embora fenômeno (pois não deve ser entendido como pontual e isolado) plurissignificativo e multifatorial, o tabu sobre o assunto restringe a maioria dos posicionamentos públicos aos meios de evitar um suicídio motivado por psicopatologias; em razão disso, conflitos éticos indissociáveis ao tema são vilipendiados, como, por exemplo, a legitimação do desejo de morrer.
apesar disso, os suicídios são comumente julgados diferentemente: o desejo de morrer e a morte autoprovocada de um idoso cuja doença em estágio avançado traz sofrimento físico é comumente mais legitimado que o desejo de morrer e a morte autoprovocada de um jovem em intenso sofrimento psíquico; da mesma forma são avaliados os métodos: quanto menor parece a intenção de morrer percebida em uma tentativa, mais negativa é a atitude das pessoas em relação a esse ato. em suma, as pessoas desenvolvem seus próprios critérios para atenuação da morte autoinfligida, ainda que não percebam ou admitam; e entre esses critérios está centralizado o nível de intensidade do sofrimento que se supõe.
talvez a maior dificuldade de compreender a morte autoinfligida se deva ao fato de que ela parece antinatural: a noção moral comum de santidade da vida defende que a vida humana é inerentemente valiosa, e, por isso, o suicídio é errado porque viola o dever moral de honrá-la, independentemente do valor dessa vida para os outros ou para si mesmo.
entretanto, ao sustentar que a própria vida é valiosa independente da felicidade do indivíduo, o direito à vida atua como dever e obrigação de viver — quando, na realidade, esse direito deve ser considerado com relação a qualidades como dignidade, de modo que uma situação degradante e subumana é suficiente para inflingi-lo.
é assim que se começa a entender a argumentação de um indivíduo que vê no suicídio, na verdade, uma afirmação da vida — devido às circunstâncias em que as condições médicas ou psicológicas reduziram-no à sombra de seu antigo eu plenamente capaz.
uma das dúvidas centrais que permeiam o fenômeno é sobre se o suicídio só é decidido e/ou consumado em momentos de comprometimento da racionalidade e ausência de autonomia, isto é, se é invariavelmente resultado de uma organização mental adoecida em algum nível ou se pode ser deliberadamente escolhido como opção mais viável.
assim, quanto à permissibilidade moral (supostas condições sob as quais o suicídio possa ser moralmente justificado), duas visões se destacam:
de acordo com a posição libertária, o direito ao suicídio é um direito à liberdade: como donos de nossos corpos, temos permissão para descartá-los como quisermos, e uma vez que os direitos de propriedade são exclusivos, outras pessoas não podem interferir nisso.
a outra, mais estreita do que a visão libertária, defende que o suicídio é permitido desde que seja escolhido racionalmente/se essas escolhas forem autônomas, isto é, se a escolha de interromper a vida tem base em razões reconhecidamente relevantes para sua situação. em geral, tais condições são cognitivas — garantia de que as avaliações dos indivíduos sobre sua situação sejam racionais e bem informadas (ex: posse de visão de mundo realista) — e de interesse — garantia de que o suicídio de fato esteja de acordo com os interesses considerados dos indivíduos (ex: morrer permite evitar danos futuros).
acontece que o suicídio é quase sempre instrumental, isto é, não é um ato com fim em si mesmo: o "querer morrer" e o agir de modo a produzir a própria morte visam outro objetivo. isso significa que a morte não é escolhida por si mesma, mas como meio (acreditado como único possível) para o cumprimento de outro objetivo. no último texto eu mencionei que para compreender é indispensável investigar seus significados, e isso pressupõe que o ato suicida pode ter várias finalidades: alívio da dor física, alívio da dor psicológica, martírio a serviço de uma causa moral, cumprimento dos deveres sociais em algumas culturas (por exemplo, suttee e seppuku), prevenção da execução judicial, vingança de terceiros, proteção dos interesses ou do bem-estar de terceiros etc.
mesmo que haja um direito ao suicídio enraizado no valor da autonomia racional, há vários fatores que podem comprometer a autonomia racional e distorcer cognitivamente a deliberação de uma pessoa, sendo também resultado de coação situacional: a vontade do indivíduo é modificada por circunstâncias fora de seu controle, de modo a tornar a morte uma opção racional onde antes não era.
assim, a decisão de se envolver em um comportamento suicida pode não ser um reflexo dos interesses do indivíduo (ainda que o mesmo não perceba), e provocar a própria morte funciona como um ato do qual ele, em momentos mais calmos e claros, recuaria.
tanto é que, embora muitas pessoas suicidas se envolvam em um planejamento extensivo para suas próprias mortes, a determinação final de acabar com a própria vida é muitas vezes impulsiva, refletindo a intensa vulnerabilidade psicológica de pessoas suicidas e sua tendência à volatilidade e ansiedade — e por isso dificultar o acesso a meios como armas de fogo e venenos é uma das medidas mais significativas de prevenção.
