foi assim que a corte inglesa se referiu à Mary Bell, responsável pela morte de dois meninos de 3 e 4 anos no fim da década de 1960 — quando a própria Mary tinha apenas 10 anos.
a imagem da menina foi ligada à malignidade inerente e à psicopatia infantil, e assim acontece não apenas com as crianças condenadas por crimes similares, mas também com aquelas que apresentam comportamentos que não condizem com sua representação social.
é preciso entender que a criança é um signo, e, como os demais, sua ideia foi paulatinamente modificada de acordo as expectativas dos pais, da sociedade e das concepções específicas de tempo e espaço; a criança moderna não mais designa um “adulto em miniatura”, mas sim a inocência, a pureza e a vulnerabilidade.
essa visão popular da criança como a personificação da bondade e do incólume não cede espaço para a consideração da mesma como indivíduo e, sobretudo, um indivíduo em construção, sujeito a adversidades e passível de ações contraditórias; essa visão cega para uma comum natureza em que o infante sente raiva, frustração, desejo, tristeza. nesse ínterim, são demonizadas as manifestações que fogem à tipicidade e surgem na mídia os “anjos malvados”, que tanto geram impasses para o julgamento e intervenção efetivos.
aqui é necessário rejeitar a categorização do "mal" como algo metafísico, ontológico e referente a uma natureza/essência do ser, para pensá-lo como produto das ações de homens e mulheres em seu espaço e tempo — como aquilo que é feito com intenção de causar prejuízos a outrem.
assim, se uma criança “má” é aquela que pratica recorrentemente atos com intenção de ferir o próximo, é preciso primeiro investigar de onde deriva esse comportamento, e determinar punições específicas e coerentes que visem seu aprendizado e a reabilitação.
1. A noção de epigenéticaárea que se dedica às interações entre informação genética e fatores ambientais, a epigenética regula a expressão do DNA e modifica como a informação genética se manifesta. isso porque os genes, através de sua capacidade transcricional, codificam a síntese de proteínas que constituem as substâncias mediadoras do funcionamento mental, e são elas que podem provocar anormalidades moleculares.
essas modificações atuam sobre o processo de diferenciação celular, isto é, células que carregam um mesmo DNA podem exercer diferentes funções. isso significa que genes são expressos ou silenciados de acordo com variações ambientais visando respostas adaptativas.
os períodos pré-natal e a primeira infância são críticos, e a condição psicológica materna antes e após a gestação tem consequências na alteração nos genes ligados ao funcionamento de neurotransmissores da criança, gerando, por exemplo, uma maior vulnerabilidade ao estresse.
desde o início do desenvolvimento embrionário ocorrem alterações na neurogênese, isto é, na formação, deslocamento, interconexão e seleção de neurônios.
o período entre os 2 e os 5 anos é marcado pela primeira poda sináptica (presente também no início da adolescência), em que 50% das sinapses existentes são eliminadas no intuito de organizar a neurotransmissão. de acordo com as influências externas, estímulos e aprendizados, as conexões pouco utilizadas são eliminadas, remodelando o cérebro em busca de adaptação ao ambiente. assim, são as áreas e habilidades mais trabalhadas com a criança que permanecem e são fortalecidas.
além disso, um ambiente hostil na infância oportuniza o trauma, e diante dele e de suas reminiscências, há o exagerado estímulo do eixo HHA (eixo hipotalamo-hipofise-adrenal, que exerce grande influência sobre as respostas emocionais e imunológicas), e a liberação excessiva de hormônios como o cortisol torna o estresse crônico.
os mecanismos epigenéticos são de natureza reversível, isto é, experiências positivas envolvendo afeto dos cuidadores, educação, atividade física e ambiente social salutar podem reverter a impressão epigenética mal-adaptativa e resultar em maior neuroplasticidade. por isso a noção de epigenética é essencial para a medicina preventiva e para o desenvolvimento de estratégias personalizadas de diagnóstico e terapia, incluindo manejo de transtornos infantis.
sobretudo a epigenética diz respeito a riscos e predisposições, não sendo um determinante; um único gene não é responsável por um comportamento ou uma doença, mas sim múltiplos genes atuando em conjunto com fatores ambientais.
