“psicopata” não é uma categoria descritiva, mas sim uma medida variável que se manifesta através de traços; a escala PCL-R (psychopathy checklist-revised) de Hare lista:
com relação a fatores interpessoais/afetivos: lábia/charme superficial; senso grandioso de autoestima; mentira patológica; ausência de remorso ou culpa; afeto superficial; crueldade/falta de empatia; falha em aceitar responsabilidade pelas próprias ações; comportamento sexual promíscuo; ludibriador/manipulador.
com relação ao estilo de vida desviante ou antissocial: falta de objetivos realistas de longo prazo; impulsividade; irresponsabilidade; versatilidade criminal; necessidade de estimulação; estilo de vida parasita; controle deficiente do comportamento; problemas comportamentais precoces; muitas relações conjugais de curta duração; revogação da liberação condicional; delinquência juvenil.
esses traços podem estar presentes desde a infância, já que a psicopatia se trata de um desvio relacionado à hereditariedade e diferenças neuroanatomicas, mas ainda assim indicam tendências variáveis. um ambiente com influências positivas proporciona melhor gerenciamento de riscos, amenizando os traços psicopáticos da personalidade (incidindo mais sobre seu modo e curso), mas não é determinante suficiente para o surgimento ou não de um transtorno mental e/ou de estruturação da personalidade - razão pela qual não se deve adotar a noção de “sociopata”.
classificada atualmente como um distúrbio de personalidade, a psicopatia não é considerada uma doença mental no meio psiquiátrico, pois configura-se de modo atípico - isto é, não apresenta psicose ou neurose; os distúrbios de personalidade possuem etimologia multifatorial, são considerados “imutáveis” e “incuráveis”, pois se desenvolvem em tenra idade e persistem com intensidade moderada pelo resto da vida. o indivíduo tem, aparentemente, plenas capacidades mentais, mas não sente, pensa ou age ao modo dos demais, pois apresenta anomalias (termo que não deve ser imbuído de juízo de valor) constitucionais.
são varias as acepções do termo; inicialmente referindo-se a qualquer portador de doença mental, na década de 1990 passou a descrever a categoria de transtorno de personalidade, e atualmente encontra-se vinculado especificamente ao transtorno de personalidade antissocial. ainda que partilhem características, quem possui TPA não é, necessariamente, psicopata; na verdade, apenas 15% a 30% dos antissociais são psicopatas (Huss; Matthew, 2011).
a psicopatia diz respeito a um construto separado de distintos traços da personalidade que afetam as emoções e a interpessoalidade, gerando em maior ou menor grau comportamento caracteristicamente antissocial de infração à moralidade subjacente; possui um componente hereditário de cerca de 50%, e pode estar relacionada a danos no córtex orbito-frontal e ventromedial, córtex cingular anterior, lobo médio-temporal e/ou amígdala.
entretanto, o termo é historicamente vinculado à criminalidade, abandonando, portanto, o estrito dos campos psiquiátrico, psicológico e forense para se popularizar como sinônimo de perversão humana.
mas afinal, indivíduos psicopatas são capazes de julgar moralmente?
de acordo com Sinnot-Armstrong, há duas possibilidades:
clássica: os psicopatas fazem julgamentos morais, mas não se importam com a moralidade de seus atos, pois lhes falta a motivação emocional;
não-clássica: os psicopatas não fazem julgamentos morais genuínos, apenas fingem fazê-los, pois estes dependem também de emoções.
no clássico dilema moral trolley case foi provado que alguns cenários envolvem uma participação emocional em maior medida que outros, e que essa diferença afeta o julgamento moral; dito isso, a pesquisa de Glenn, Racine e Schug (2009) mostra que as áreas cerebrais ativadas variam conforme a natureza pessoal ou impessoal dos dilemas. Cushman, Greene e Young, 2010 mostraram que indivíduos com deterioração emocional, tal como afeto reduzido e falta de empatia, possuem o raciocínio deontológico prejudicado: diante de dilemas morais que não envolvem/envolvem menor pessoalidade eles são capazes de reconhecer o que é correto através da convenção; mas, quando a situação pede a atribuição de valor moral pelo próprio indivíduo à uma ação concreta/per si, eles diferiram das respostas médias pois eram incapazes de atitudes emocionais que conferem significado ao valor da decisão. isso porque as emoções têm o papel de fornecer arcabouços às pessoas para que elas possam julgar uma situação como moralmente aceitável através da empatia, da compaixão, do afeto, do respeito, da culpa, da vergonha e etc e sintam-se sinceramente impelidas a realizá-las ou não.
em 1941 Cleckley já mencionava a falha semântica do psicopata; de fato, estudos de processamento da linguagem sugerem que a psicopatia é associada a alterações no processamento de material semântico e afetivo, isto é, há anormalidades diante de estímulos abstratos e emocionais (Kiehl, 2008).
indivíduos psicopatas possuem entendimento intelectual do que é ou não aceitável de acordo com os padrões sociais, mas não possuem as demais razões necessárias às decisões morais; esses déficits resultam de anormalidades neurobiologicas e estão presentes desde a infância, incluindo:
1. incapacidade de assumir a perspectiva do outro e de se preocupar pelo sofrimento dele;
essa incapacidade se manifesta em vários níveis, e no nível mais básico os indivíduos mostram falhas no reconhecimento de expressões faciais de medo em outros indivíduos (Blair et al., 2001; Blair et al. 2004), e de tons de voz que indicam medo (Blair et al., 2005), o que limita a capacidade de reconhecer quando outra pessoa está sofrendo. tais falhas em adotar a perspectiva emocional dos outros corroboram com estudos de diferenças estruturais e funcionais na amígdala e no córtex pré-frontal. quanto à amígdala, região do cérebro envolvida no processamento emocional, Yang et al. (2009) encontraram uma redução de 18% no volume nesses indivíduos, e o funcionamento reduzido também foi observado, principalmente frente a estímulos que invocam emoções sociais (Gordon et al., 2004).
quanto à região orbitofrontal/ventromedial do córtex pré-frontal, responsáveis pelo processamento de emoções sociais, sistema de recompensa e tomada de decisões, dois estudos com indivíduos psicopatas encontraram substância cinzenta reduzida na orbitofrontal (de Oliveira-Souza et al., 2008; Yang et al., 2009), bem como seu funcionamento reduzido durante tarefas relacionadas à emoção (Gordon et al., 2004; Muller et al., 2003; Schneider et al., 2000); na ventromedial também foi observada atividade reduzida em testes de violações morais (Harenski et al., 2010).
