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borderline: comorbidades e etiologia

os transtornos de personalidade, apesar de seus sintomas incluídos nas categorizações de transtornos mentais, exigem diferenciação dos mesmos por se tratarem de uma organização que se desenvolve em tenra idade e permanece mais ou menos estável ao longo da vida.

o TP assemelha-se mais a um “modo de ser” que acarreta prejuízos em todas as dimensões existenciais do que propriamente a uma doença definida que se pode pontuar temporal e espacialmente.

segundo o DSM-IV, os TPs são "um padrão de vida interna ou comportamento que se desvia acentuadamente das expectativas culturais do indivíduo, manifestado em duas (ou mais) das seguintes áreas: cognição (modo de perceber a interpretar a si mesmo, outras pessoas e eventos), afetividade (amplitude, intensidade, labilidade e adequação da resposta emocional), funcionamento interpessoal e controle dos impulsos" [APA, 1994]. Já a CID-10 os define como "perturbação grave da constituição caracterológica e das tendências comportamentais do indivíduo, usualmente envolvendo várias áreas da personalidade e quase sempre associado à considerável ruptura pessoal e social" [OMS, 1993].

ambos consideram a idade limítrofe entre os 16 e os 18 anos; “idade limítrofe” refere-se não ao surgimento dos TPs e sim à fase de agudeza dos sintomas.

a incidência dos TPs na população geral foi estimada entre 10 e 15%, e os TP específicos de 0,5% a 3% [Casey e Tyrer, 1986; Maier et al., 1992; Zimmerman e Coryell, 1989; Weissman, 1993]. em populações clínicas (que procuram assistência médica) a prevalência pode chegar a 35% [Roca e Bernardo, 1988].

no DSM-IV os TPs estão agrupados em três grupos segundo características semelhantes: Grupo A (paranóides, esquizóides e esquizotípicos, o chamado grupo dos "excêntricos-esquisitos"), grupo B (anti-sociais, fronteiriços, histriônicos e narcisísticos, o chamado grupo dos "dramáticos-emocionais-volúveis"), e o Grupo C (evitativos, dependentes e obsessivo-compulsivos, o chamado grupo dos "ansiosos-temerosos").

a CID-10 classifica o TPs em oito categorias específicas: 

  • Paranóide (F60.0);
  • Esquizóide (F60.1);
  • Anti-social (F60.2);
  • Emocionalmente instável (F60.3), subdividida em tipo impulsivo (F60.30) e tipo borderline (F60.31);
  • Histriônica (F60.4);
  • Anancástica ou obsessivo-compulsiva (F60.5);
  • Ansiosa ou evitativa (F60.6));
  • Dependente (F60.7).
  • “Outros Transtornos de Personalidade" (F60.8) e “TP não especificado" (F60.9) referem-se àqueles TPs que estão presentes, mas não se enquadram nas categorias específicas; os "Transtornos Mistos de Personalidade" (F61) são aqueles que apresentam características de vários TPs específicos mas também não se enquadram.

o transtorno de personalidade borderline (emocionalmente instável; limítrofe; fronteiriço) classifica-se no Grupo B, que inclui também transtorno de personalidade histriônica (TPH) e transtorno de personalidade antissocial (AsPD). esses TPs se caracterizam pela presença de problemas de regulação emocional e de controle de impulsos.

o TPB é constantemente confundido com transtornos de humor, como TAB (post referente), e depressão; quanto ao diagnóstico diferencial entre TPB e episódio depressivo maior (EDM), a diferença principal diz respeito ao tempo de duração e à intensidade do episódio depressivo: no borderline os sintomas de depressão se estendem pelo período de alguns dias, sem a mesma intensidade ou consistência de um EDM. além disso, o TPB se caracteriza pela presença de relacionamentos afetivos mais agressivos ou irascíveis que depressivos; os processos mentais e o comportamento psicomotor são menos lentos que nos episódios depressivos maiores. o TPB costuma ser confundido também com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)

e transtorno de estresse pós traumático (TEPT). em comparação com outras psicopatologias, alguns aspectos devem ser pontuados:

  • a depressão no TPB se manifesta com ânimo baixo, curto e intermitente, ao invés de longa e contínua como em suas demais expressões;
  • as mudanças de humor são reativas ao ambiente e muito rápidas, durando de segundos a alguns dias, diferente das mudanças de humor no TAB, longas e sem um motivo específico/aparente;
  • a identidade é mutável e indecisa, ao invés da caracterização identitária comum, estável e concreta;
  • quanto à cognição, diferente da continuidade das alucinações na esquizofrenia, as alucinações e paranoias no TPB são referentes ao estresse;
  • a despersonalização é também pontual e resposta ao estresse, enquanto que em outras psicopatologias (ex: síndrome do pânico) pode aparecer continuamente.

aproximadamente 70% de pacientes com TPB se envolveram em comportamentos suicidas em ambientes clínicos, e em torno de 10% dos indivíduos com TPB acabam cometendo suicídio.

