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The Cognitive Unconscious (Kihlstrom, 1987)

Ainda no século XIX, em seu L'Automatisme psychologique, Janet descreveu o fenômeno da dissociação como uma desintegração das estruturas mentais em relação ao conhecimento consciente; com base em seus estudos clínicos de psicopatologia, ele desenvolveu uma teoria de automatismo psicológico que antecipou em muitos aspectos as noções atuais de modularidade e paralelismo. William James, em Principles of Psychology, sugeriu que a chave para a consciência é a auto-referência, isto é, para que haja experiência consciente contínua, um elo deve ser feito entre as representações mentais do evento e alguma representação mental do self como agente ou experimentador. Na concepção clássica de processamento cognitivo, o termo “inconsciente" descreve os produtos do sistema perceptual que não ficam sob vigilância ou ativação, bem como conteúdos da memória primária perdidos por terem sido deslocados antes que pudessem ser codificados e armazenados. A premissa é que, por não fazerem contato com processos mentais superiores, essas informações não poderiam influenciar experiência, pensamento e ação conscientes. De fato, a percepção consciente tem consequências específicas para a função psicológica — é necessária para o controle voluntário e para comunicar seus estados mentais aos outros, por exemplo. Entretanto, agora está claro que a consciência não deve ser identificada com qualquer função perceptivo-cognitiva particular (como percepção ou memória) ou com processos mentais superiores envolvidos no julgamento e resolução de problemas, pois todas essas funções podem ocorrer fora da consciência fenomenal, uma vez que a mesma é entendida como uma qualidade experiencial que pode ou não acompanhar essas funções.

Duas das mais relevantes teorias de processamento de informações são a ACT-R (Adaptive Control of Thought) de Anderson, proveniente da década de 1970, e a PDP (Parallel Distributed Processing) de McClelland e Rumelhart, da década de 1980 (ambas sujeitas a revisões recentes).

A ACT representa a abordagem simbólica — baseada no modelo computacional —, e pressupõe um armazenamento de memória único e unitário. Sua suposição mais importante é a classificação do conteúdo de memória em duas estruturas de conhecimento a) declarativas: unidades cognitivas sobre pessoas, objetos, eventos etc e b) processuais: habilidades e estratégias que operam com vistas a objetivos. O conhecimento declarativo pode ser de natureza episódica (caráter autobiográfico, referente ao self como o agente ou experimentador de algum evento, bem como ao ambiente único e contexto organísmico em que aquele evento ocorreu) ou semântica (“léxico mental", um conhecimento abstrato e armazenado sem referência às circunstâncias em que foi adquirido); é representado por uma estrutura de grafo, com nós representando conceitos e links associativos: a ativação se espalha de uma unidade cognitiva para outra ao longo dos links associativos, ativando ainda outros nós na rede de memóriada mesma forma acontece no conhecimento processual: os nós representam os objetivos da pessoa e as condições sob as quais alguma ação os alcançará. 

De acordo com modelos como ACT, a consciência é identificada como uma estrutura de armazenamento temporário conhecida como memória de trabalho, que é semelhante à memória primária do modelo clássico, mas com uma capacidade muito maior. A memória de trabalho contém representações ativas do organismo em seu ambiente atual, os atuais objetivos de processamento e conhecimento declarativo preexistente ativado por input de estímulos. Assim, o modelo afirma que as pessoas podem se tornar cientes do conhecimento declarativo (sobre si mesmas, seu ambiente, objetivos e etc), e que esta consciência depende da quantidade de ativação das representações em questão. No entanto, também sustenta que o conhecimento processual não está sempre disponível: estamos cientes dos objetivos e dos produtos da sua execução, mas não das próprias operações. 

O PDP é a variante recente da abordagem conexionista, que emprega o modelo neural: a analogia para o sistema de processamento de informação é fornecida pelo próprio cérebro, através das conexões sinápticas entre os neurônios, ao invés do computador de alta velocidade. 

