não é difícil inferir que o período pandêmico cause aumento na taxa de suicídios; o pânico quanto à infecção e a iminência da morte, o distanciamento social, a quebra da rotina, a inviabilidade de atendimento psiquiátrico e/ou psicológico emergencial (nem todos se dispõem online), estar sob a gestão do imprevisível: nós sabemos que tão cedo as coisas não serão nem remotamente parecidas, ainda que o isolamento afrouxe.
e os números dos que sucumbem não serão nem mesmo números. não notificados, obituários corrompidos, causa mortis a lockdown.
“manipulação”
sob intenso distresse, de fato algumas pessoas ameaçam se ferir ou se matar.
mas o que se julga como manipulação (e portanto de teor calculado e perverso) em geral não passa de uma tentativa pueril de rogar atenção; de suscitar preocupação em alguém que se entende como protetor. de dizer de um outro modo, desesperado e inflexível, “por favor me ajuda, isso dói muito, eu preciso que você perceba como dói mesmo que eu não entenda”
“entender” como dói, assim como ser empático nessas situações, é uma ideia perigosa. a empatia significa se por no lugar do outro com vias a sentir o que ele sente. ainda que isso fosse possível, aquele que escutasse seria aprisionado na mesma espiral adoentada. na verdade, é apenas a partir de uma outra perspectiva que a ajuda pode se materializar, por RESSONÂNCIA e amor (não-romântico), de modo a inferir e intervir na respectiva dor.
inferir não quer dizer adivinhar, e sim ter a sensibilidade de se atentar também ao que não se consegue dizer.
a dor não precisa ser compreendida unicamente por aqueles que também a sofrem; isso é uma estratégia pra restringir a rede de apoio a pessoas também frágeis e nos fazer sentir organismos à parte, ordenados politicamente a não dialogar sobre isso.
o suicídio me parece a mais “completa” forma de violência; se unem, numa tríade indissolúvel, a vontade de matar, a vontade de morrer e a vontade de ser morto. o desespero e a raiva, de tão profundos, jamais se limitam à dimensão interna. há toda espécie de reação, sinal, indício.
a pior parte é que você quer viver, você quer irrevogavelmente viver - construir rotinas, concretizar planos, se apaixonar, formar uma família, conhecer o amor real, assistir o fim dos ciclos, realizar a própria existência de maneira plena e ininterrupta.
o suicida talvez deseje a vida mais do que a média das pessoas.
as campanhas e os profissionais reiteram sobre as expressões notáveis antes de um suicídio, e o quanto é importante uma rede de apoio disposta a ouvir. uma maioria esclarecida assume como padrão moral que antes de tudo, o falar e o buscar ajuda salvam.
acontece que na prática não é assim.
o assunto do suicídio ainda age como uma nódoa moral que dispersa companhias; enquanto se pregam tais políticas preventivas, aqueles que o cogitam não encontram canais de expressão, porque o assunto assusta, repele, irrita. as pessoas se esquivam e a confissão mina seus contatos.
ter um apoio que se restringe a profissionais, por mais responsáveis e envolvidos com o caso que sejam, não é o bastante. há carências de convívio social, de disponibilidade de afeto, de proximidade emocional, de relações íntimas. a proteção ao suicídio tem de ser multifatorial.
como um estigma de cabeceira, alguém que confessa sua ideação é automaticamente encerrado numa “redoma” deslocada dos demais.
a ideia de ter autonomia de pôr fim à minha vida choca e enoja, e me circunscreve numa fronteira daquilo que não é aceitável ouvir. como todo tabu, se envolvem concepções míticas. a ideação e os comportamentos parassuicidas na verdade são comuns e recorrentes, e apenas resguardados pela privacidade mental que foge da rejeição.
é preciso primordialmente saber que eu não sou só minha ideação. eu sou uma série de outras coisas sem qualquer relação com isso, e que te fariam rir e gostar de mim às vezes. eu mereço me sentir normal e fazer parte das coisas.
não é preciso nos tratar como uma escória social que precisa de tratamento compulsivo e invasivo para só então receber respeito e ser considerado apto e digno de amor.
o suicídio é talvez a coisa mais triste do mundo, porque você é obrigado a desistir de si, daqueles que você ama e do futuro que poderia ter porque o sofrimento e o isolamento emocional são insuportáveis.
e se engana quem pensa que ele deriva exclusiva e obrigatoriamente de transtornos mentais, ou que é o nível mais acentuado de uma depressão, sendo produto da tristeza suprema.
é preciso conceber o suicídio como FENÔMENO e TRAMA DE COMUNICAÇÃO.
em geral, não se odeia a si ou à vida, mas sim se pensa na dor extrema como uma entidade que só pode ser vencida com o abate de sua sede física. se mata a coisa, usando a si mesmo como meio. é um sacrifício, arrazoado por saber que sua vitalidade e funcionalidade foram usurpadas e que agora tudo que se parece ser é um peso rastejante.
o suicida teve morto seu senso de pessoa humana antes do ato final.
o suicídio é um processo sem protagonista; não se basta como morte específica porque a perda e a falta são de uma outra natureza: abrupta, ultraviolenta, plural, terreno de porquês indissolúveis. rompe o cotidiano de maneira tão repentina e inesperada que acentua o teor místico. o que mais há não é o lamento, mas as dúvidas. por quê se fez, por quê se fez como fez, como foram os últimos minutos, o que houve para desencadear, o que se passava na cabeça, quando isso começou, o que considerou sobre aqueles que deixava, o quanto deve ter doído, por que não confessou, se foi planejado, se houve dor, se houve arrependimento.
matar a si põe em prova o amor e revela o bem-querer que não resiste à partida física.
há aqueles que assistem às roupas intocadas nos cabides. e vez ou outra permitem o retorno, e portanto uma estadia - reminiscência diante de algo relacionado aos gostos, aos momentos específicos. quando a saudade cessa de ferir, a pessoa ainda existe, e sua permanência é um fato concreto. é a prova de que se esteve ali de N formas, e não é pela ausência que se descarta.
a maioria alimenta afeto apenas pelo choque: matar a si mesmo mexe com seus pavores mais primitivos, e por uns dias é tudo sobre o que se fala e pensa; criam-se nos imaginários os sujeitos que se foram, projetando as fantasias próprias, que nada têm a ver com a pessoa em questão. então, em alguns dias ou semanas, aquele se foi é notícia antiga e suficientemente já especulada; é quando realmente se vai embora como se nunca houvesse existido. você some do mundo primeiro pelas suas mãos desesperadas, depois pelo desabitar da memória comum.
sem nome ou história ou expressão anterior. você é aquela garota que se jogou de um prédio em tal ano... dizem que foi por x ou y (...)
(como se um motivo pontual fosse o bastante pra abrir mão de si assim)
suicidar é um sofrimento antiquíssimo que acontece em 15 minutos de aguda inflamação. é um último golpe. e por mais que haja planejamento e deliberação constantes, o instante que o determina é irreflexivo; como um ato reflexo, um instinto, uma intuição. é possível retardar a virada desses 15min. mas ela volta, revolta, seduz. convence.
o suicida é eterno diante do amor.
depois de muito tempo não se caça motivos. preserva-se a nostalgia resplandescente.
e pros que ficam e amam, depois da dor, nos transformamos em algo mais, uma outra coisa além. rede de sensação ambígua que se combina melancólica.
“Ah, eu adorava esse seu jeito quando...”
“Quem você seria agora?”
“Quem você era, quando eu não pude ver?”
Comentários
Postar um comentário