parece óbvio. bolsonaro é uma criatura limitada intelectual e emocionalmente, que ascendeu instrumentalizando ódios comuns, incapaz de uma oratória coerente e objetiva, munido de raciocínio superficial que só é capaz de oferecer medidas imediatistas e parciais. bolsonaro é claro quanto à intenção de sacrificar as seções populacionais que não considera dignas de vida decente, através de seu típico apelo à violência (sob desculpa de conservadorismo). e apesar do que parece tão óbvio e absurdo, ainda há quem com ele corrobore. por quê?
pra discutir isso é preciso introduzir com um esboço do panorama educacional brasileiro para em seguida refletir sobre modelos mentais, distorções cognitivas, realismo ingênuo/direto, política e identidade social e psicologia da persuasão (a exemplo hitleriano).
EDUCAÇÃO
A educação brasileira, entre várias fases que incluíram a) a exclusão do proletariado e das mulheres do ensino formal, b) a expansão da escolaridade gratuita e obrigatória (mas sem qualidade e real comprometimento social) com intuito de compor o mercado de trabalho, e c) os movimentos de reivindicação de uma escolaridade justa, eficaz e integrativa entre o fim da década de 1950 e início de 1960 (ex: Paulo Freire), sofreu significante declínio com o início da ditadura civil-militar, que, apesar de investir no ensino básico e construir universidades, tinha como objetivo apenas os números (quantofrenia): a intenção da “política desenvolvimentista” era retirar o país do ranking vergonhoso quanto ao analfabetismo, e formar amplo capital humano - graduar as pessoas para que essas impulsionassem a economia. o tal “milagre econômico” se deu a partir da cooptação da educação para se moldar o cidadão-ferramenta.
desde então, apesar do fim da ditadura, os projetos da década de 1990 eram utópicos na teoria do progresso do novo milênio, quando na prática a educação se convertia tecnicista e acrítica, desviando-se o quanto possível de conscientização pessoal e social. assim acontece um processo encadeado (o qual dividi apenas pra fins didáticos): a) as tais “habilidades e competências”, que postulam a obrigação dos indivíduos de se adaptarem e flexibilizarem às demandas mercadológicas e tecnológicas da atualidade; b) a insuficiência do próprio ensino formal (ex: superior), em que o conhecimento não basta para o trabalho; c) o desemprego estrutural programado e que sustenta o capital; d) a quarteirização do trabalhador, sob a égide da independência financeira, do “seja seu próprio patrão” e do microempreendedor, que na realidade não passa da caracterização do subemprego, e portanto ausência de direitos trabalhistas.
não, a educação não é a única instituição social responsável pela humanização; dizer isso seria adotar a concepção salvacionista que a compreende como única capaz de solucionar todos os problemas sociais, retirando assim a responsabilidade das demais políticas públicas e do Estado integrado. mas é preciso entender que a proposta pedagógica brasileira foi abortada e trucidada em seus objetivos holísticos, e o plano adotado a concebe instrumental: tudo o que se aprende é destinado a um fim prático (comercial, mercadológico, empregatício); tudo o que se aprende serve a uma intenção econômica. apoiada no desestímulo à criatividade e criticidade subjetivas, o atual modelo de escolarização ensina a NÃO PENSAR de maneira autônoma.
o sujeito exposto à carência social (ausência das instituições públicas como educação, economia, saúde etc) é um sujeito vulnerável ao cabresto ideológico; lembremos, ainda, que as preocupações quanto à saúde mental nunca foram prioridade no país - e quando eu menciono “saúde mental” não me refiro ao tratamento específico de psicopatologias comuns, e sim à intervenção profissional “psi” integrada à medicina, no atendimento acessível e acompanhamento constante.
a noção de política, não reduzida à posições partidárias, mas sim referente à convivência, organização e reivindicação comunitária e conjunta à própria compreensão prática de alteridade, não é suplantada publicamente. a “coisa pública” não parece nos dizer respeito, e permanece longe, assujeitada e estranha.
MODELOS MENTAIS
ok, mas qual a consequência não apenas da deturpação educacional, mas do abandono estatal como um todo?
vamos considerar os chamados modelos mentais; conceito que remete à década de 1920 quando tratado por Luquet, influenciou as teorias de desenvolvimento infantil piagetianas pouco depois (a exemplo de suas “estruturas internas” ou “esquemas”), e foi retomado na década de 1940 por meio de Craik: são, a grosso modo, as simbologias e as representações internas da realidade exterior, uma forma subjetiva de interpretação do mundo que se constitui durante o próprio desenvolvimento e que influencia a percepção do indivíduo sobre tudo aquilo que o rodeia.
o modelo cognitivo de Beck (década de 1970) adota posição semelhante; resumidamente, os modelos mentais para Beck se expressam através de pensamentos automáticos (padrões individuais de pensamentos), pressupostos/regras subjacentes (crenças rígidas formuladas durante o desenvolvimento do indivíduo) e esquemas pessoais (uma formação que inclui e interage com os conceitos anteriores, e que é profundamente afetada em casos de vulnerabilidade emocional). assim, as informações captadas são canalizadas através dos pensamentos automáticos e avaliadas pelos pressupostos subjacentes, os quais estão subordinados aos esquemas pessoais, que conduzem à atenção e memória seletivas: isso significa que, sendo as informações captadas e filtradas pelos padrões cognitivos pessoais, a interpretação delas ocorre de acordo com os próprios esquemas, reforçando-os. a partir disso e pensando em casos de vulnerabilidade psicológica, Beck menciona as distorções cognitivas -
quando as regras subjacentes são mal-adaptadas e resultam em esquemas rígidos e hiperinclusivos, ou seja: maneiras distorcidas de conceber as informações ao redor.
