Plurissignificativa, a "loucura" reivindica espaço desde a constituição das primeiras sociedades humanas, quando a convivência e a funcionalidade do cotidiano passaram a destacar incidências discrepantes ou peculiares no comportamento de determinados indivíduos. É apenas na virada do século XVIII para o XIX que a loucura ganha status de patologia mental, sendo apropriada pelas ciências psiquiátricas e psicológicas modernas.
As sociedades pré-históricas e antigas possuíam uma concepção sobrenatural da loucura (cujos resquícios perpassam a história da patologia mental e alcançam, estupidamente, o século XXI): a mesma era obra de maus espíritos e de possessão. Foram encontrados fósseis do período Neolítico cujos crânios perfurados fornecem indícios de psicocirurgias primitivas, as trepanações, com intenção primordial de exorcismo.
Na Grécia e Roma Antigas (500 a. C. a 500 d. C.), as explicações naturais passaram a mesclar-se às explicações sobrenaturais. Hipócrates de Cós (460-377 a. C.), compreendia a loucura como uma doença natural, e considerava o cérebro como o verdadeiro centro da atividade mental; em sua Teoria Humoral, as doenças resultavam de um desequilíbrio dos quatro fluidos (ou humores básicos) que circulavam pelo corpo: bile amarela, bile negra, sangue e fleuma. Assim, o tratamento da loucura significava o tratamento das patologias físicas subjacentes. Tal visão foi compartilhada pelos filósofos gregos Platão (427-347 a. C.) e Aristóteles (384-322 a. C.). Vale lembrar que a medicina greco-romana excluía a plebe, ou seja, a maioria absoluta da população.
Na Idade Média (500-1350 d.C), o poder absoluto da Igreja Católica fez ressurgir a demonologia: o louco era a personificação viva do mal, que comprovava a existência de Satanás. A atmosfera de pavor e superstição aumentou consideravelmente a incidência do que era creditado como loucura: daí deriva a chamada "histeria coletiva", quando grande número de pessoas partilha delírios e alucinações. Deriva também dessa época o início da caracterização e da perseguição às bruxas, o maior genocídio exclusivamente feminino da história.
“Surgiu naquela época, na Itália, a música/dança 'tarantela' como antídoto ao 'tarantismo' – possessão por um tipo de aranha chamada tarântula. Data também daquela época a 'licantropia', crença na possessão de homens por lobos, chamados 'lobisomens'". (Henriques, 2010)
Os tratamentos baseavam-se principalmente em técnicas de exorcismo empreendidos pelos clérigos católicos e técnicas médicas pouco ou nada efetivas, em que os leitos reservados aos loucos não passavam de jaulas e apenas algumas manifestações da doença eram atendidas.
Durante a fase inicial do Renascimento (que compreende os séculos XV e XVI), o florescimento da atividade científica na Europa retoma a visão médica greco-romana, aprimorada pela medicina árabe. Há a abertura dos primeiros estabelecimentos reservados
aos loucos no Ocidente no século XV, contudo, a loucura é experimentada em estado livre, isto é, é para cada um uma experiência cotidiana que se procura mais exaltar do que dominar - atitude que se reflete na estética romântica. Data desse período o manual de caça às bruxas Malleus Maleficarum, escrito em 1484, que possibilitava a suposta identificação de uma bruxa e se popularizou como política de extermínio auxiliada pela própria população.
É na Idade Clássica (séculos XVII e XVIII) que à loucura é reservado obrigatoriamente o lugar de exclusão, através da criação de estabelecimentos para internação não somente dos loucos, mas também de todos àqueles que se desviavam da norma social burguesa: inválidos, negros, pobres, mendigos, desempregados, portadores de doenças venéreas, libertinos etc. Na França, criam-se os Hospitais Gerais (Bicêtre e La Salpetrière) e na Inglaterra, as Workhouses. Os demais estabelecimentos para loucos surgidos no Renascimento também alinharam-se à proposta da chamada “Grande Internação”, sendo apenas depósitos humanos que encerravam (com frequência perpetuamente) os incapazes de tomar parte na produção, na circulação ou no acúmulo de riquezas. Tanto que, nesses estabelecimentos, reinava o trabalho forçado. É apenas no fim do século XVIII que a loucura ganha a concepção de "doença mental", através do surgimento da psiquiatria, e o internamento torna-se medida de caráter médico; seus principais reformadores foram Pinel, na França, Tuke, na Inglaterra, Chiarugi, na Itália, Wagnitz e Riel, na Alemanha.
Em 1793, Philippe Pinel ordena que desacorrentem os loucos no hospício Bicêtre, na França: tal gesto adquire caráter mítico e se confunde com o nascimento da psiquiatria. Pinel, por meio do Hospital Geral, classificou e agrupou os diversos tipos de loucura em classes, gêneros e espécies, com base em seus sinais e sintomas, o que originou o Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental, primeira incursão médica sobre a loucura.
