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por que eu não me chamo neurodiversa

*devido ao contexto, termos como “psicopatologias” ou “transtornos mentais” foram substituídos por “condições”.

a semântica dos transtornos mentais/de personalidade é uma área constantemente reformulada; a semiologia psi pede essa busca incessante por termos mais precisos e menos estigmatizantes para os sinais, sintomas e diagnósticos, de modo que os significantes se alteram ou caem em desuso em questão de década. 

os conceitos acordados ultrapassam a esfera estritamente de denominação neutra ou passiva, e se configuram como entidades sobretudo sociais, que nascem e fazem nascer discursos. assim, se relacionam diretamente com a percepção e a atitude frente à doença, por a) buscarem traduzir em termos comuns (compartilháveis) experiências e sofrimentos tão íntimos, isto é, culturalizar o psíquico e b) demandarem excessivo esforço devido a uma psicofobia estrutural que instrumentaliza e deturpa sintomas e diagnósticos.

na década de 1990, a antropóloga autista Judy Singer cunhou o termo “neurodiverso” (neuroatípico/neurodivergente) para se referir aos indivíduos autistas; para ela o autismo se tratava de uma configuração neurológica diferente e esperada no próprio desenvolvimento biológico da espécie humana. 

o movimento da neurodiversidade ganhou força alguns anos depois,

defendendo que o autismo não se trata de uma doença mental (status que obrigaria o tratamento invasivo e expectativas de cura), e que o problema real reside não na condição em si e sim na imposição social de padrões de normalidade. esse movimento considera o autismo como uma identidade e tem possibilitado a criação de uma cultura específica de visibilidade e valorização; atualmente a ideia de neurodiversidade se estende a outras condições mentais como TDAH e dislexia, e uma fração do movimento defende a inclusão também das condições chamadas agora de transtornos mentais/de personalidade - como depressão, bipolar, borderline etc. seu compromisso base é combater o capacitismo e o estigma a que são submetidos os portadores de condições mentais divergentes, lutando por significações alternativas que atendam à especificidade científica ao mesmo tempo que enfatizem a individualidade do portador.

depois de psicopatia, doença mental, transtornos mentais e psicopatologia, a influência da neurocultura tem insistido em substituir a ideia das referidas condições por “transtornos do neurodesenvolvimento”; isso porque  já foi observado que remeter a evidências cerebrais é interpretado popularmente como mais válido e confiável. além disso, “neuro” parece conferir uma distância entre portador e condição, uma vez que a localiza numa área bem definida do cérebro, transpondo para o físico aquilo anteriormente relacionado à personalidade e moral do sujeito. ao localizar no cérebro, o sofrimento psíquico pode, supostamente, ser verificado por meio de exames como a fMRI.

acontece que as condições mencionadas, incluindo o espectro do autismo, apresentam evidências de que não derivam estritamente de causas neurais, ainda que apresentem correlatos; e mesmo esses correlatos não são suficientes pra explicarem por si só a condição ao qual se referem. 

isto é, se meu intuito é me voltar para as percepções, experiências, idiossincrasias e outras expressões fenomênicas do portador de borderline (exemplo), saber que provavelmente ele possui falha comunicacional entre córtex pré frontal e sistema límbico, amígdala comparativamente menor e hiperativa e deficiência congênita dos receptores de serotonina não diz nada relevante sobre os “comos” do transtorno, sobre as interpretações próprias daquele que sofre e suas atitudes frente a isso - principalmente quando se trata da maioria das pessoas comuns, que não têm contato e/ou interesse sobre vocabulário e questões tão específicas da neurociência e topografia cerebral.

se reiterar a dimensão neuro em que configurações cerebrais tais implicam determinada condição (e portanto as mesmas entre os portadores), é contraditório que o movimento que assim se chama busque enfoque nas diferenças individuais. como questiona Ortega, por que não “psicodiversidade”?

além disso, a postura de nisso focalizar pode subordinar e/ou ofuscar os impactos reconhecidos dos fatores ambientais que atuam fortemente sobre o desenvolvimento e curso das psicopatologias/condições

a maior crítica ao movimento se refere aos seus limites de representação e defesa, bem como de adoção de uma postura seletiva, já que a ideia de neurodiversidade parece contemplar apenas os casos em que as referidas condições se manifestam de maneira mais “branda”, e ainda permitem funcionalidade, interação social, comunicação e certa qualidade de vida - o suficiente para que tratamentos invasivos e contínuos possam ser dispensados. isto porque a ideia comum de doença pressupõe obrigatoriamente tratamento e cura, e para as famílias dos “neurodiversos” ambas as intervenções desrespeitam e traem o eu verdadeiro dos autistas, disléxicos, bipolares etc. por exemplo: esse sujeito não porta nem possui autismo, ele é autista; o autismo se refere à natural identidade e ser-no-mundo (assim como a orientação sexual, por exemplo) ao invés de uma patologia apartada dessa pessoa.

