Abordadas por Deutsch (1942) em relação à “personalidade como-se”, as noções de falso self ganham notoriedade com Winnicott (1949/1960), sendo centrais para O Eu Dividido de Laing (1960) e utilizadas como chave para compreensão dos tipos esquizofrênicos na clínica psicanalítica.
Antes de tudo, uma consideração íntima: costumo interpretar as argumentações psicanalíticas tradicionais com um certo resguardo de licença poética; isso porque se tratam de processos esmiuçados de maneira profundamente complexa, mas que não se perdem da própria lógica; apesar do caráter de pseudociência que reitero, o discorrer psicanalítico assume um modo de prosa poética, irmanado à abordagem fenomenológica que foca no sujeito doente como existência válida. A clínica confere dignidade àquele que sofre, centralizando a totalidade da pessoa observada numa outra linguagem.
A evolução sócio-histórica do transtorno de personalidade borderline lhe conferiu o título de “personalidade como-se” (também resquícios de uma discriminação psiquiátrica que perdura na literatura) e só o distinguiu da classificação de esquizofrenia latente (com manifestações psicóticas mais brandas) em 1980, quando na terceira edição do DSM.
Presente em indivíduos “saudáveis” como uma atitude social de polidez e carisma, o falso self serve ao propósito de zelar pelo “self verdadeiro” - isto é, o foro íntimo, dimensão livre de filtros de regulação social.
Sua patologização refere-se ao falso self cindido, isto é, defesa tipificada esquizofrênica, quando o bebê tem de interromper sua espontânea continuidade-de-ser (criação de mundo subjetivo) devido a um ambiente caótico e ameaçador.
O bebê ainda tem a ignorância saudável da onipotência, não percebendo a mãe e o mundo apartados de si; quando o ambiente não é suficientemente responsivo às suas necessidades ocorre um efeito traumático de ter de reagir para se proteger.
O falso self forma-se como uma barreira frente as angústias impensáveis do ambiente: uma formação precoce e desorganizada devido à presença intrusiva do mundo, que se impõe à subjetividade do bebê, fazendo-o descobrir a alteridade num período em que não tem condições próprias para lidar com ela, ou submetendo-o à mercê dos seus impulsos vitais (fome, dor, abandono) - comum em situações de ausência do adulto.
A experiência implica um contato direto e uma relação de trocas entre o self verdadeiro e o meio ambiente, ocorrendo apenas assim a integração dos impulsos saudáveis (em condição de serem utilizados e dirigidos para fins vitais). A cisão/separação entre os dois selves dificulta a apropriação dos impulsos vitais (sexuais, agressivos) pois o falso self se impõe como barreira/defesa dificultando o acesso ao self verdadeiro. A clivagem interrompe precocemente o processo de subjetivação, e seu grau maior define a dinâmica básica do paciente borderline.
Borderline aqui não se refere ao TPB como o conhecemos hoje; na clínica psicanalítica, borderline refere-se àqueles pacientes fronteiriços ou seja,
“(..) indivíduos que vivem nas bordas, ou seja, nas fronteiras entre a neurose e a psicose, podendo – em períodos mais saudáveis, quando o falso self cumpre seu papel defensivo, adaptativo, de forma mais íntegra – apresentarem uma dinâmica que se assemelha à do neurótico. Mas é importante não nos deixarmos enganar por essa aparência, pois noutros períodos mais críticos – quando o falso self malogra, sofrendo desintegrações –, esses mesmos indivíduos podem ser literalmente invadidos pelo mundo e afundar em sintomas esquizofrênicos de tipos variados” (Naffah Neto, 2007).
Nesse ínterim, são identificados dois subtipos de paciente borderline: a personalidade esquizóide e a personalidade como-se (as-if), seguindo Deutsch; resolvi me dedicar à descrição da personalidade como-se pois essa é creditada como raiz do TPB atual. Difere da Esquizóide porque não houve nem mesmo a ilusão de onipotência (segurança); as deficiências ambientais formaram um único relacionamento: o do falso self com o ambiente, isto é, uma barreira indissolúvel e total que isola o self verdadeiro. Ou seja, o indivíduo vive “colado” e fadado ao falso self, e portanto, em total submissão às demandas ambientais, e seu self verdadeiro permanece oculto e isolado dele próprio, sendo quase impossível qualquer contato com suas necessidades mais pessoais.
