — tais como emoções sociais complexas como amor, empatia, culpa e remorso (que possuem um funcionamento mais abstrato que é prejudicado na psicopatia.

2. sistema límbico

2.1. amígdalas: cruciais para a aprendizagem emocional e modelação da memória de reações emocionais  intimamente responsáveis pela identificação de informações de perigo. 

disfunções nas amígdalas prejudicam a capacidade de empatia e o condicionamento do medo, e estão diretamente relacionadas à maior probabilidade de comportamento agressivo (incidindo negativamente sobre a socialização moral).

(Blair, 2004) encontrou severa atrofia das amígdalas em um subgrupo de pacientes com histórico de comportamento agressivo.

Tiihonen et al. (2000) encontraram redução de 20-21% da amígdala em infratores com altas pontuações em traços de personalidade psicopáticos.

2.2. hipocampo: principal sede da memória, atua em interação com as amígdalas na regulação afetiva e aprendizagem socio-emocional.

lesões no hipocampo resultam em dificuldade de aprendizagem socio-emocional, desregulação afetiva, pobre condicionamento de medo, e insensibilidade a pistas que predizem violência.

Laakso et al. (2001), em estudo com homens encarcerados com TPA e com histórico de violência e alcoolismo, encontraram correlações entre redução do volume do hipocampo e altos escores de psicopatia.

Raine et al. (2004) estudaram indivíduos com psicopatia condenados por crimes e encontraram uma exagerada assimetria estrutural do hipocampo, não explicadas pelo ambiente; os pesquisadores concluíram que os indivíduos com psicopatia condenados por conduta criminosa podem possuir perturbações no circuito hipocampal-pré-frontal.

  • corpo caloso

outras regiões cerebrais, também potencialmente relevantes para a psicopatia, receberam menos atenção até hoje, como é o caso do corpo caloso — um grande feixe de substância branca que conecta (comunica) os dois hemisférios cerebrais e está envolvido na organização dos sentidos.

Raine et al. (2003), estudando indivíduos com psicopatia e TPA, descobriram que esses indivíduos possuíam aumento de 23% no volume da substância branca calosa, aumento de 7% no comprimento caloso e uma redução de 15% na espessura calosa; maiores volumes calosos foram associados a pontuações no comportamento antissocial. diferenças nos parâmetros calosos ainda estavam presentes após ajustes de uso de drogas, distúrbios do espectro da esquizofrenia, perímetro encefálico e inteligência, e eram independentes de déficits psicossociais. anomalias calosas resultam em fenômenos de processamento anormais, como lateralização reduzida em amplitudes P300 (componente potencialmente relacionado ao processo de tomada de decisão).

OUTRAS ALTERAÇÕES

1. ondas lentas nos lobos temporais (EEG): achados anormais no exame eletroencefalográfico (EEG) também foram encontrados em indivíduos com psicopatia e indivíduos com TPA que praticaram crimes. uma das anormalidades registradas mais frequentemente tem sido a persistência de ondas lentas nos lobos temporais, que condiz com a já conhecida insensibilidade a baixos níveis de estimulação do sistema nervoso.

com frequência indivíduos com psicopatia apresentam TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) na infância, indicando-o como precursor e fator de risco para o desenvolvimento posterior de traços psicopáticos (Thapar, van den Bree, Fowler, Langley e Whittinger, 2006). 

além disso, a impulsividade e os comportamentos antissociais de alto risco, como prática de crimes, estariam diretamente relacionados a essa constante necessidade de estimulação, assemelhando-se a uma "caça de emoções".

2. testosterona: além disso, maiores níveis de testosterona estão associados a comportamento agressivo e violência o que explica, em parte, a maior incidência de traços antissociais em homens e amenização do quadro em idades mais avançadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

os achados ressaltam que a psicopatia não se trata de um conceito homogêneo, mas de uma coleção de diferentes subgrupos.

a base neurobiológica da psicopatia é complexa, envolvendo várias regiões cerebrais que estão interconectadas (alterações em uma delas resultam em anormalidades nas outras).

é importante frisar que o TPA e a psicopatia apresentam comorbidades de uso de substâncias, como alcoolismo, que também promovem e exarcebam disfunções cerebrais.

as anormalidades estruturais do cérebro eram mais aparentes em indivíduos com psicopatia condenados por crimes.

entretanto, essas anormalidades estruturais cerebrais não são suficientes para explicar a emergência e manifestação da psicopatia; ela só pode ser explicada através de um modelo multi-causal, em que dotações neurobiológicas e genéticas interagem vários fatores biopsicossociais, que incluem pais negligentes ou agressores, desestruturação familiar, experiências traumáticas na primeira infância, contexto cultural antissocial, pobreza e desemprego.

Blair et al. (2006) sugere que algumas variáveis socioambientais ​​que têm impacto no comportamento antissocial, como abuso e má educação, têm menos impacto no comportamento das crianças com disfunções emocionais típicas de psicopatia, pois ​​têm seu impacto por meio de mecanismos neurocognitivos que são disfuncionais em indivíduos com psicopatia. assim, outras variáveis ​​socioambientais, como uma cultura antissocial e contexto econômico de pobreza e desemprego podem ter uma maior influência sobre o comportamento de crianças com disfunção emocional, pois influenciam o conhecimento e as motivações da criança sobre estratégias antissociais.

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