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A neurociência prova que o livre-arbítrio é uma ilusão?

Costuma-se conceber livre-arbítrio como a possibilidade de escolher baseando-se unicamente na própria vontade e sem qualquer influência externa (causas determinantes).
Quanto a isso:
1) sendo o homem o produto de uma triangulação dinâmica biopsicossocial (cujos elementos necessariamente interagem e se retroalimentam), o ambiente tanto molda o sujeito quanto é reflexo dele. Assim, é realmente possível apartar-se das variáveis externas no processo de escolha? 
2) o fato de as opções disponíveis aos sujeitos serem elas próprias filtradas por influências sociais, culturais e econômicas, e portanto resultarem muitas vezes em possibilidades limitadas e escolhas previamente definidas, é prova suficiente de que o livre-arbítrio é uma ilusão?
3) ainda que seja possível fazer o que queremos, até que ponto realmente queremos o que queremos?
Três trabalhos neurocientíficos recentes (Soon, Brass, Heinze e Haynes, 2008), revisando o experimento de Libet (1983) através de fMRI (functional magnetic resonance imaging), constataram que quando a decisão tomada pelo sujeito atingiu sua consciência, ela já havia sido influenciada por atividade cerebral inconsciente 7s antes, tendo esses processos se iniciado conjuntamente em duas áreas: FPC/Brodmann área 10 (BA10) e Córtex Parietal (PC).
Brodmann área 10 (BA10) é também chamada de córtex frontopolar (FPC), e corresponde à porção anterior do córtex pré-frontal; trata-se da área que mais cresceu em tamanho nos humanos, comparativamente com os primatas não humanos. Apesar de ainda haver poucas conclusões, acredita-se que o FPC esteja relacionado à recuperação de memória, ramificação cognitiva (retomada de atividades mentais) e funções executivas; além disso, menciona-se uma conexão com o sistema límbico através do córtex pré-frontal ventromedial.
Já o córtex parietal (comumente lobo parietal), se localiza atrás do lobo frontal e é mencionado como área de integração das informações dos demais córtex. Possui três divisões funcionais: córtex somatossensitivo primário, que processa a informação tátil e proprioceptiva; junto ao lobo temporal atua na compreensão da linguagem; e o restante de sua área dedica-se à orientação espacial e percepção.
Através de resultados como esses, não apenas esses experimentos, como também a própria neurociência, são interpretados como a prova de que o livre-arbítrio não existe, já que o resultado da decisão é predeterminado por atividade cerebral anterior. 
É aqui que se nota que a "influência exterior" mencionada na definição livre-arbítrio não se refere apenas à tradição naturalista do determinismo social, mas também à determinação cerebral, que embora localmente interna, não faria parte da intuição psicológica ingênua que parece pressupor o livre-arbítrio.
Discussões sobre livre-arbítrio envolvem posições de dualismo ou monismo, e é interessante observar como o dualismo cartesiano é atualizado aos moldes neurocientíficos e perpetua a cisão do indivíduo. Dessa vez, o dualismo mente-corpo se reveste em mente-cérebro, em que a mente corresponderia ao verdadeiro eu. A posição adotada é a de que “se minha decisão é determinada por mecanismos cerebrais antes que eu perceba, então eu não sou livre”. Porém, há mesmo alguma reação/ação corpórea isenta de determinação ou interação cerebral?
O “eu verdadeiro” costuma ser descrito em termos de mente ou consciência, o que suscita um certo distanciamento dos processos neurais: como esses processos neurais se tornam processos mentais, e como ao mesmo tempo que se desenvolve uma significação da realidade, o cérebro também opera desenvolvendo o sentido do self? Sendo a consciência aquilo que permite compreender e significar, permitindo portanto a própria subjetividade, tal como Searle (1998) devemos admitir que ela, como fenômeno privado e de primeira pessoa, não pode ser reduzida aos mecanismos básicos envolvidos, nem aparenta ser tão física como neurônios ou sinapses. Assim, concebe-se a consciência como uma propriedade emergente do cérebro, ou seja, ainda que causalmente explicada pelo comportamento de elementos do sistema (microprocessos), não deriva exclusivamente dos elementos individuais e não pode ser explicada como uma soma das propriedades desses elementos. É um "algo mais", um macroprocesso que surge através/parte do cérebro mas não corresponde a marcadores específicos, pois envolve a unidade da cognição, do corpo, da experiência, do ambiente.
Portanto, é incoerente relegar apenas à consciência e à mente o papel do self, se ambas são expansões complexificadas de processos surgidos no cérebro. 
Além disso, deve atentar-se para o fato consumado de que a maioria da dinâmica mental é inconsciente, ou seja, a ideia de livre-arbítrio não pode excluir a atuação do insconsciente, pois é impossível qualquer atividade cerebral livre dele. Aqui não se toma o inconsciente da perspectiva psicanalítica, mas sim como a infinita rede de significações cujo acesso cognitivo é limitado ou impossível, devido a explicações que variam entre defesa involuntária da psique e própria citoarquitetura do cérebro; o inconsciente retém a maior parte das nossas informações e memórias, como forma de economia do esforço que a ciência e a atenção conscientes exigem.
As experiências constataram que FPC/BA10 e PC são as primeiras áreas de uma cadeia de processos que se ativam durante a tomada de decisão; isso, longe de desmentir a ideia de livre-arbítrio, nos oferece caminhos materiais para investigar a gênese das decisões, através das tecnologias de que dispomos hoje - opinião em consonância com Dennett (2003), que argumenta que a liberdade não é inata, inevitável e universal, e também derivou de um processo evolutivo, sendo muito mais jovem que a espécie humana. Para ele, a expansão dos meios tecnológicos que criamos implica também a expansão de nosso exercício de liberdade. 
"Quando estamos diante de decisões importantes, um gerador de considerações, cujo resultado é em algum grau indeterminado, produz uma série de considerações, algumas das quais podem ser imediatamente rejeitadas sendo consideradas irrelevantes pelo agente (consciente ou inconscientemente). Aquelas considerações que são selecionadas pelo agente como não desprezíveis figuram no processo de raciocínio, e se o agente é razoável estas considerações, em última instância, servem como fatores preditivos e explicativos da decisão final do agente." (Dennett, 1981)
A citação acima corresponde à hipótese do consideration-generator (gerador de considerações), um modelo de decisão no qual considerações (opções) seriam ponderadas e então rejeitadas ou aceitas, com base na inteligência (cognição superior) do sujeito. Esse processo teria duas fases, uma de produção caótica e randômica, e outra de seleção inteligente daquilo que interessa. 
Teorias como essa buscam compatibilizar livre-arbítrio e determinismo, admitindo a noção de hipercomplexidade do comportamento humano, já que esse derivaria da interatuação entre variáveis por si só complexas (dimensões microfísica, biológica, psíquica, social). Todo sistema altamente organizado teria presente em seu interior certo nível de incerteza (caráter semi-aleatório e desordenado motivado pela própria complexidade), seja pelos limites do nosso entendimento, seja pela própria inscrição nos fenômenos.
Na mesma linha de raciocínio, Searle (1998) traz a ideia de gap (intervalo), que designa o caráter ativo da consciência volitiva (ação orientada por condições causais como crenças ou desejos), em que ocorreriam situações de deliberação e ação, definidas por um ou mais intervalos; ainda que sob influência do plano neurobiológico, tal possibilidade de deliberar ante as opções provaria a liberdade humana.
Entendendo que pode haver uma espécie de gradação de autonomia, pergunta-se: quais condições limitariam o livre-arbítrio?
O TPA total (nível psicopatia de acordo com Hare) seria um exemplo; há um consenso entre as pesquisas de que os portadores apresentariam reduções nos volumes de matéria cinzenta no córtex pré-frontal e nos polos temporais, comprometendo tanto o sistema límbico (regulação de emoções) quanto as funções executivas e a atuação social. Além disso, uma supermaturação das áreas cerebrais devido à exposição precoce e continuada ao estresse causaria aumento da substância branca e anomalias no cíngulo dorsal, comprometendo a aprendizagem, a moralidade, o controle de impulsos, a tomada de decisões e as emoções.  
Outro exemplo seria o de indivíduos que apresentam cavidade do septo pelúcido: o SP é formado por duas lâminas neurais separadas que se fundem após o nascimento; entretanto, quando a fusão não é completa e tal cavidade apresenta grande dimensão, ocorre um mau desenvolvimento límbico neural, e tais indivíduos apresentam maior probabilidade de possuirem distúrbios mentais como o TPA. 
Inúmeros outros casos de anomalias cerebrais são relatados como comprometedores da consciência moral e da funcionalidade social, desde lesões focais e tumores aos próprios padrões discrepantes em transtornos de humor ou de personalidade.
Além disso, condições de privações fisiológicas ou afetivas extremas e precoces, como a fome ou o abuso, mitigam a capacidade e a possibilidade de autonomia por meio da conjunção de trauma e plasticidade cerebral.
Entretanto, nem mesmo essas condições determinam os comportamentos disfuncionaismas sim representam maior possibilidade de apresentá-los; além disso, intervenções de melhoramento do ambiente (desde boa alimentação e prática de exercícios físicos à reestruturação cognitiva através de terapias) seriam capazes de amenizar os danos. 

