o zeitgeist do século XVII trouxe consigo o reducionismo mecanicista, no qual todo humano seria explicável por mecanismos físicos. hoje, quatro séculos depois, essa posição parece não ter sido superada - e apenas atualizada através da genética e das neurociências.
friso que o problema recai não no conhecimento-objeto, mas sim na tendência instrumentalizadora que reflete o autoritarismo e o sensacionalismo científicos; isso porque o termo "neuro" foi convertido atualmente em um significante mestre, ou seja, um significante que explica quase tudo, uma etiqueta de garantia de que há nisso um saber seguro.
nossa fantasia de época é o sistema cibernético - e a insistência de assemelhar o cérebro a um computador, e o humano a um andróide; assim persiste a hipótese subjacente de que tudo o que somos tem sua localização: o sujeito é topográfico, isto é, insiste-se num mapping ou escaneamento que busca o humano nos neurônios e genes.
então despontam milhares de teorias sobre genes específicos dos transtornos mentais, do suicídio, da violência - além de explicações causalmente suficientes sobre estados mentais e comportamentos de acordo com regiões corticais estritamente delimitadas e possíveis discrepâncias neurobiológicas.
quando o estatuto cerebral se torna sinônimo de estatuto mental e da própria personalidade, prejuízos severos abatem diversas esferas socioculturais e clínicas.
já não bastasse a obsessão pelo cérebro, as abordagens recentes têm tentado restringir o foco, como se existissem neurônios dotados de uma localização especial ou propriedade intrínseca necessária e suficiente para a experiência consciente - a exemplo do córtex pré-frontal, descrito muitas vezes como mais relevante do que as demais áreas.
Hacker chama a isso de falácia mereológica: atribuir, a uma parte, o que corresponde a uma totalidade, isto é, àquilo que só é possível explicar em seu conjunto. tratar os achados neurocientíficos como se as microscopias respondessem e gerassem por si só estados emocionais e mentais é minimizar o livre-arbítrio humano. uma célula, um neurônio, certa parte do cérebro reagir não quer dizer que é uma resposta em termos subjetivos.
o fortalecimento do cientificismo, o progresso das neurociências, a explosão da tecnociência e das biotecnologias, as informações que associam a atividade cerebral a todos os aspectos da vida, a popularização pela mídia, a tendência a patologizar e medicalizar tudo aquilo considerado atípico ou divergente, e o apagamento da política e das práticas sociais que adotavam o sujeito como autor de sua existência, vêm produzindo, no imaginário social, uma crescente percepção do cérebro como detentor das propriedades e autor das ações que definem o que é ser alguém.
isso, por sua vez, permite o surgimento dessa nova figura antropológica - o sujeito cerebral (Vidal 2005; Ortega & Vidal 2006, 2007; Ehrenberg 2004): a redução da pessoa humana ao cérebro, fundamentada pela crença de que é ele a parte do corpo necessária e suficiente para sermos nós mesmos, o órgão que representa a essência do ser humano e o único verdadeiramente indispensável para a existência do self - isto é, a identidade pessoal como identidade cerebral.
assim, o cérebro (e muitas vezes suas regiões específicas) passa a responder por tudo aquilo que outrora se atribuía ao indivíduo e funciona como um ator social.
sentimentos e comportamentos são tomados como efeitos diretos de neuroquímicas específicas e per si; Nikolas Rose (2003) define esse processo usando o termo “self neuroquímico” .
uma subjetividade-objetiva desponta (não "em relação com o objetivo", como admitimos a inegável dimensão socio-cultural na construção do self), endossada pelos discursos técnicos, científicos e médicos, em que a perspectiva fenomenológica da primeira pessoa é reduzida à perspectiva teórica e tecnológica em terceira pessoa.
exemplo disso é como a doença mental se torna o novo "transtorno do neurodesenvolvimento", porque substituir o mental pelo neural promove uma distância segura entre indivíduo e sua patologia, já que esta residiria e teria como causa o cérebro (dessubjetivado) - minimizando o estigma social.
acontece que há uma imensa distância entre a atividade neuronal e atividade psíquica; e enquanto o reducionismo neuronal e genético perdurar, não há espaço suficiente para a expressão da ciência psicológica - já que essa se vê acorrentada ao modelo biomédico e forçada a ser mais uma ciência do cérebro que insiste na patologização e medicalização na área de saúde mental, enquanto seu objeto de estudo é a subjetividade holística.
o cérebro não criou o homem.
defender abordagens multidimensionais e interativas não significa uma oposição às perspectivas cognitivas e neurocientíficas (eu mesma sou uma apaixonada), e sim reinterpretar os achados à luz do biopsicossocial, admitindo que o humano não é correspondente a seus elementos isolados, que suas expressões psíquicas, emocionais e sociais não subordinam-se ao físico-químico, que estados e sintomas são incomparáveis de pessoa para pessoa porque as representações da dor são também singulares, e que portanto a autonomia da comunicação deve ser priorizada. só assim é possível uma esquiva da posição dogmática a que vem sendo submetida a ciência.