fatores comprometedores da autonomia e deliberação não necessariamente envolvem doenças mentais, mas é particularmente preocupante a ligação evidente entre elas e ideação suicida (ainda que haja discordância sobre a força dessa ligação). considerando que em alguns estudos mais de 90% dos suicidas apresentam sintomas de depressão antes da morte, é necessário, sim, estudá-lo no interior da patologia, mas sem tratá-lo como sintoma; as atitudes dos indivíduos com depressão em relação à própria morte são marcadas por crenças fortemente negativas e ocasionalmente distorcidas sobre suas situações de vida, já que a depressão pode primitivar os processos intelectuais de uma pessoa, levando a uma estimativa pobre das probabilidades e um foco irracional no sofrimento presente; esses indivíduos também podem exibir crenças romantizadas sobre os prováveis efeitos de suas mortes. é comum, ainda, que as pessoas suicidas hesitem sobre o ato, sinalizando na esperança de que os outros intervenham. nesses casos, embora as tentativas repetidas de suicídio pelo mesmo indivíduo sejam comuns, o impulso para o comportamento suicida é frequentemente transitório e se dissipa com a melhora do estado deprimido.
sendo o impulso para o suicídio frequentemente esporádico, ambivalente e influenciado por fatores que comprometem um julgamento realista da situação, a intervenção alheia é justificável; entretanto, quanto às medidas de intervenção, há dúvidas quanto se contenção física, medicação, engano ou institucionalização são de fato as ideais, quando deve-se priorizar medidas que firam menos uma autonomia já abalada e apelem para as capacidades racionais, como acolhimento por pessoas próximas e, principalmente, psicoterapia.
sendo improdutivo hiperfocar em um único fator — como a ideação suicida comum às psicopatologias — e figurá-lo como predominante e sobreposto aos demais, é necessário investigar, concomitantemente, o caráter social do suicídio e o sentido da morte como é inculcado em culturas específicas, incluindo a interação das atitudes sociais, as políticas públicas disponíveis, a psicodinâmica familiar, os estereótipos de gênero, os estilos de vida (bem como de estilos de adaptação e enfrentamento de problemas e estilos de alternativas de solução disponíveis).
sabe-se, por exemplo, que há correlações do suicídio com o individualismo — individualismo esse que não diz respeito à falta de integração de grupos sociais, mas sim com as altas ambições individuais, com a acentuada rivalidade e com a discrepância entre as numerosas oportunidades e os poucos resultados alcançados — que conduzem ao desapontamento e à autodepreciação. isto inclui a dimensão objetiva e subjetiva dos padrões de sucesso e insucesso de cada sociedade: a corrida pelo sucesso conjunta ao pavor do insucesso são características reconhecidas como sendo as que predominam na sociedade norte-americana contemporânea (sendo sucesso definido como baixa discrepância entre o nível de aspirações e o de realizações). sabe-se que, assim como o insucesso está relacionado com variáveis negativas da personalidade e, portanto, com dificuldades de ajustamento social, o sucesso está relacionado com características socialmente desejáveis, tais como o ajustamento e autoconfiança.
isso pressupõe que, embora as psicopatologias e seus respectivos sintomas sejam padronizados no meio psiquiátrico, seus modos culturais de manifestação variam principalmente devido às inegáveis diferenças quanto aos estilos de enfrentamento de estresse, e que, portanto, o suicídio depende do sentido que é percebido de uma situação — percepção essa determinada pela interação entre personalidade e enfoque sociocultural.
a desorientação vital cobre grande número de casos de suicídio, isto é, a experiência da solidão, na qual os indivíduos estão a tal ponto isolados que não despertam expectações em pessoas significativas e não possuem compromissos afetivos com ninguém; a desintegração de uma identidade, formada e revigorada apenas no seio das interações; e o tedium vitae, situação em que se encontram esgotados os prazeres de modo que tudo constitui uma repetição enfadonha, incrementado pela não-realização das aspirações individuais e mais nenhuma esperança de fazê-lo.
ignora-se, por exemplo, que diversas vezes a morte autoinfligida é camuflada de tal forma que passa por acidente (como acidentes de automóvel) ou que o "suicídio crônico ou parcial", isto é, a autodestruição progressiva (como alcoolismo), é ainda mais recorrente.
é preciso conceber as várias modalidades da morte autoinfligida como uma comunicação, ainda que indireta, que vai muito além de bilhetes ou notas deixados.
uma alternativa para avaliar o comportamento suicida é vê-lo ao longo de um continuum, isto é, vê-lo não como como uma noção pré-definida e enrijecida, mas como uma noção gradativa, admitindo graus com base nas crenças individuais, força de intenções e atitudes (a Escala de Beck para Ideação Suicida é talvez o melhor exemplo dessa abordagem).
por fim, suicidar trata-se de uma solução simbólica para um conflito que jamais pode ser visto como produto de uma causa única e intrapsíquica, mas como uma alternativa final para uma relação interpessoal confusa, frustrante e angustiante; tal relação começa com a perda de um papel estável e termina quando o ambiente confirma as piores expectativas do indivíduo, respondendo com impotência e desamparo às suas intenções: a consumação do ato depende da resposta do ambiente social. por isso, por mais que soe contraditório, aqueles que recorrem ao suicídio se orientam pela fantasia de serem salvos (da situação angustiante), configurando esse esforço, ainda que mal dirigido, para a solução de problemas vitais.
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