REALISMO INGÊNUO
Os modelos mentais ou esquemas pessoais se interligam ao conceito de realismo ingênuo ou realismo direto: também chamado de “viés do ponto cego”, aproxima-se de ideias como viés cognitivo e viés de confirmação. traduzindo de forma bem básica: um modelo de pensamento enviesado é aquele que se constrói seletivamente a partir de crenças e informações que condizem com o que você toma como verdade ou coerência, mas que não adota reflexão crítica acerca do conhecimento. o realismo ingênuo/direto nos leva a considerar que nossas percepções e crenças sobre o mundo e sobre as pessoas são reais e corretas, e que as divergências exteriores é que estão equivocadas.
a incapacidade crítica (reforçada pelo abandono estatal) faz parte do modelo mental/esquema pessoal coletivo; é por isso que não concebo o bolsonarista puramente como estúpido, mas sim como produto de um projeto maior, que supera o indivíduo abortando a alteridade, a contra-argumentação fundamentada, a hipótese de longo prazo, e o vulnerabiliza ao fanatismo e ao pensamento polarizado.
IDENTIDADE SOCIAL
a defesa de um partido político ou de algum integrante diz respeito a uma identidade social; as identidades sociais modificam os modelos mentais, e se as pautas defendidas são distorcidas, assim também serão os modelos.
a identidade social política conduz à formação de grupos com interesses políticos semelhantes, gerando aquela sensação de pertencimento que acalenta o ego. uma “prova social” é aquilo que fortalece o próprio comportamento ao assistir os demais refletirem e agirem como você.
PSICOLOGIA DE GRUPO
no meu post anterior sobre a análise psicológica de Hitler, eu mencionei que longe de ser um completo imbecil, Hitler era um exímio orador e galgou seu caminho de aceitação através de métodos da psicologia de grupo, da qual deriva também a psicologia da persuasão (Cialdini; Levine); percebe-se facilmente que Bolsonaro não é um sujeito inteligente e tampouco estável psicologicamente para planejar atuações complexas, mas auxiliado por um projeto por trás (que agora o abandonou), foi capaz de aproveitar um momento caótico e incerto que propiciou sua ascensão. mostrou-se carismático, induziu confiança ao apresentar soluções imediatas para antigas questões que perturbavam o imaginário brasileiro, apelou para a autoestima fragilizada do povo, mexendo com suas inseguranças mais profundas e personificando os instintos mais primitivos e destituídos da moral comumente defendida, articulou verbalmente os preconceitos alheios que até então se mantinham elípticos, e então arquitetou uma imagem mítica de herói da nação. além disso, a propagação de fake news e o intenso controle do fluxo de informações foram seus aliados. então, com a autoridade de candidato e conquistando a presidência, impulsionou e fortaleceu essas inclinações, trazendo a liberdade ao homem e à mulher média de agir em conformidade.
na psicologia da persuasão, a escalada (irracional) do comprometimento diz respeito a um padrão de comportamento em que, devido à sensação de pertencimento ao grupo e à gradação de envolvimento com ele, quando diante de qualquer oposição e fracasso (por maior que sejam) o processo de racionalização naturalizado (esquema ou modelo mental) induz à defesa compulsória desse grupo. novamente o mesmo mecanismo do realismo ingênuo: os outros é que estão sempre errados. e nesse raciocínio se organizam as polarizações, a divisão em tribos e o discurso de ódio contra os discordantes, vistos como “rivais” e ameaças.
O bolsonarismo, bem como todo apoio a movimentos autoritários e fascistas, deriva não estritamente da loucura, da perversão generalizada ou da livre escolha dos discípulos, mas sim da manipulação de fragilidades íntimas e desapercebidas e de impulsos violentos enterrados no cidadão médio que então têm permissão de se desvelar. o seguidor se satisfaz com a cegueira, já que a reprodução do comportamento é um processo automático.
basta recordar principalmente as crianças e adolescentes hitlerianos (mas o povo médio alemão como um todo) e comparar com a geração exposta a esse fanatismo: a defesa da figura de Bolsonaro age imatura e despreparadamente, e sua maioria não é realmente de acordo ipsis litteris com os planos do governo, e sim fantoche do desespero e da ignorância elementares, iludidos por promessas drásticas que, graças à pobreza intelectual e emocional do próprio Bolsonaro que o torna incapaz de governar, desmoronam por si só em um momento crítico. governos autoritários e não raciocinados se dissipam em situações de pressão pública por intervenções responsáveis; infelizmente, não sem arrastar consigo mais tragédia.
quando eu digo que o bolsonarismo não é composto unicamente de loucos, estúpidos e perversos, não se trata de vitimizar seus componentes, mas de explicar a lógica deturpada que o conduz a apropriação do mesmo discurso. entretanto, isso não significa que não haja entre eles quem assim seja; afinal, quem segue Bolsonaro o faz por compartilhar semelhante inflexibilidade. e fica claro que o próprio presidente é profundamente desequilibrado, com suas paranóias conspiracionistas, deficiente na consciência moral e orgulhoso da própria violência.
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