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suicídio: um pouco sobre divulgação midiática e epidemiologia

  • cerca de 800 mil pessoas suicidam anualmente;

  • o crescimento das taxas de suicídio nos últimos 20 anos foi de 200% a 400%, em particular entre os adolescentes (Klerman & Weissman, 1989; Goodwin & Runk, 1992);

  • a OMS avalia o suicídio como problema de saúde pública, pois configura uma entre as dez causas mais frequentes de morte em todas as idades, sendo a segunda causa de morte entre 15 e 34 anos de idade (Retterstol, 1993);

  • mais de 70% dos suicídios no mundo ocorrem em países de baixa e média renda;

  • ingestão de pesticidas, enforcamento e armas de fogo estão entre os métodos mais comuns.


EFEITO WERTHER

Apesar da constatação de que a ampla divulgação de um suicídio pode acarretar um efeito em série, o suposto "contágio" associado ao efeito Werther precisa ser reconsiderado; além da carência teórica, uma análise superficial pode servir de justificativa para mais estigma e silenciamento. Pesquisas de previsões teóricas são comprometidas principalmente pela limitada informação estatística disponível sobre as vítimas, geralmente restrita a variáveis como idade ou sexo, não abrangendo informações acerca dos estados e processos psicológicos.

O que ocorre na realidade é que indivíduos (principalmente adolescentes) com fatores de risco para potencial ideação e comportamento suicidas -- incluindo passado histórico de ideação e/ou comportamento suicidas -- podem escolher-se mutuamente como amigos.

Certas pessoas são mais suscetíveis do que outros de ter um comportamento suicida imitativo (Davidson & Gould, 1989); pesquisas como a de Brent et al. (1989) sugerem que essa suscetibilidade advém majoritariamente de episódios anteriores de depressão e tentativa de suicídio. Isso significa que aqueles que têm tendências suicidas resultantes do suicídio de outros já apresentam fatores de risco como depressão, abuso de substâncias, transtornos de personalidade, perdas recentes e problemas legais (Ward & Fox, 1977; Ashton & Donnan, 1981; Robbins & Conroy, 1983).

Isso condiz com a hipótese da desinibição de Bandura (1986) aplicada ao efeito Werther (Phillips 1985, 1989), que sugere que as pessoas que decidem pelo suicídio contemplam essa possibilidade durante algum tempo, mas hesitam devido à reprovação social do ato. Os suicídios que receberam atenção pública (incluindo descrições realistas de suicídios fictícios) podem então oportunizar suicídios de imitação entre estes potenciais suicidas observadores, aumentando-lhes expectativas quanto a certas consequências (atenção póstuma, sentimento de compaixão, aumento do estatuto, consternação de conhecidos ou dos pais do suicida etc). Essa hipótese considera que alguns observadores potenciais suicidas podem nunca vir a cometer suicídio (dado que as expectativas de consequências “positivas” nunca são maiores do que as restrições).

Além disso, o efeito Werther não funciona como uma lei: o suicídio de Cobain em 1994, por exemplo, não precipitou um aumento significativo de casos de suicídio na comunidade de Seattle (onde Kurt viveu e morreu). É aí que se verificam as variáveis de fato relevantes para o estudo do suicídio em série: cobertura midiática (o quê e de que forma é divulgado), método utilizado, perfil da vítima e intervenções preconizadas pelas instituições de saúde mental.

A má interpretação do efeito Werther pode deslocar a atenção dos aspectos centrais para os periféricos, quando, na verdade, a divulgação responsável de suicídios pode agir como fator de proteção.

O livro, bem como um suicídio modelo, não leva as pessoas a cometerem suicídio: leva-as a refletir sobre o tema sob a perspectiva da possibilidade, atentando para a configuração social póstuma, e por isso evidencia tendências já cristalizadas.


DIVULGAÇÃO MIDIÁTICA

Não é a cobertura jornalística do suicídio per se, mas alguns tipos de cobertura, que aumentam o comportamento suicida em populações vulneráveis. 

Acontece que a maioria dos suicídios não é mostrada pelos meios de comunicação, e aqueles noticiados são apenas os que fogem aos padrões usuais (método, pessoa ou lugar atípicos), perpetuando a desinformação sobre o fenômeno; além disso, a cobertura dos suicídios pelos meios de comunicação tem impacto maior nos métodos usados do que na frequência de suicídios.