Enquanto a ACT e modelos simbólicos assumem a existência de um único e central sistema de processamento (como a memória primária ou de trabalho), os modelos PDP postulam a existência de um grande número de unidades de processamento, cada uma delas dedicada a uma tarefa específica, porém simples; cada unidade, quando ativada, excita e inibe outras ao longo de uma rica rede de links associativos, e este padrão de influência mútua continua até que todo o sistema assuma um modo “estacionário” de ativação que representa a informação sendo processadaAs informações sobre um objeto ou evento são amplamente distribuídas em todo o sistema de processamento, ao invés de localizadas em qualquer unidade particular. Como a ativação de processos unitários individuais pode variar continuamente, não é necessário que um objeto seja totalmente representado na consciência para que as informações sobre ele influenciem experiência, pensamento e açãoAlém disso, somente alguns módulos são considerados acessíveis à consciência e ao controle voluntário — isso porque o grande número de unidades ativadas implica uma influência mútua e simultânea, de modo que as informações podem ser analisadas muito rapidamente, e tanto o número de unidades ativas quanto a velocidade com que elas passam informações entre si podem exceder o intervalo consciente. Por isso os modelos PDP afirmam que a consciência é uma questão de tempo, e não de ativação: o modo “estacionário” (que indica processamento) é alcançado muito rapidamente (cerca de meio segundo), e é nesse ponto que a informação representada torna-se acessível à consciência fenomenal; entretanto, se há ambiguidade no padrão de estímulo, o modo estacionário é retardado, e o conteúdo da consciência vai oscilar entre representações alternativas. De todo caso, a implicação clara do PDP quadro é que o processamento inconsciente é rápido e paralelo, enquanto o processamento consciente é lento e sequencial — e, em contraste com as teorias que restringem o inconsciente cognitivo a operações sensoriais-perceptuais elementares, os modelos PDP incluem funções mentais superiores envolvidas na linguagem, memória e pensamento.

É preciso entender que grande parte da atividade mental é inconsciente, no sentido estrito de ser inacessível à consciência fenomenal. Embora tenhamos acesso consciente aos produtos dos processos mentais, não temos acesso consciente às suas operações; por exemplo: na fala coloquial o ouvinte está ciente do significado das palavras proferidas pelo locutor, mas não dos princípios fonológicos e linguísticos pelos quais o significado desse enunciado é decodificado; da mesma forma, durante a percepção o visualizador pode estar ciente de dois objetos no ambiente externo mas não dos cálculos mentais realizados para determinar aquele é mais próximo ou maior do que o outro. O conhecimento processual inconsciente deste tipo parece ser inato; a mente consiste em um número de módulos cognitivos inatos de domínio específico controlando atividades como linguagem e percepção visual, “programadas” no sistema tá nervoso e operando fora da consciência e do controle voluntário. 

No caso de aprendizado de habilidades, o processo é inicialmente acessível à consciência e mais tarde fica inconsciente em virtude da prática, como no exemplo de músicos e atletas que relatam que a atenção consciente, na verdade, interfere no desempenho. Em outras palavras, habilidades que não são inatas podem se tornar rotinizadas por meio da prática, e suas operações, portanto, processadas inconsciente.

O conhecimento processual inconsciente também foi descrito como automático em oposição a controlado/de esforço; processos automáticos são assim chamados porque se bastam da apresentação (input) de estímulos específicos, independentemente de qualquer intenção por parte do sujeito, além de consumirem pouco ou nenhum recurso de atenção. A quantidade de atenção que pode ser alocada a várias atividades é limitada, produzindo um “gargalo” no processamento de informações, e por isso nossa capacidade de realizar duas ou mais tarefas simultaneamente é limitada pelas demandas que elas fazem sobre os recursos atencionais disponíveis. Se as demandas excedem os recursos, as tarefas interferem umas nas outras. Embora os processos rotinizados consumam pouca ou nenhuma atenção, pode ter algumas consequências negativas para questões de decodificação ou memória — como, por exemplo, o digitador que não se lembra do que acabou de digitar, ou o motorista que não se lembra de marcos ao longo do caminho. 

