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peçonha (14.05)

“basta tratar

controlar os sintomas

raciocinar, ser coerente, ponderar. 

é tão fácil 


e se você dosar, pode até ser bonito.”


existe muito mais além do sintoma encarcerado, deslocado e categorizado num dsm ou num cid. os sintomas ganham vida em pessoas.

gentes vidas subjetividades experiências particularidades

os sintomas ganham vida em pessoas

não é mecânico ou automático ou distante. tampouco nítido como cancro que se extirpa.


eles se combinam se entrelaçam se cruzam enrolados como liames flexíveis 


e se tornam outra coisa 

atingem outras estruturas e funções 

alcançam onde você não pode discernir 

e são convincentes dissimulados cínicos verossimilhantes argutos 

se enraizam nos esporos dos pensamentos e

você interpreta e julga através deles. 


num transtorno de personalidade, o que se chama de “sintoma” parece mais um modo de ser.


não há um estandarte. não há um ponto específico onde a história se bifurca

são formados assim. crescidos conosco, concomitantes e íntimos 

sempre estiveram ali os fetos das distorções. alimentados da mesma comida 

não “em” nós mesmos. mas feitos de nós mesmos

não existe um limiar, um instante em que se diferencia 

se sempre vivi assim, como posso acreditar que tenho ao invés de ser também? 

tudo que eu sei e aprendi é com. já se compõe-de, já inclui.


não é como um não-eu


apesar ou por causa disso, eu continuo com a crença de que eu tornei as pessoas que comigo conviveram nas épocas mais turvas. eu fiz aquilo com elas e elas foram apenas responsivas. reagiram como eram capazes, eu não as deixei escolha.

o que eu posso ser quando aguda não permite liberdade de qualquer lado

mas eu as corrompi com minhas visões sempre enviesadas e intoxicadas. e embora eu tente saber que eu também não era exatamente dotada de oportunidades e chances diferentes, ainda assim me cabe a culpa de tantos ter perdido por me apresentar feral. 

e quando me acusam de dar excessiva importância a isso, de focar todas as minhas energias nisso eu quero gritar “mas é tudo que eu sei ver é só o que sei sentir eu não escapo eu não tenho paz eu não tenho trégua martela e martela e parece muito ser tudo que há” e eu preciso me desculpar por ser mal entendida, eu não me faço entender facilmente. eu preciso me desculpar por passar a impressão de usar isso como desculpa, como indulgência, de tanto repetir e insistir a doença a doença a doença. eu não quero, me consome. mas é tudo que eu sou capaz e eu tenho tentado tanto. 

eu só preciso desesperadamente que entendam que meus erros não têm má intenção. eu não fui manipuladora e torturadora como se houvesse possibilidade de não ser àquele momento. naquele momento específico. eu preciso que você confie e acredite que eu consigo mudar, que eu quero te mostrar outra de mim, que quero sarar em ti o que fiz que quero me retratar e te recompensar. porque ainda que eu tenha ferido imitando o sem-cara que me assombra e fere também, me faz sofrer fazer sofrer. tudo que eu fiz, eu fiz por mim. eu não sou inimputável, mas preciso saber que sou perdoável. eu me condeno mais que sua mágoa, que sua raiva, que seu trauma de mim. eu me puno mais do que um dia você seria capaz de me punir. 

e toda mágoa que você possa ter me causado foi legítima defesa. eu sei que eu construí, eu sei que eu te levei a agir assim. eu anulei qualquer afeto resistente, eu repeli sua vontade de ficar, e você se sentiu traído e enganado e decepcionado e pensou que eu não era o que você acreditava e amava. e talvez eu não fosse mesmo, mas eu ainda posso ser. eu me sinto aleijada, nesse termo depreciativo que se rejeita e que eu não aplicaria a ninguém mais, apenas a mim. preciso de ferramentas e meios e muletas pra me fazer real - uma coisa tão básica tão trivial a qualquer um. mas eu não consigo, não me acho pessoa completa, apenas cheia e inchada do que me impede de ser decente e amável. 

eu arrasto essa culpa esse pecado essa condenação horrenda de ser capaz de converter as pessoas em violência e brutalidade através da minha própria violência e brutalidade. 

e eu me sinto em paz com toda a brutalidade que me dirigiram gratuitamente e imotivada. eu me sinto em paz com qualquer surra por pura manifestação de ódio livre da minha indução. entenda isso. eu não me importo mais, não me faz sofrer qualquer sofrimento anterior que não tenha minha cumplicidade. eu me sinto em paz se a maldade é livre de mim, unilateral, e eu não me ocupo em condenar o agressor por pior que ele seja. mas é a agressão, o maldizer, o mal entendido e a partida que eu provoquei e suscitei em qualquer um. é quando há no meio meu dedo séptico. é isso que não tem me deixado dormir ou comer há semanas, é isso que implora outra vez a dormência depressiva, é isso que mantém escondidas, mas presentes, as lâminas no box, é isso que me faz tocar as queloides e me comprazer. eu sinto vocês vingados, eu sinto que é essa a justiça que vocês merecem. eu sou acorrentada ao lamento. 

eu não tenho pretensão de minimizar responsabilidades alheias. apenas tenho a consciência de que a violência é espelhada. e que ninguém é preparado pra experiência de vislumbrar e ser afetado pelo isso e pelos quases em mim. é contagioso, pernicioso.

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