De acordo com o Manual para Profissionais da Mídia para prevenção do suicídio (OMS, 1999), os assuntos que devem ser abordados na cobertura de um suicídio incluem:

  • estatísticas interpretadas cuidadosamente e corretamente;

  • fontes de informação confiáveis e autênticas;

  • qualquer comentário improvisado deve ser feito cuidadosamente;

  • evitar generalizações baseadas em fragmentos de situações; 

  • evitar expressões como “epidemia de suicídio” e “o lugar com a mais alta taxa de suicídio do mundo”;

  • não usar estereótipos religiosos ou culturais, isto é, não justificar o comportamento suicida como uma resposta às mudanças culturais ou à degradação da sociedade;

  • a cobertura sensacionalista de um suicídio deve ser assiduamente evitada, particularmente quando uma celebridade está envolvida, e qualquer problema de saúde mental que a celebridade pudesse apresentar deve ser trazido à tona;

  • não trazer a notícia em manchetes de primeira página;

  • não atribuir culpas;

  • não publicar fotografias ou cartas do falecido;

  • não disponibilizar descrições detalhadas do método usado e de como ele foi obtido, já que publicidade adicional acerca dos métodos pode fazer com que mais pessoas os procurem com esta finalidade;

  • não mostrar o suicídio como inexplicável ou de uma maneira simplista, pois nunca é resultado de um evento ou fator único, e sim de uma interação complexa de vários fatores que devem ser reconhecidos;

  • não mostrar o suicídio como um método de lidar com problemas pessoais como falência financeira, reprovação em algum exame ou abuso sexual;

  • as reportagens devem levar em consideração o impacto do suicídio nos familiares da vítima e nos sobreviventes, em termos de estigma e sofrimento familiar;

  • evitar a romantização de vítimas de suicídio como mártires e objetos de adoração pública, e enfatizar o luto pela pessoa falecida;

  • a descrição das conseqüências físicas de tentativas de suicídio não fatais (dano cerebral, paralisia, etc), pode funcionar como um fator de dissuasão.

Além disso, é ideal que sejam divulgadas conjuntamente:

  • listas de serviços de saúde mental disponíveis e telefones e endereços de contato onde se possa obter ajuda;

  • listas com os indicadores de risco e sinais de alerta de comportamento suicida;

  • esclarecimentos mostrando que o comportamento suicida frequentemente associa-se com depressão, sendo que esta é uma condição tratável;

  • demonstrações de empatia aos sobreviventes (familiares e amigos das vítimas) com relação ao seu luto, oferecendo números de telefone e endereços de grupos de apoio, se disponíveis;

  • trabalhar em conjunto com autoridades de saúde na apresentação dos fatos;

  • referir-se ao suicídio como suicídio “consumado”, não como suicídio “bem sucedido”.

  • apresentar somente dados relevantes, em páginas internas de veículos impressos.


EPIDEMIOLOGIA

É difícil estabelecer um perfil predominante porque o número de suicídios é subestimado (a extensão varia de acordo com o país); as razões para isso incluem estigmas, fatores sócio-políticos e o comum registro como acidente ou morte por causa indeterminada. O suicídio é subestimado numa taxa de 20-25% no idoso e de 6-12% em outras faixas etárias. Além disso, a maioria das tentativas de suicídio permanece não relatada e não registrada; somente cerca de 25% dos que tentam suicídio precisam e/ou buscam atenção médica, não havendo portanto registros oficiais.

Dados do SIM, Datasus e IBGE entre 2000 e 2012 apontam que os brasileiros que mais se suicidaram foram os menos escolarizados, indígenas (132% mais casos que na população em geral) e homens maiores de 59 anos (29% a mais que as outras faixas etárias).

De acordo com dados do Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde (2019), quanto à violência autoprovocada (incluindo tentativas de suicídio) no período de 2011 a 2018 na faixa etária de 15 a 29 anos,

  • foi maior nas mulheres (67,3%) do que nos homens (32,7%)

  • perfil predominantemente brancos (47,5%), com ensino médio incompleto ou completo (33,7%)

  • um quinto (19,5%) dos casos apresentou alguma deficiência/transtorno

  • a maioria residia na zona urbana (89,4%) e nas regiões Sudeste (48,8%) e Sul (24,6%) do Brasil 

  • o envenenamento foi o meio de agressão mais frequente, correspondendo a 50,4% dos meios registrados, seguido pelos objetos perfurocortantes (17,8%).

Quanto ao suicídio no período de 2011 a 2018 na faixa etária de 15 a 29 anos,

  • comparando os anos de 2011 e 2017, houve um aumento de 10% na taxa de mortalidade por suicídio 

  • os maiores aumentos percentuais na taxa de mortalidade ocorreram no Acre (81%) e em Goiás (61%)

  • o perfil era majoritariamente do sexo masculino (79,0%), negros (54,9%), com 4 a 11 anos de estudo (58,2%), e de situação conjugal solteira, viúva ou divorciada (84,0%)

  • o enforcamento foi o meio mais frequentemente utilizado para o suicídio, com maior percentual no sexo masculino.

Esses dados são coerentes com a média global: embora mulheres tentem suicídio três a quatro vezes mais que homens, os mesmos suicidam mais que as mulheres; essa diferença se deve principalmente aos métodos utilizados: enquanto mulheres tendem à overdose de medicamentos ou envenenamento, os homens recorrem a meios mais violentos e rápidos como armas de fogo, enforcamento e salto de grandes alturas, apresentando, ainda, mais fatores de risco como abuso de álcool ou outras drogas e tradição de pouco abordar questões emocionais.