Experimentos sobre automaticidade são importantes porque indicam que uma grande quantidade de atividades cognitivas complexas podem ocorrer fora de consciência, desde que as habilidades, regras e estratégias exigidas pela tarefa tenham sido automatizadas. Eles expandem o escopo de processos pré-atencionais inconscientes, que anteriormente eram limitados a análises perceptuais elementares das características físicas de estímulos ambientais. Agora está claro que existem circunstâncias sob as quais os significados e implicações dos eventos podem ser inconscientemente analisados também. Assim, as pessoas podem chegar a conclusões sobre eventos — como sua valência emocional — e agir sobre esses julgamentos, sem serem capazes de articular o raciocínio por meio do qual foram alcançados. Isso não significa que a atividade cognitiva não está envolvida em tais julgamentos e inferências; isso significa apenas que a atividade cognitiva, sendo automatizada, é inconsciente no sentido estrito do termo, ou seja, indisponível para a consciência introspectiva.

Os processos inconscientes exercem um imenso impacto na interação social: por meio da operação rotinizada de julgamento social, o sujeito formula impressões de pessoas sem qualquer percepção consciente; o processamento automático ativa estruturas de memória preexistentes correspondendo às características do evento de estímulo, bem como uma cadeia em virtude da propagação de ativação. 

Isso porque análises complexas, uma vez rotinizadas, deixam de ser acessíveis à percepção consciente — o que levanta a hipótese de percepção subliminar. A probabilidade desse tipo de percepção está diretamente relacionada à intensidade do estímulo: pode ser que alguns estímulos sejam muito fracos para serem conscientemente detectados, mas não para exercerem impacto na percepção e cogniçãoAssim, tais estímulos subliminares são processados pelo sistema sensório-perceptivo. A percepção subliminar é frequentemente estudada por meio de um taquistoscópio, um instrumento que exibe imagens por tempo específico (por exemplo, menos de 5 milissegundos) — breves demais para serem percebidos conscientemente. 

É provável que tais estímulos sejam analisados de acordo com seu significado emocional, reapareçam nos sonhos da pessoa ou afetem o desempenho dela em alguma tarefa. 

Este aspecto da vida mental é chamado de processamento pré-consciente — não sendo, no entanto, pré-consciente o processamento em si; esse termo descreve o conhecimento declarativo que não foi percebido conscientemente, mas está sujeito a isso. Ele influencia a facilidade com que certas idéias são trazidas à mente, e a maneira pela qual os objetos e os eventos são percebidos e interpretadosprovavelmente se limita a análises de significado simples, e opera para amplificar tendências preexistentes.

Porque o processamento pré-consciente parece ser mediado pela ativação de representações mentais relevantes já armazenadas em memória, questiona-se se ocorre o mesmo com a memória. Ou seja, assim como existem efeitos de estímulos não percebidos conscientemente sobre a experiência, pensamento e ação, podem haver efeitos semelhantes sobre a memória.

A partir de casos clínicos de encefalopatias que causam amnésias (como a síndrome Wernicke-Korsakoff), estabeleceu-se uma distinção entre memória explícita e implícita; memória explícita requer a lembrança consciente de um episódio anterior, enquanto a memória implícita é revelada por uma mudança no desempenho de alguma tarefa devido a experiências passadas das quais o sujeito não tem lembrança consciente.

Embora se assemelhe à percepção subliminar, os efeitos da memória implícita se distinguem porque, após externalizados, são claramente detectáveis ​​pelo sujeito, uma vez que são representados na consciência fenomenal no momento de ocorrência.

Em resumo, existe uma série de processos mentais complexos — isto é, não mais limitados a funções elementares sensório-perceptivas — que são inacessíveis à consciência introspectiva: desde operações inatas relativas à linguagem e percepção à habilidades automatizadas como julgamentos e inferências sociais. No entanto, é possível que esse conhecimento venha à tona através de fenômenos cognitivos como percepção subliminar e memória implícita, os quais sugerem uma categoria de estruturas de conhecimento pré-conscientes, que, ao contrário do conhecimento processual automatizado, estariam disponíveis para a consciência com maior facilidade. 

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