COMORBIDADES

são as outras condições mentais crônicas que podem acompanhar o diagnóstico específico; nos TPs as comorbidades são frequentes (em estudo de Naudeau et al. de 1999, o abuso de substâncias foi creditado como a comorbidade mais recorrente em transtornos mentais, sendo estimada em 88,2%, além de serem igualmente muito altas as recaídas nestes pacientes após tratamento de abstinência),

e, segundo Martínez Raga et al. (2005), o TPB é um "paradigma das comorbidades". o estudo de Grant, Chou e Goldstein (2008) descobriu que 75% das pessoas com TPB atendem aos critérios diagnósticos de um transtorno de humor, especialmente depressão nervosa e transtorno bipolar do tipo I; aproximadamente 75% atendem ao critério diagnóstico para transtorno de ansiedade; quase 73% atendem ao critério diagnóstico para abuso ou dependência de substâncias; e cerca de 40%, para Transtorno do estresse pós-traumático (TEPT).

de acordo com Ehrlich, Garakani, Palvos e Siever (2015), 

“Com frequência, os transtornos de humor, ansiedade e de uso de substâncias são comórbidos com TPEI [TPB]. Um estudo constatou que a prevalência de TPEI entre indivíduos com esses transtornos era de 29,4, 21,5 e 14,7%, respectivamente. Aproximadamente, 19% de indivíduos com TPEI também têm transtorno bipolar e apresentam episódios hipomaníacos, além de suscetibilidade emocional crônica e instabilidade afetiva. Em torno de 7% de indivíduos com TPEI são diagnosticados com, pelo menos, outro transtorno do Eixo II. Os TPEIs e os transtornos de personalidade narcisista (TPN) têm as taxas de comorbidade mais elevadas, isto é, 8,3 e 6,8%, respectivamente.”

entretanto, quanto às comorbidades, também são frequentes as críticas a um possível excesso classificatório que fragmenta tanto a própria eficácia diagnóstica quanto a noção fenomenológica do TP; a necessidade de subcategorizar em comorbidades talvez se deva à falta de dados baseados em evidências convincentes e demonstráveis de casos reais e comuns: a delineação atual de TP está baseada em um modelo unidimensional (observação de características específicas de personalidade). a adição de mais dimensões ao diagnóstico pode abarcar melhor a condição e reduzir significativamente a possibilidade de comorbidades [Livesley, 1995].

ETIOLOGIA 

pesquisas genéticas com gêmeos mono e dizigóticos mostraram aproximadamente 50% de correlação hereditária nos TPs, ou seja, um determinismo predominantemente genético e menos ambiental [Plomin e Daniels, 1987; Lykken, 1995].

o TPB é muito frequentemente associado à experiências traumáticas na infância, como introversão emocional em relação aos cuidadores, relacionamentos maternos distantes ou superprotetores, abuso sexual, maus-tratos e separações prolongadas, além de reação ao estresse e sensação de rejeiçãoassim, a confusão com o TEPT (Transtorno de Estresse Pós-traumático) se justifica: portadores de TPB comumente apresentam experiências traumáticas na infância e histórico de abuso sexual. essa prevalência pode indicar que esses traumas resultam na incapacidade de regular e modular as emoções, e de que os padrões de apego inseguro aumentam o risco de problemas de relacionamento na vida adulta.

  • os genes envolvidos no sistema da serotonina foram vinculados ao TPB. o alelo curto do receptor da serotonina - 5-hidroxitripamina (5-HT) - foi associado a sintomas semelhantes aos do TPB em macacos e ao comportamento violento em seres humanos. além disso, o uso de inibidores seletivos de reabsorção da serotonina (ISRSs) foi bastante eficaz no tratamento de depressão e de mau-humor em indivíduos com TPB. 
  • o desenvolvimento de TPB pode também estar vinculado à produção de monoamina oxidase-A (MAOA), já que pessoas com deficiência de MAOA e que sofreram abuso na infância tinham maior probabilidade de se envolver em comportamentos criminosos. 
  • além disso, foi descoberto que indivíduos com TPB tinham maior prevalência de lesões cerebrais em comparação com controles saudáveis, e que o sistema límbico e as amígdalas (áreas que controlam a emoção, as reações impulsivas e o medo) estão associadas, havendo evidências de que o hipocampo e as amígdalas são 10% menores em indivíduos com TPB. um estudo apontou que a função hiperativa da dopamina pode ser a causa da função ativa extrema das amígdalas.
  • exames de PET sugeriram que os indivíduos com TPB hipermetabolizam a glicose no córtex pré-frontal e no sistema límbico.
  • nos casos de indivíduos com TPB envolvidos em situações de abandono, há aumento no fluxo sanguíneo no córtex pré-frontal dorsolateral bilateral e ativação reduzida no córtex pré-frontal medial.


REFERÊNCIAS: 

Introdução aos transtornos de personalidade. Câmara, Fernando Portela. 2001

Ehrlich, Y, BS. Garakani, A, MD. Palvos S, MA. Siever, L, MD.  Personality Disorders, SAM. 2015


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