2. Aprendizado, julgamento e moralidadenum nível basal, uma criança aprende aquilo a que é constantemente exposta, construindo a partir disso sua percepção de mundo e seus padrões de comportamento. se há predomínio de informações violentas e abusivas, são aprendidos violência e abuso; além disso, é preciso entender que o abuso se apresenta de várias formas, muitas vezes sutis, e que a negligência também é uma violência, uma vez que a criança é um ser vulnerável e inteiramente dependente dos cuidadores.
indivíduos na primeira infância não distinguem noções como certo e errado, nem entendem conceitos abstratos e definitivos como morte. crianças pequenas que ferem ou matam animais sabem que não devem fazê-lo porque serão castigadas, mas não porque aquilo traz sofrimento ao animal. mentir e manipular, por exemplo, geralmente tomados pelos adultos como prova de perversão, podem ser apenas o meio primordial pelo qual essa criança aprendeu a conseguir aquilo que precisa. funções cognitivas complexas como o julgamento e a deliberação só são desenvolvidas tardiamente, de modo que o próprio e o impróprio funcionam como mimetizações.
além disso, o desenvolvimento da função de julgamento é variável; comumente manifesta-se através da "culpa", isto é, as ações se avaliam de acordo com a atribuição ou não de culpa, a qual pode assumir níveis como ser apontado por alguém, ter senso de responsabilidade ou ter medo da punição.
ser apontado como culpado significa ser pego em flagrante por alguém; “ter culpa” diz respeito a ter consciência do erro sem, no entanto, sentir-se mal por isso; e “sentir culpa” refere-se à consciência aliada ao remorso — sendo o componente emocional (empatia) necessário ao senso moral.
Piaget analisa essa tendência como julgamento pela consequência ou pela intenção.
o nível "sentir culpa"/julgamento pela intenção é predominante em crianças de maior faixa etária (acima de 8 anos), enquanto os outros dois, que constituem o julgamento pela consequência, são característicos de crianças mais novas, pois naturalmente há a necessidade de um observador externo que avalie e reaja ao comportamento da criança, aprovando-o ou não. esse papel é essencial principalmente quando se trata de crianças muito novas, as quais entendem o erro/culpa como sinônimo de punição. assim, embasando a construção de parâmetros, o observador auxilia até que a criança seja capaz de avaliar os próprios comportamentos.
entretanto, essa média etária varia de acordo com contexto social; crianças institucionalizadas, por exemplo, permanecem julgando pela consequência em idades mais avançadas, e de acordo com o dano ocasionado.
teoricamente, Piaget distingue as fases do desenvolvimento moral da criança iniciando pela anomia, que vai do nascimento aos cinco ou seis anos de idade; o período seguinte é o da heteronomia, na qual predomina o princípio da autoridade e das leis exteriores. a heteronomia da criança é marcada pelo realismo moral, em que noções de certo e errado são determinadas pelas consequências materiais, a justiça é tratada como imanente aos atos, e a regra é considerada literalmente.
na década de 1970, Kohlberg dá continuidade aos estágios do desenvolvimento piagetiano, sintetizando em três níveis o julgamento moral.
o primeiro nível trata da moralidade pré-convencional, típica da infância. as regras sociais ainda não foram internalizadas e o indivíduo necessita de um controle externo. portanto os critérios de certo e errado se baseiam na existência ou não de punição e no auto-interesse.
o segundo nível é a moralidade convencional, quando as regras já são conhecidas, mas pouco questionadas e seguidas de maneira rígida. é marcado pela conformidade com o papel convencional, e o julgamento se dá de acordo com as expectativas externas. é fase típica da adolescência e mesmo da idade adulta, em que a preocupação é manter a ordem social a partir de acordos interpessoais.
o terceiro e último nível, pós-convencional, é alcançado na idade adulta — mas nem todos o fazem. é quando a rigidez da convenção é superada, e a pessoa é capaz de fazer os próprios julgamentos com base em princípios éticos considerando-os relativos ao contexto. é marcado pela empatia e pela tomada de consciência. esse nível se atinge principalmente através da experiência de vida.
3. Psicopatologia na infânciao significado da violência praticada por uma criança se dá de acordo com cada contexto de ocorrência; tentativa de chamar atenção para si; única externalização possível de intolerável frustração; expressão de uma psicopatologia. fato é que a criança sinaliza seu desconforto repetidas vezes em atos menores. a prática de um crime por ela diz, antes, sobre o completo abandono a que a mesma estava submetida, uma vez que nenhum dos adultos de sua convivência foi capaz de notar ou intervir.
embora algumas psicopatologias apresentem maior preponderância genética, como a esquizofrenia e o transtorno bipolar, a condição popularmente mais associada aos comportamentos problemáticos na infância é a psicopatia.