2. Ausência de medo das consequências negativas geradas por comportamentos imorais;
o medo de consequências negativas (como multa ou prisão) decorrentes de transgressões morais é outro fator que impede seu cometimento. no entanto, indivíduos com psicopatia demonstram ausência de ansiedade quanto a isso, apresentando inclusive respostas fisiológicas reduzidas diante de estímulos de ameaça (Hare 1965, 1982; Hare et al., 1978; Ogloff e Wong, 1990).
a incapacidade de sentir medo frente a estímulos negativos também tem sido associada a danos na amígdala, e está presente em idade muito precoce: Gao et al. (2010) descobriram que o condicionamento inadequado do medo aos 3 anos estava associado a crimes aos 23 anos.
3. incapacidade de atentar a sinais periféricos (sofrimento alheio ou ameaça de ser punido) e alterar comportamentos prejudiciais;
os indivíduos psicopatas apresentam também déficits cognitivos na atenção que podem levar à redução do processamento de informações, como sinais de angústia que promovem empatia ou sinais de punição que servem como guias importantes para o comportamento. esses déficits prejudicam significativamente a capacidade de alterar o curso de ação e estão relacionados ao mau funcionamento no córtex pré-frontal. o córtex orbitofrontal está envolvido no processamento de informações de recompensa e punição (Rolls, 2000) e nas respostas inibidoras (Vollm et al., 2006), e pacientes com lesão nessa região demonstram impulsividade, falta de planejamento e comportamento desinibido (Damasio et al, 1990).
além disso, essa incapacidade de alterar o comportamento também pode resultar de uma maior sensibilidade à recompensas: estudos de imagem cerebral revelaram aumento do funcionamento e volume do striatum, uma região do cérebro envolvida no processamento de recompensas. Buckholtz et al. (2010) descobriram que os traços impulsivos antissociais da psicopatia foram associados a maior liberação do neurotransmissor dopamina relacionado à recompensa no striatum.
déficits cognitivos no processamento de informação também prejudicam a tomada de decisões morais, pois aumentam a atenção para recompensas e reduzem atenção a sinais de empatia e punição.
pacientes com danos no córtex orbitofrontal demonstram prejuízos tanto cognitivos (pouco planejamento, impulsividade) quanto afetivos (falta de empatia, embotamento emocional), sistemas altamente dependentes um do outro e ambos necessários para o desenvolvimento moral adequado (Kennett, 2006).
segundo Fischer e Ravizza (1998), um indivíduo não é moralmente responsável por um comportamento específico se o comportamento em questão “é atribuível a uma lesão cerebral significativa ou a um quadro de desordem neurológica” (p. 35) que priva esses indivíduos do tipo certo de razões-responsividade. nesses casos, não se pode dizer que há integral controle de orientação sobre seu comportamento. ainda de acordo com Fischer e Ravizza, embora animais inteligentes, crianças, e (alguns) psicopatas possam mostrar uma certa de capacidade de decisões racionais, eles não devem ser julgados como moralmente responsáveis, porque embora possam ter a capacidade cognitiva de responder instrumentalmente, eles não parecem possuir as demais capacidades necessárias para decisões morais.
um padrão apropriado de responsividade a razões morais envolve a capacidade de reconhecer que "as reivindicações de outras pessoas intensificam suas próprias razões morais” (Fischer & Ravizza, 1998: 77). isso implica que não é suficiente apenas saber que certos atos envolvem uma transgressão moral (por exemplo, que, de acordo com a "sociedade", é moralmente errado fazer isso e aquilo), é preciso também ser capaz de identificar as próprias razões morais a favor ou contra uma determinada ação (senso moral). se um indivíduo carece disso, deixa de ser um agente moral.
a psicopatia é uma questão de grau, e traços psicopáticos existem em um continuum na população, assim como muitos dos déficits neurobiológicos observados. o grande desafio é determinar quais indivíduos devem ser responsabilizados e quais não devem ser, de forma que tentar traçar uma linha firme entre responsabilidade e inimputabilidade é inútil. o que se deve ter em mente é que nem todos os indivíduos têm a mesma capacidade de fazer decisões morais, e, ao invés de focar na punição do indivíduo que pode ter uma capacidade limitada de se comportar moralmente, deve-se enfatizar os esforços de reabilitação, garantindo ao mesmo tempo que a sociedade seja protegida e que os sentimentos e os direitos dos vítimas sejam reconhecidos.
referências:
DILEMAS MORAIS E PSICOPATAS. OLIVEIRA, Alexandra Carvalho Lopes de. 2012
Focquaert, F., Glenn, A. L., & Raine, A. (2015). Psychopathy and Free Will From a Philosophical and Cognitive Neuroscience Perspective. Free Will and the Brain: Neuroscientific, Philosophical, and Legal Perspectives, 103-124. http://dx.doi.org/10.1017/CBO9781139565820.007
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