A caracterização do falso self no borderline traz em si a própria ideia de trauma presente na etiologia dos transtornos; é na infância que ocorre o processo constituinte da personalidade, e no caso borderline os estímulos e situações foram de tal forma intrusivos - e com isso quero dizer mais do que aquilo que uma criança pequena pode entender e lidar - e são percebidos e significados de uma outra maneira porque a criança ainda não possui experiência e maturação suficientes para processar questões complexas e dar a elas dimensões apropriadas que poupem sua integridade. Crianças não devem ter de se proteger sozinhas, e é o adulto, e, de forma ideal, a comunidade, os responsáveis por assistir à infância como base e fundamentação do indivíduo.
Desfocar do propósito de desenvolvimento saudável devido à exposição a eventos ameaçadores significa vivenciar um estresse cujos meios efetivos de manejar e reagir não são possíveis naquele momento, e assim se formula o trauma - cuja semântica remete exatamente ao acaso físico de quebra, ruptura, divisão em partes, separação, cisão.
Primeiro consideremos a exposição às “angústias impensáveis”, isto é, situações tão absurdamente assustadoras naquela fase que não são nem mesmo hipotetizadas. Adultos seguem suas vidas com a possibilidade de eventos estressores; ou seja, a angústia já pre-existe, pois algumas já vivenciamos e adquirimos background e muitas são sabidas; isso confere um certo nível de preparação ao menos cognitivamente, amenizando os impactos psicoemocionais. Já a criança descobre a coisa que a amedronta através da experiência imediata de um medo inescapável. E quando não há adulto para filtrar a recepção do medo, ensiná-la o modo alternativo de reagir e/ou desviar essa experiência ainda no início, o trauma se assenta e persiste.
O medo persistente, sobretudo para a criança, é sinônimo de abandono absoluto.
O que se quer dizer com “barreira” é que o impacto conduz seu desenvolvimento de uma maneira defensiva: a gênese da personalidade, isto é, do padrão idiossincrático, se dá concomitante às sensações permanentes de medo e abandono. A “barreira” diz respeito a uma reação contínua e involuntária, em que a criança tem interrompida sua formação subjetiva espontânea e se vê obrigada a construir sua subjetividade sobre padrões voltados pra autopreservação básica. Isso significa que o mundo é primeiramente percebido como fonte do que é negativo, sendo tudo passível de ser interpretado como potencialmente agressivo. A concepção da realidade se apoia na presença inexorável da violência. Obviamente o estresse precoce e a ideia subjacente do terror-em-tudo causa uma baixa tolerância à compreensão do que é violência. Basta pensar no evento inflamatório: a ferida é frágil.
Tal desvio de um desenvolvimento espontâneo volta os processos para a externalidade; o indivíduo borderline é escravo responsivo ao ambiente, eternamente a postos pra defender aspectos vitais. O cotidiano comum é na verdade uma constante submissão ao combate, seja por luta ou fuga.
O falso self é essa formação que tem de servir exclusivamente às funções de sobrevivência. Assim, asfunções mais complexas relacionadas às habilidades sociais, ou seja, capacidades referentes à construção, investimento, manejo e manutenção de relações, são as mais prejudicadas.
Os efeitos da construção da personalidade sobre formas “cindidas” desintegra a própria noção de si - dessas certezas tão basais que orientam o indivíduo ainda que mal se perceba. E como são afetadas as capacidades relacionais como um todo, intra (autopercepção) e interpessoalmente, o indivíduo borderline age ao modo patchwork, como uma colcha de retalhos dos seus outros. Isto é, involuntariamente introjeta características e modelos dos que com ele convivem, uma performance tomada como monetização (frequentemente mencionada na psicanálise da esquizofrenia). São varios os fatores que podem ser citados: a obrigatória construção desse modo de ser hiper-reativo, sempre submetido à tensão, deixa margem para um sentimento crônico de haver em si lacunas, vãos insuperáveis, vazios; a autopercepção prejudicada tende a uma autoestima baixa marcada por depreciação e desvalorização de si, o que é intensificado pela frequência de relações tumultuadas e frustrantes; o si-mesmo não parece uma opção viável. as relações também são sujeitas ao fenômeno da cisão, oscilando entre extremos dicotômicos de idealização-desvalorização, podendo indicar que a tendência à idealização de algumas pessoas é também responsável por sua incorporação.
