A COVID-19 se revela como um problema a longo prazo à saúde mental: as agências federais dos EUA chamam atenção para uma onda histórica de psicopatologias, entre as quais se destacam depressão, abuso de substâncias, transtorno de estresse pós-traumático e suicídio; além disso, os já limitados acessos a cuidados e profissionais dessa área serão exacerbados pela pandemia.
Os últimos dados (2018) quanto à saúde mental dos norte-americanos apontavam que:
- cerca de 1 a cada 5 adultos norte-americanos (47 milhões) apresentavam histórico de doença mental;
- 11 milhões sofriam de doença mental severa, tendo, portanto, prejudicada a sua funcionalidade social.
- em 2017-2018 mais de 20 milhões de indivíduos apresentaram episódios de transtorno depressivo maior e ansiedade;
- também em 2018, 1/3 dos adultos relatou preocupação, nervosismo ou ansiedade diariamente;
- as mortes por overdose aumentaram mais de três vezes nos últimos 19 anos;
- apenas em 2018 quase 50 mil norte-americanos morreram por suicídio e mais de 10 milhões apresentavam sérios pensamentos relacionados a suicídio.
Durante o período pandêmico pessoas predispostas inevitavelmente terão seus sintomas intensificados e mesmo entrarão em crise; mas a covid-19, como evento de estresse generalizado, expõe a sintomas ansiosos e depressivos mesmo a população que até então não relatava histórico de sofrimento por doença mental.
A saúde não se trata de uma condição ou status fixo e invariável, compreendendo portanto uma relação flexível e mútua com o ambiente; a proposta da normatividade de CANGUILHEM defende que entre saúde e doença existem outros estados que podem ser chamados de “anomalias”, e que não significam anormalidade nem admitem caráter valorativo, mas sim representam a capacidade adaptativa do indivíduo às condições que se encontra. Essa proposta se faz coerente principalmente porque adota que o que se entende categoricamente como doença pode representar, na verdade, uma série de reações naturais e compreensíveis a um determinado evento, e que necessita de uma preparação holística do sistema para a reestruturação de um equilíbrio funcional.
Pandemias são eventos naturais, mas em geral seculares, o que significa que, para as pessoas, trata-se de uma experiência primeira, e assim como não há imunidade biológica, não há background cognitivo e emocional para lidar com ela.
Como seres sociais que só se desenvolvem plenamente em um meio rico de interações e que portanto dependem dos outros em inúmeros níveis, o isolamento e a restrição abrupta e obrigatória de contato é vivida literalmente como dor - recentes pesquisas neurocientistas comprovam que sentimentos de exclusão e distanciamento social ativam circuitos cerebrais de dores físicas.
O medo de sofrer ou morrer com a infecção se une ao medo de sofrerem ou morrerem aqueles que se ama; a interrupção drástica dos padrões cotidianos (e esse rompante deve ser especificamente considerado pois não há oportunidade de adaptação); a consciência de que o sistema de saúde não pode arcar com os números - e portanto a sensação de abandono estatal; e a severa crise econômica que apenas se inicia vulnerabilizam o equilíbrio emocional da população; e tal sensação de solidão generalizada deve ser concebida também como problema de saúde pública, pois predispõe a doenças mentais e físicas, bem como à ideação suicida.
De acordo com a pesquisa KFF Tracking, realizada de 25 a 30 de março de 2020, 47% dos que estavam isolados relataram comprometimento mental.
IDOSOS
Os idosos não são apenas grupo de risco para a covid-19, como também para abalos mentais; saber-se mais vulnerável conduz à intensificação das preocupações quanto aos cuidados e ao distanciamento. Além disso, deve-se atentar que os mais velhos já estão mais expostos à doenças mentais, devido às próprias consequências físicas do envelhecimento, à sensação de dependência e invalidez e às situações recorrentes de abandono e luto.
Em pesquisas de 2018, embora 27% dos adultos norte-americanos com mais de 65 anos morassem sozinhos e quase 35% dissessem se sentir deprimidos ou ansiosos com frequência, essa população continua a ser subdiagosticada e subtratada.
Em 2018, os idosos representaram 1 a cada 5 mortes por suicídio, nas quais mais de 80% ocorreram entre homens - o que aponta também para relação entre saúde mental e construção de gênero, devido à perpetuação de estereótipos que associam a masculinidade à economia emocional e comunicativa.
CRIANÇAS E ADOLESCENTES
O fechamento das escolas e o retraimento em casa não apenas interrompem a educação como afetam o convívio familiar; a escola representa um pilar da socialização que não apenas oferece ensino formal, como também serviços de apoio como alimentação e psicólogos.
Além disso, essa faixa etária tende a reagir com mais resistência ao isolamento e às inúmeras medidas protetivas.