As evidências experimentais de FPC/BA10 e PC não significam a falácia do livre-arbítrio humano, tampouco que nossa vontade ocorre aos moldes de uma entidade apartada das demais dimensões, mas sim confere localização física ao início dos processos de autonomia e liberdade subjetivas, os quais envolvem outras áreas, funções e variáveis.

As teorias compatibilistas redefinem livre-arbítrio e determinismo de forma a capacitar uma complementaridade; o primeiro seria ponderado como autonomia, e o segundo, como maior probabilidade de. Isso significa que uma decisão não seria mais tomada como passível de independência das situações psicológicas, das experiências e das condições sociais como nas noções populares de livre-arbítrio, tampouco como reflexos mecânicos da dimensão social que instrumentalizam o indivíduo, como é entendido o determinismo. Seria, antes, uma capacidade tanto evolutiva quanto pessoal de escolher de acordo com aquilo que acredita ser sua vontade, admitindo entretanto que está circunscrita nessa vontade as significações que o próprio indivíduo deu e dá às suas vivências no mundo, e a natureza dessas significações diriam respeito tanto a inclinações neurobiológicas quanto à intensidade e caráter dessas vivências.


Fontes:

NEUROÉTICA, LIVRE ARBÍTRIO E RESPONSABILIDADE MORAL: A NEUROCIÊNCIA NÃO PROVA QUE O LIVRE ARBÍTRIO É UMA ILUSÃO. Nahra, Cinara. Dissertatio, UFPel [38, 2013] 181 - 199

O PROBLEMA DA CONSCIÊNCIA: LIVRE- ARBÍTRIO, RAZÕES DO COMPORTAMENTO HUMANO E DETERMINISMO. Silva e Júnior. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 63, pp. 91 - 124, jul./dez. 2013

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