Pinel concebia a loucura como “alienação mental”, concebendo o louco não como desarrazoado, mas sim como um alienado de sua própria razão - alguém que apresentava um distúrbio da paixão no interior da própria razão. Assim, ainda que Pinel tenha definido a loucura como uma condição de doença, medicalizando-a e consequentemente silenciando-a, ele tornou possível o trabalho terapêutico e uma posterior cura. Sua terapia era um “tratamento moral” da loucura, uma reeducação pedagógica centrada na autoridade do médico, que tinha como base o isolamento nos hospícios - o qual era justificável por Pinel, já que a loucura seria ela própria um estado de privação da liberdade e de perda do livre-arbítrio, sendo o alienista o único que poderia restituir essa liberdade. Pinel acreditava que as causas da loucura envolviam dimensões morais - psicológicas e sociais - e jamais físicas, pois a mesma se tratava de um desequilíbrio do organismo, um distúrbio de suas paixões; tais paixões podiam ser debilitantes (ódio, temor, saudades, ciúmes, inveja) ou alegres (alegria, amor, compaixão), e a classificação em normal e patológico dependia do equilíbrio, ou seja, as paixões deveriam apresentar grau e intensidade adequados.
Através do tratamento moral, Pinel fundou a “medicina mental” ou “alienismo”, e retornou à clínica geral em contraposição à clínica-anátoma. As concepções de Pinel, de Esquirol e de seus seguidores influenciaram a prática médica até o fim do século XIX. O tratamento moral declina com a superlotação dos asilos, pois a mesma impossibilitava a observação caso a caso. Entretanto, a herança do tratamento moral estende-se até a atualidade, em qualquer prática de infantilização e culpabilização/punição do indivíduo que apresenta alguma patologia mental.
Bayle, em sua tese de doutorado em medicina de 1822, atribuía os sintomas psiquiátricos da neurossífilis à inflamação crônica das meninges. Assim, confere uma organicidade à doença mental, estabelecendo que, quando a doença causadora piorava, os sintomas psiquiátricos tomavam o mesmo rumo. Tal descoberta trouxe ao campo da saúde mental a característica tensão bipolar entre os “psiquistas” e os “somatistas”.
Em 1857, publicando Traité des dégénérescences, Morel cunhou o conceito de “degenerescência” (termo emprestado da zoologia) no intuito de explicar a progressão na Europa de “males mentais”, tais como a paralisia geral, a epilepsia, o suicídio, a criminalidade etc. Morel acreditava que esses indivíduos traziam “nos seus corpos a patologia orgânica característica das gerações precedentes” (apud Shorter, 1997, p. 94). Segundo tal ideia, uma característica adquirida do meio poderia ser transmitida hereditariamente, culminando em alguma “demência” nas gerações seguintes. Portanto, era preciso destruí-la através de uma política de ação que a isolasse do mundo social. As ideias de Morel extrapolam o campo psiquiátrico e se tornam as bases “científicas” da eugenia, radicalizando-se na “solução final” proposta pelo nazismo hitlerista.
Durante a belle époque, no início do século XX, a teoria da degenerescência declina e cede lugar às interpretações não-biológicas.
O fundador da clínica psiquiátrica moderna foi Emil Kraepelin (1856-1926). Ex-aluno de Wundt (fundador da psicologia científica), desenvolveu suas ideias em paralelo com a nascente psicanálise de Freud. Seu trabalho descritivo e classificatório é uma grande síntese das conquistas semiológicas da psiquiatria do século XIX, estabelecendo um sistema nosográfico que influencia todas as principais correntes psiquiátricas posteriores, e se materializa em seu Tratado de Psiquiatria (1883). Cada nova edição trouxe novas classificações das patologias. Seu método de abordagem dos fenômenos psicopatológicos era estritamente clínico-descritivo e classificatório e de perspectiva longitudinal e evolutiva. Para Kraepelin, a nosografia psiquiátrica deveria se preocupar com a etiologia, ou seja, com as causas. Dessa forma, em suas classificações, a divisão entre doenças se dá por suas causas: endógenas, exógenas, doenças mentais congênitas e doenças mentais adquiridas etc.
A doença mental endógena (psicoses como esquizofrenias - catatônica, hebefrênica e paranóide -, paranóia e psicose maníaco-depressiva) se caracterizaria por uma disposição individual resultante da combinação de fatores físicos e mentais, sendo assim uma grande contribuição à nosografia psiquiátrica: apesar das intermináveis mudanças de nomenclatura, essa sistematização das psicoses vigora até hoje nos manuais, como o CID-10 (OMS, 1993) e o DSMIV-TR (APA, 2000); os idealizadores do DSM, chefiados pelo psiquiatra norte-americano Robert Spitzer, admitem a influência kraepeliniana (Shorter, 1997); entretanto, é preciso fazer uma ressalva à tal influência: o DSM abandona a noção de que a psicopatologia seria uma doença orgânica, e inclusive substitui o termo por “transtorno”, adotando uma abordagem sindrômica, rompendo com a preocupação etiológica (causas) preconizada por Kraepelin.
Fonte: Henriques, Rogério Paes. Psicopatologia crítica: guia didático para estudantes e profissionais de Psicologia. 2010
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