essa ideia de que os neurônios são o real que sustenta e suporta as experiências subjetivas recai necessariamente na discussão entre cérebro e mente; depois de séculos fadados à dicotomia corpo e mente, fingimos superá-la quando apenas reformulamo-la sob a égide dos termos científicos atuais, sendo esse corpo agora resumido ao cérebro.
talvez por isso a teoria dos correlatos neuronais ganhe cada vez mais notoriedade, pois quando se diz que qualquer acontecimento subjetivo possui seu correlato neuronal no organismo, admite-se uma duplicidade de fenômenos: o neural e o mental.
é preciso não esquecer que a ciência objetiva é feita por sujeitos dotados de intenções e que respondem a seus interesses; assim, uma parte das neurociências se chama localizacionista, pois pensa que as funções subjetivas estão localizadas em alguma parte do cérebro; outra parte, a que me encanta, defende que, por várias razões, não há possibilidade de localizar as funções subjetivas no sistema nervoso central.
Edelman e Tononi, dois dos mais vigentes nomes nessa área, escrevem em A universe of consciousness (2001) que não consideram que a consciência surja unicamente do cérebro, pois as funções superiores desse cérebro precisam interagir com o mundo e com outras pessoas. sua posição traz como fundamental a ideia de que os processos neuronais e biológicos não seriam significativos como os entendemos se órfãos de interação com o mundo e com as outras pessoas.
dessa forma, reiteram a função do Outro que tem sido minimizada pelo paradigma do sujeito cerebral: são os cuidadores, a família, a escola, os relacionamentos, a cultura - enfim, o Outro Social - que implementam essas funções subjetivas no suporte biológico. digo minimizada porque, embora seja um costume admitir a influência das experiências externas, não passa de um delineamento superficial que funciona para explicar aquilo que o neurônio, o neurotransmissor, o gene etc não conseguem. observamos que a maioria das perspectivas que enfocam as relações intersubjetivas e a experiência fenomênica são desacreditadas como válidas. existe uma desconfiança no eminentemente humano.
Damásio defende que o sistema nervoso central não é uma entidade isolada no corpo, mas se estende, de muitas maneiras, à periferia do corpo; corpo e sistema nervoso central, finalmente, não podem ser distinguidos, tampouco se pode distinguir o corpo de seu entorno.
as funções subjetivas singulares são chamadas de "qualia" - as qualidades subjetivas das nossas experiências mais íntimas, como “a vermelhidão do vermelho, ou o doloroso da dor” -, e são questões que não podem ser determinadas por configurações orgânicas. Edelman e Tononi acreditam que os qualia não são objetos adequados para estudo científico (salvo em um sentido trivial), e seu significado e descrição contam com padrões históricos e culturais únicos, do quão o indivíduo participa e manifesta, não sendo como um mero produto passivo.
o sistema nervoso central é necessário, mas não é suficiente para as funções subjetivas. a consciência e as funções subjetivas são um processo, e, como emergentes, não são algo que se pode objetivar.
é preciso aceitar que quando se trata do sujeito algo escapa aos parâmetros da ciência atual.
além disso, a tecnologia científica (especificamente a neuroimagem, o fMRI) de que dispomos agora não é suficiente para hipóteses claras o suficiente para que se adotem correlações tão determinísticas; as evidências de falsos positivos não cansam de aparecer.
é o caso da pesquisa de Bennett (2009) com um salmão morto: colocado na máquina de fMRI, o salmão apresentou imagens correspondentes a pessoas em situações sociais; ou de outros estudos de neuroimagem, que mostraram que quando alguém se queima numa panela de pressão, reage da mesma forma que um sujeito que ouve de alguém que seu parceiro é infiel. isso chama atenção não apenas para falsos-positivos, mas também para o fato de que em nenhum lugar biológico-neuronal vamos capturar o significado de uma experiência subjetiva.
uma reação não é uma resposta subjetiva, nem uma condição suficiente para respostas. nos métodos tecnocientíficos atuais sobre o funcionamento psíquico humano, o próprio humano faz falta. a linguagem, os relatos, as vivências, os traumas e o real aninhado nos sintomas são marginalizados por não estarem inscritos como o real da ciência neuronal ou genética.
REFERÊNCIAS:
O SUJEITO CEREBRAL. Alain Ehrenberg. PSIC. CLIN., RIO DE JANEIRO, VOL.21, N.1, P.187 213, 2009
As neurociências e o sujeito do inconsciente. Miquel Bassols. Opção Lacaniana online nova série. Ano 6 • Número 17 • julho 2015
Consciousness and Complexity. Giulio Tononi and Gerald M. Edelman. Article in Science · January 1999
O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade. Francisco Ortega. MANA 14(2): 477-509, 2008
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