As minorias sociais são população de risco para o suicídio pois são continuamente expostas a desastres, violência, abusos, discriminação e isolamento, e possuem menos acesso a serviços de saúde e apoio social em geral. 

Para além disso, é preciso atentar também para a ampla gama de comportamentos que podem sinalizar um maior risco de suicídio, como

  • aparecimento ou agravamento de problemas de conduta e/ou de manifestações verbais sobre suicídio durante pelo menos duas semanas

  • comportamento retraído, inabilidade para se relacionar com a família e amigos 

  • doença psiquiátrica 

  • alcoolismo e abuso de substancias 

  • mudança no humor, hábito alimentar e no sono 

  • tentativa de suicídio anterior 

  • uma perda recente importante

  • história familiar de suicídio 

  • comunicações (faladas ou escritas) com teor de despedida 

  • doença física 

  • automutilação

  • diminuição ou ausência de autocuidado

  • exposição a riscos (sexo desprotegido, direção perigosa etc)

  • fascinação por temas relacionamentos à morte

  • facilidade de acesso aos meios (medicamentos, armas, venenos)

  • carência de apoio social

De acordo com Kutcher e Chehil (2012), metade de todas as pessoas que morrem por suicídio podem apresentar transtorno depressivo maior; portar um transtorno de humor aumenta em 20 vezes o risco de suicídio. Outras condições psiquiátricas frequentemente implicadas incluem esquizofrenia, transtorno de personalidade e transtorno de estresse pós-traumático. Mas esses dados variam: a pesquisa de Lieb et al. (2004) estima que 40% a 65% dos que consumam o suicídio poderiam ser diagnosticados com um transtorno de personalidade, sendo o mais comum o transtorno de personalidade borderline

Brezo et al (2008) e Goldsmith (2002) chamam atenção para o efeito da genética (30%-50%) sobre o risco de suicídio -- sendo grande parte desse relacionamento através da hereditariedade do transtorno mental e/ou de personalidade.

Embora a relação entre distúrbios mentais e suicídio esteja bem estabelecida em países de alta renda, vários suicídios ocorrem de forma impulsiva em momento de crise -- tais como problemas financeiros, términos de relacionamento ou dores crônicas e doenças.

SUICÍDIO E TRANSTORNO MENTAL

O suicídio costuma ser tomado como sinônimo de transtorno mental -- especificamente a depressão. A tendência é tanta que a ideação suicida e a tentativa de suicídio são critérios diagnósticos desta doença nos códigos vigentes; é comum até mesmo a referência a “distúrbios suicidas”.

É difícil traçar essa linha pois aquele que tenta ou consuma o suicídio obviamente experimenta sentimentos intensos de tristeza e desesperança, mas isso não indica, necessariamente, presença de psicopatologia. Ao mesmo tempo, não há como saber a proporção de casos com informação ignorada, visto que grande parte dos portadores de psicopatologias nunca são diagnosticados e/ou tratados.

Ainda assim, há trabalhos, como o de Henrikson et al. (1993), que registram o suicídio não patológico de 2% a até 12% dos casos.

Sem dúvida, os transtornos mentais e/ou de personalidade acarretam maior possibilidade de suicídio, constituindo um fator de risco clássico; na maioria das vezes, nesses casos, a morte não configura uma escolha deliberada, mas uma ação norteada pela doença.

Não é possível discutir suicídio sem levar em consideração a representação social da dor, isto é, como os grupos pensam e interpretam o sofrimento psicoemocional e a morte. Participam desta decisão elementos que não podem ser quantificados; não se trata de comparar ou hierarquizar sofrimentos, e sim de analisar como acontece esse sofrimento e quais os meios de enfrentamento de que se dispõe.

Embora o discurso conservador sobre o suicídio tenda a homogeneizar as motivações do ato em torno da doença mental (confusão mental e perda de autonomia, por exemplo), o suicídio apresenta significados variados que envolvem desde interrupção de um sofrimento insuportável à escolha sobre a própria morte e retomada da dignidade.

Sendo assim, pode tratar-se ou da aplicação de uma ideia patológica, ou da escolha deliberada de pessoa sem patologia mental. Não é possível, tampouco efetivo, inserir o paradigma do suicídio numa única esfera, seja ela mental ou social. É preciso estudar, ao lado das pesquisas quantitativas, outros aspectos: a análise dos “significados” é indispensável.

Referências:

Boletim Epidemiológico. Secretaria de Vigilância em Saúde. Ministério da Saúde 3 Volume 50. Nº 24. Set. 2019 

O Suicídio e suas relações com a psicopatologia: análise qualitativa de seis casos de suicídio racional. MELLO, M. F. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 16(1):163-170, jan-mar, 2000

PREVENÇÃO DO SUICÍDIO: UM MANUAL PARA PROFISSIONAIS DA MÍDIA. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. DEPARTAMENTO DE SAÚDE MENTAL. TRANSTORNOS MENTAIS E COMPORTAMENTAIS. Genebra, 2000

Efeito de Werther. ALMEIDA, A. F. Análise Psicológica (2000), 1 (XVIII): 37-51

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