convenhamos que a teoria é linda. a teoria do movimento ressignifica, confronta convenções, liberta o sujeito do peso social da loucura, da incapacidade, do defeito natural e imutável. mas exatamente por defender essa postura é que muitos criticam não em busca de invalidar e frear o movimento, mas sim de adequá-lo de modo a refletir sobre a exclusão que contraditória e involuntariamente impõe, subdividindo a população “neurodiversa” em funcionais e não-funcionais.

o movimento aponta que o real problema das condições, anteriormente creditado à elas mesmas, parte na verdade da visão e atitude social frente a elas. isto é, não seriam as características (chamados antes sinais/sintomas) do autismo ou da bipolaridade que provocam o sofrimento do sujeito mas sim a ignorância, o despreparo e o preconceito alheios em relação a eles. 

definitivamente, a reação social estigmatizante intensifica sintomas, embasa a autodepreciação, míngua políticas públicas, isola e ridiculariza; assim a psicofobia também constrói o transtorno/condição, pois o circunscreve no mundo com a carga valorativa de desgraça e falha pessoal. o sofrimento psíquico é metaforizado como responsabilidade e inferioridade daquele que sofre, limitando as possibilidades de expressão. mas essa realidade histórica não minimiza a substância da condição, pois a) é impossível pensar o sintoma independente da interação, pois esse corpo não se dissocia do mundo e b) situações sociais favoráveis de fato amenizariam a manifestação e possibilitariam mais chance de enfrentamento e recuperação, mas não incidiriam sobre a existência ou não do transtorno/condição.

o ser humano é possível apenas na tríade biológico-psicológico-social, e assim também o é seu processo de saúde-doença; é preciso entender que a doença é um acordo que parte de evidências biológicas em interação com diversas formas de prejuízo psicológico e social; eleger um agente patogênico e localizá-lo num órgão não é mais que endossar o ultrapassado modelo biomédico. apenas a partir da integração das dimensões é que verdadeiramente se concebe e se intervém na saúde-doença - que se trata de um processo interminável e não de um status fixo. contextualizar possibilita conferir identidade e dignidade àquele anteriormente chamado de “portador”, atentando desde seus desequilíbrios químicos às percepções pessoais do estar-doente.

outra crítica ferrenha é sobre a apropriação da ideia de neurodiversidade para designar também transtornos mentais/de personalidade como depressão, transtorno bipolar ou borderline; “apropriação” porque um termo criado especificamente para o autismo incorpora forçosamente transtornos mentais e de personalidade, sem considerar suas distinções ao inscrevê-los num mesmo rol, e tampouco a realidade dolorosa que abate a maioria. 

considerar o autismo, a dislexia, a bipolaridade e outros como apenas uma identidade suscita a possibilidade de reducionismo dessa pessoa à sua condição e de reforço dos sintomas prejudiciais. é fato que as expressões dos transtornos influenciam todos os aspectos da vida, em fases críticas até mesmo dominando o indivíduo, e exatamente por isso a autonomia é essa linha tênue que precisa sempre ser assegurada e expandida através da compreensão e/ou tratamento.

sim, lembremos que assim como acredita Jamison, nem só perda e lamento são feitos certos casos; exatamente pela significação individual é possível que períodos brandos de mania intensifiquem a criatividade, a sensibilidade crônica do borderline acentue empatia, o pensamento acelerado da tourette ajude a desenvolver varias atividades num ritmo próprio. mas, da mesma forma, o espectro severo do autismo compromete a comunicação, a instabilidade do borderline impede relações saudáveis, a dificuldade grave de concentração e assimilação do TDAH prejudica o aprendizado básico. as condições variam de indivíduo para indivíduo ainda que o diagnóstico seja o mesmo, de modo que não se pode jamais generalizar, sob o risco de invisibilizar e excluir aqueles que apresentam níveis realmente incapacitantes.

criticar pontos do movimento da neurodiversidade não significa concordar com o capacitismo. significa reiterar que cada condição se manifesta de maneiras singulares e que comumente o sofrimento é uma realidade objetiva que pede acesso à medicação e à psicoterapia, rede de apoio e políticas inclusivas em geral. o esforço de confrontar o estigma histórico e marginalidade a que são submetidos os portadores de condições mentais divergentes implica olhar para os portadores e famílias que têm suas vidas impedidas pela severidade da manifestação e que apenas através de tratamento intensivo conquistam a dignidade e a autonomia. significa jamais abandonar a reivindicação de intervenções multiprofissionais acessíveis e gratuitas. significa discordar do determinismo e sobretudo criar espaços seguros para sentir e agir de acordo com particularidades que não atendam ao modelo mental/comportamental cristalizado. 

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