Adolescentes são reconhecidamente população de risco à doenças mentais, suicídio e uso de substâncias: em 2018, mais de 1 a cada 10 adolescentes de 12 a 17 anos apresentavam depressão e/ou ansiedade; o suicídio é a segunda maior causa de mortes entre adolescentes de 12 a 17,8 anos; e, também em 2018, mais de 1 a cada 10 estudantes do ensino médio relataram usar drogas (entre ilícitas e prescritas).
MULHERES
Além disso, os pais também estão sobrecarregados com as interrupções dos estudos dos filhos: pesquisa da KFF do início de abril mostra que quase três a cada 5 mulheres com filhos com menos de 18 anos relataram abalos em sua saúde mental, relacionados principalmente ao estresse e à preocupação - e, de acordo com o rastreamento de duas semanas antes, o número cresce significativamente, comprovando que os impactos psicológicos se agravam com a duração da pandemia e da quarentena. Essas mães apresentam mais efeitos negativos à saúde mental do que os pais (57% vs 32%, respectivamente).
DESEMPREGO E RENDA
A perda de emprego e a insegurança de renda também compõem os principais fatores de risco à doença mental; a maioria dos setores industriais foi afetado com o isolamento, e são muitos os países chegando à recessão. A perda de emprego está associada ao aumento da depressão, ansiedade, angústia e baixa auto-estima, e pode levar a taxas mais altas de transtorno por uso de substâncias e suicídios.
A crise decorrente da covid-19 é relatada como a pior desde a Grande Depressão, sobre a qual um estudo datado do final de 2007 descobriu que, para cada aumento percentual na taxa de desemprego, havia um aumento de cerca de 1,6% na taxa de suicídio.
Assim como os recém desempregados, as pessoas de baixa renda são mais vulneráveis tanto a apresentar doença mental quanto a contrair a covid-19; fatores como alimentação precária, trabalho extenuante, menor nível de escolaridade e contínua exposição à varias formas de violência predispõem essa população a ser infectada e a sofrer com subdiagnóstico e subtratamento; a experiência da pandemia pode, portanto, ser vivida com mais impacto físico e mental pela população pobre do que por àqueles de maior poder aquisitivo.
A doença mental prejudica ainda mais a economia, pois debilitam e afastam trabalhadores e sobrecarregam ainda mais o sistema médico.
É importante reiterar que, nos países em que os auxílios emergenciais não são suficientes para uma relativa segurança econômica, haverá maiores níveis de impacto mental.
DOENÇAS CRÔNICAS
Em pesquisa da CDC, distúrbios da saúde mental são comorbidades comuns entre as pessoas com doenças crônicas, como doença pulmonar crônica, asma, problemas cardíacos graves e diabetes (grupo de risco de complicações decorrentes da covid-19). Além disso, essas pessoas necessitam de acompanhamento e comparecimento às unidades de saúde com maior frequência, e nesse momento sofrerão negligência devido à sobrecarga do sistema.
Pesquisa da KFF do início de abril constatou que 53% das pessoas com um estado de saúde regular ou ruim sofreram maiores impactos psicológicos relacionados à preocupação com a covid-19.
USO DE SUBSTÂNCIAS
O uso de substâncias tende a aumentar durante situações de estresse: atenta-se para a ampla recorrência a medicamentos psiquiátricos, especialmente benzodiazepinas.
O transtorno por uso de substâncias (entre ilícitas e prescritas) foi observado pelo Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos EUA como potencial complicador da covid-19.
Uma linha direta federal de emergência, administrada pelo Serviços de Abuso de Substâncias e Saúde Mental dos EUA, registrou um aumento de mais de 1.000% em abril em comparação com o mesmo período do ano passado; a empresa de terapia on-line Talkspace registrou um aumento de 65% nos clientes desde meados de fevereiro.
A organização Mental Health America oferece questionários em seu site para ajudar as pessoas a identificarem problemas de saúde mental, e desde o início da pandemia, esses exames diários aumentaram de 60 a 70%, e desde fevereiro, o número de pessoas com triagem positiva para ansiedade e depressão moderada a grave aumentou em mais 18.000 pessoas em comparação com janeiro.
Além do fato de que tais comprometimentos mentais serão atendidos por um sistema de saúde severamente quebrado, cerca de menos da metade da população norte-americana que relata sofrimento mental recebe tratamento, devido não apenas às condições limitadas de acesso, como ao próprio estigma que envolve a doença mental.
Essas projeções não questionam, de forma alguma, a necessidade de esforços de mitigação de vírus, mas sim pretendem chamar atenção e reivindicar planejamento dos sistemas de saúde direcionados para essas pessoas.
Fontes:
COVID-19 for Mental Health and Substance Use. Panchal, Kamal, Orgera, Cox, Garfield, Hamel, Muñana e Chidambaram. Apr 21, 2020.
The coronavirus pandemic is pushing America into a mental-health crisis. The Washington Post, by William Wan. May 4, 2020
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