Reitero: os mecanismos de constituição são sobretudo voltados pro externo.
A denominação como-se diz respeito à ideia [preconceituosa e reducionista] de que a personalidade do borderline se constitui unicamente pelo falso self (já que o verdadeiro é inacessível), e apesar de parecer uma personalidade integrada, é apenas COMO SE FOSSE, pois na verdade é uma imensa junção de características alheias. Além, claro, da questão do mimetismo (imitação).
“Embora seja muito comum que o seu arcabouço principal seja também formado pela função intelectual hipertrofiada e cindida, ele se preenche de formas humanas: uma espécie de amálgama, formado através de múltiplas mimetizações, identificações e introjeções de traços recortados do seu ambiente originário: a mãe, a tia, a babá etc. Essa colagem pode ter a forma exterior de uma verdadeira personalidade e, à primeira vista, enganar o observador externo, já que exibe uma capacidade de adaptação ambiental exemplar. Entretanto, pode-se dizer que se trata de uma personalidade sem alma, cuja característica maior é a aparência pura, destituída de sentido existencial: tudo parece ser, sem sê-lo verdadeiramente, daí o nome como-se.” (Naffah Neto, 2007)
Ao modo de colcha de retalhos, os fragmentos desse falso self (traços ambientais internalizados) atuam de maneira semi-independente, ou seja, sem nunca se integrarem efetivamente; assim, as múltiplas facetas dissociadas entre si, emergindo cada qual de acordo com o momento, justificam a labilidade emocional do paciente borderline - a alternância grave e veloz entre estados hiper-reativos, tão contrastantes entre si.
A internalização de características das pessoas com quem o borderline convive pode ser uma outra chave pra entender a comum dependência emocional em que a perda de algumas relações, ainda que apenas potencialmente, é vivida como verdadeiramente mutilante.
Essa dissociação entre estados é influenciada por/acarreta alterações nas funções cognitivas superiores - memória, atenção, percepção. talvez devido à essas diferenças processuais tomadas apenas a partir da ótica normativa e portanto interpretadas como ilógicas e falhas, o borderline seja alvo de uma literatura discriminatória que, a exemplo de Deutsch, que menciona um vazio na estrutura moral, “completamente sem caráter, inteiramente desimbuído de princípios” (1942).
O fato é que as queixas principais dos pacientes borderline giram em torno da confusão e incerteza identitárias, materializadas na constante sensação de uma existência falsa e forjada, sem nunca sentir que há acesso a uma dimensão verdadeira e livre desses estados transitórios, involuntários e imediatos.
A sensação de perigo iminente que obriga a construção gradativa da barreira torna a desconfiança generalizada uma constante - desconfiança quanto a si, quanto aos outros, quanto ao mundo. Esse é o maior impedimento pras relações, e isso inclui a terapêutica, visto que sendo esses mecanismos são involuntários e portanto não conscientemente percebidos o bastante pra que sejam verbalizados.
Além disso, a resistência psíquica ao tratamento se ancora nas consequências drásticas da destruição desse falso self: entrar em contato pela primeira vez com a realidade implica uma sensação de completa estranheza com os modos de então ordenação da vida; esse lento acesso ao foro íntimo interrompido traz outras significações e relações consigo mesmo, com os outros e com as coisas ao redor.
Referências:
NAFFAH NETO, Alfredo. A problemática do falso self em pacientes de tipo borderline: revisitando Winnicott. Rev. bras. psicanál, São Paulo , v. 41, n. 4, p. 77-88, dez. 2007 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2007000400008&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 09 jun. 2020.
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