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07.04

às vezes horas. noutras, dias. 

quando tudo está sob controle eu sou privilegiada, e o ataque sorrateiro só vem à noite. me dou cabo, respondo com mais ataque; se esse rosnar parte do meu corpo, é a ele que me volto com igual violência. 

a violência primordial é existir a partir de um inconsciente-centrífuga que sim e não -

o cabelo no chão faz cócegas nos meus pés descalços e há pele debaixo das minhas unhas

retornam os bizarros odores que ninguém mais testemunha. notas de azedume, putrefação e mofo em mim. sei que é um anúncio - ela vem vindo.

anteontem funcionei; dormi um bocado mais, minha pele tinha um tom fresco. as pálpebras como toldos recolhidos e meus olhos atentos e rápidos. estudei, li, consegui contatar algumas pessoas. ri, pensei que duraria isso e não a peste lá fora, resistindo nas superfícies e empilhando corpos ainda assustados por, sem prévio aviso, não serem mais pessoas com família e planos. corpos quaisquer sem dignidade de despedida, corpos que nem perceberam quando isso se tornaram, tão abrupto e surreal foi o fim. 

uma imensa fogueira que não dá conta. a última vez que as fogueiras não foram suficientes muito mais de 6 milhões morreram, não pela infecção viral, mas pela infecciosa ideologia de um homem. ainda assim há mitômanos discípulos exercendo o poder de estupidificar; que frente a ameaças biológicas deliberam apenas sobre como instrumentalizá-las suas armas.

nesses dias não importa que desgraça, mas as mãos são de novo minhas. assim como a memória e a interpretação. minha consciência é branda e protetora como um anjo mais-que-sináptico. e isto-e-isto tudo bem. isto-e-isto não existe hoje, não interessa, todos erramos cedo e gememos a longo prazo, o passado fica no seu cantinho e se rumina não se deixa aperceber. a vergonha é boba, ri de si. dos micro aos macroprocessos tudo parece ser gentil. nada é urgente e carmim ou outro que desponte é desbotado, pode ser depois. corrijo um batom no espelho, sorrio pra uma foto - guardar com carinho símbolo de um dia ordinário. então as horas correm, são tantas atividades pra fazer e pôr em dia, não sei o que havia pra deixar tanto acumular. o resto do que não falo chega à noite, estremeço um pouco, tomo o que preciso, me despeço dessa simpatia que me ocupou. por hoje é só.

então, descolo os olhos com irritação; essa maldita luz do sol, tão soberba e onipresente. fecho impaciente as cortinas. são 6:01. corpo pesado, suado, grotesco. é, eu conheço isso. os cheiros sobem. consta algo de imundo e morto sob a pele, não alcanço com esponja e sabonete, mas talvez algo cáustico. devo abrir a pele e conferir? a necessidade de ser útil e cumprir com as expectativas: pego as anotações os artigos as pesquisas. as palavras são indigestas, mal decodifico, a semântica desliza, há preocupações íntimas nas entrelinhas, eu conheço esse futuro. os parágrafos são montes inescaláveis. então aceito a derrota e sei que é só o começo por hoje. não se passaram 20min. quando as sensações de cárcere antigo, saudade e inutilidade pessoal se cruzam, sei que é hora de me por pra dormir. caço a cor azul de 15mg e apago; alucino moderado, tateando nessa realidade o outro desespero que constava no onírico. percebo de supetão a secura ardente de olhos que se abriram há segundos, e custo a reconhecer a mobília a noção de tempo o que há nas ruas. ainda é a mesma manhã; pareço um balão demasiado inflado atado ao chão, pareço uma pedra angular coberta de lodo senil desde o paleozóico. recuso me mover ou a sensação de ter esse corpo específico se transforma num mal estar generalizado e inflamável e lâminas são criaturas muito sedutoras e próximas. há pelo menos mais um mês de isolamento em casa e o acesso à ajuda nesse momento é inviável. as emergências estão abarrotadas de gentes que não precisam de costura. os medos afora são físicos, e não há espaço pros meus terrores metafóricos inventados. um banho parece muito exigente. lavar a louça parece doloroso. qualquer gesto, movimento - as pernas vacilam, eu odeio o suor, eu odeio toda secreção emoção e expressão desse corpo. eu não tenho mais a imprudência e o imediatismo dos 17 e morrer é um bocado burocrático. eu deixo matéria e ela tem de ser reconhecida, recolhida, higienizada, encaminhada e ritualizada. eu deixo matéria de maneira que não permite discurso de conforto. e em breve aquela que me deu a vida que reneguei murcharia como uma pétala esquecida. eu mataria mesmo morta, tão violenta e hostil é minha substância. e não levaria pro subterrâneo nada semelhante ao amor, porque esse não acredito ter suscitado.

é faca de só gumes buscar entender o cérebro por meio de um cérebro. sofrer da consciência sem saber do que se trata. caçar por fora, por meio de sugestões símbolos e sujeitos semelhantes, figuras anatômicas textos técnicos, mais velhos que eu, sobrenomes que não sei que cara, indícios, suspeitas, o desespero do porquê e do como. qual a extensão do dano, como esse limbo esteve também no estupro, na surra, no abandono, na hemorragia, na traição. qual meu parentesco com essa amígdala. como é minha dissociação nesse temporal. onde estou eu nesse corpo se me recuso a ser em totalidade a maior parte dele?

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