conceito em desuso na área psi por sua imprecisão e estigma, tornou-se conhecida principalmente através do direito penal. a concepção psiquiátrica mais aceita atualmente é de que se trata de um conjunto de traços característicos da personalidade (referentes à pouca capacidade de empatia e aos desvios graves de comportamento) que se manifestam nos mais altos graus a partir de um transtorno pré-existente. embora possa ocorrer em outros quadros, aparece comumente ligada ao transtorno de personalidade antissocial — até mesmo erroneamente tratada como seu sinônimo. embora compartilhem traços, a psicopatia parece ser uma questão de grau e indicar também uma maior resistência aos tratamentos.
acontece que crianças não podem ser classificadas como psicopatas, uma vez que esta condição se refere a traços graves e estáveis da personalidade, e a criança ainda não possui sua personalidade totalmente formada. A APA postula que nenhum menor de 18 anos pode ser diagnosticado como tal, e até lá o que existe é o transtorno de conduta, caracterizado por comportamento anti-social persistente. embora “anti-social” seja comumente entendido como um indivíduo isolado, no âmbito psi refere-se a padrões de comportamentos disfuncionais na relação com os outros e/ou que infringem normas sociais.
reitera-se que tal padrão de comportamento deve se apresentar persistentemente entre os seis e os dezoito anos, e não através pontuais reações ao estresse; crianças expostas à violência doméstica podem apresentar comportamentos anti-sociais, mas não transtorno de conduta.
os critérios do diagnóstico no DSM-V (APA, 2013) incluem (1) perseguir, atormentar, ameaçar ou intimidar os outros com frequência; (2) iniciar lutas corporais com frequência; (3) histórico de uso de armas que podem causar ferimentos graves (pau, pedra, caco de vidro, faca, revólver); (4) ser cruel com as pessoas, ferindo-as fisicamente; (5) ser cruel com os animais, ferindo-os fisicamente; (6) roubar ou assaltar, confrontando a vítima; (7) submeter alguém a atividade sexual forçada; (8) iniciar incêndio deliberadamente com a intenção de provocar sérios danos; (9) destruir propriedade alheia deliberadamente (não pelo fogo); (10) histórico de arrombamento e invasão de casa, prédio ou carro; (11) mentir e enganar para obter ganhos materiais ou favores ou para fugir de obrigações; (12) furtar objetos de valor; (13) passar a noite fora frequentemente, apesar da proibição dos pais (início antes dos 13 anos); (14) fuga de casa pelo menos duas vezes, passando a noite fora, enquanto morava com os pais ou pais substitutos (ou fuga de casa uma vez, ausentando-se por um longo período); e (15) faltar na escola sem motivo, matando aulas com frequência (início antes dos 15 anos).
o transtorno de conduta frequentemente vem acompanhado de TDAH (43% dos casos; principalmente na infância) e transtornos emocionais (33% dos casos, principalmente na adolescência). além disso, déficit intelectual, convulsões e comprometimento do sistema nervoso central devido a exposição a álcool/drogas no período pré-natal, infecções, traumas cranianos, etc., além de antecedentes familiares positivos para hiperatividade e comportamento anti-social também costumam complementar o diagnóstico.
é essencial que sejam diferenciados os comportamentos anti-sociais como reação a situações de estresse, típicos das explosões emocionais em crianças expostas à violência doméstica e/ou que apresentam outros transtornos, bem como os comportamentos anti-sociais decorrentes de quadros psicóticos.
o prognóstico e curso são específicos de cada caso, mas é sabido que quanto mais precocemente iniciadas as intervenções multiprofissionais e quanto mais jovem o paciente, melhores os resultados obtidos.
4. Conclusãoembora crianças possam de fato apresentar comportamentos agressivos para com os outros, a atribuição taxativa de malignidade inata só afasta da compreensão e do tratamento esse indivíduo. é preciso entender a infância como período crítico para a construção e não submetê-la a critérios de valor tão limitantes, sob a pena de rotular a criança como aberrante e negar o reconhecimento de um problema que não é só de responsabilidade dela e que necessita de intervenção específica.
crianças estão sujeitas à raiva e à tristeza degradantes, principalmente quando em situações de carência de suas necessidades incompressíveis, bem como à expressão dessas raiva e tristeza em atos graves que podem não ser capazes de controlar ou julgar moralmente com propriedade.
como a comunicação infantil não se dá de modo linear e diretivo, tampouco através da verbalização tradicional, os problemas refletem no agir e na interação dessa criança com o externo, sendo necessário haver alguém comprometido com seu bem-estar para observá-la e conferir dignidade às suas expressões. a atenção à infância permite que as intervenções terapêuticas sejam iniciadas cedo, apresentando, assim, maior possibilidade de reversão de quadros.
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