1. COMO CONSTRUTOS SOCIAIS: A ANTIPSIQUIATRIA E A FABRICAÇÃO DA LOUCURA
Essa perspectiva destaca a instrumentalização da condição da loucura como lugar de exclusão social, desde a criação dos primeiros manicômios no século XVII como depósitos de pessoas indesejáveis às vias públicas. A passagem do século XIX ao XX traz consigo novas tecnologias de pesquisa e tratamento e, consequentemente, novas concepções sobre a doença mental. O horror antiético da Segunda Guerra Mundial é o marco para questionamentos sobre o humano, e seus feridos e mortos possibilitam investigações sobre diversas enfermidades, notadamente as neurológicas.
Ao mesmo tempo, a ascensão da ideologia neoliberal capitalista converge para a construção da autonomia e da individualidade como respostas às estruturas de competitividade e propriedade privada. A Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 surge com o objetivo de universalizar a condição de dignidade da vida humana incondicionalmente. Nesse contexto, diversos movimentos sociais centrados na liberdade e na realização dos indivíduos se voltam para as reivindicações específicas das minorias; é assim que desponta, na década de 1940, a geração beat nos EUA, e na década de 1960, um movimento plural chamado de contracultura - orientado pela luta de classes entre oprimidos de diversas formas pelos mantenedores do poder -, com singulares expressões de acordo com os países (no Brasil, por exemplo, emerge como resposta à ditadura militar). Assim, as autoridades passam a utilizar prisões e exílios a serviço da manutenção da ordem e unanimidade ideológicas - incluindo o diagnóstico e o encerramento psiquiátrico, com intenção principal de punição: a dissidência política é convertida em doença mental.
É então que emerge o movimento da Antipsiquiatria, fundamentado na total extinção dos manicômios e na eliminação da própria ideia de doença mental.
"Embora o termo antipsiquiatria tenha sido inventado por David Cooper num contexto muito preciso, ele serviu para designar um movimento político de contestação radical do saber psiquiátrico, desenvolvido entre 1955 e 1975 na maioria dos grandes países em que se haviam implantado a psiquiatria e a psicanálise: na Grã-Bretanha, com Ronald Laing e David Cooper; na Itália, com Franco Basaglia; e nos Estados Unidos, com as comunidades terapêuticas, os trabalhos de Thomas Szasz e a escola de Palo Alto de Gregory Bateson." Roudinesco (1998)
A maior atuação da antipsiquiatria brasileira foi através de Nise da Silveira, na década de 1940, com a psicanálise junguiana; Nise utilizava a arte como meio de expressão para pacientes impedidos, pela esquizofrenia, de usar a linguagem verbal. Para ela, a doença mental não passava de uma tentativa desesperada de autocura.
Segundo Duarte Júnior (1983), a antipsiquiatria acredita que a loucura é fabricada por razões e mecanismos políticos, e seus defensores têm que a existência do que se convencionou chamar de "loucura" é utilizada pelos sistemas autoritários como forma de perseguir seus heréticos e contestadores.
A nosologia médica psiquiátrica não passaria de um conjunto de rótulos apropriados para invalidar os sujeitos, e por isso seria necessário o fechamento dos estabelecimentos médicos psiquiátricos, já que as práticas de assistência ao doente mental pautavam-se pela violência constante e desumana.
Alicerçava-se, ainda, na utopia da possível transformação da loucura num estilo de vida, numa viagem, num modo de ser diferente e de estar do outro lado da razão; tal idealismo utilizava-se da estética surrealista, e tomava como objeto principal a esquizofrenia, convencionada como "loucura modelo", devido aos padrões de alucinação diversa.
Apesar do caráter utópico, suas críticas eram coerentes e fundamentadas na realidade do diagnóstico e do tratamento psiquiátrico da época, pois os mesmos estigmatizavam e isolavam o indivíduo socialmente - além de submetê-lo a procedimentos violentos que destruíam sua funcionalidade e capacidade de reajustamento. Os adeptos da antipsiquiatria reiteravam o caráter político da vida humana e a existência do homem enquanto relação com os demais - sendo, por essa razão, os comportamentos considerados ‘doentios’ de um indivíduo compreendidos a partir das relações que ele mantém com os outros (é assim que Laing, em 1960, afirma que a psicose individual do esquizofrênico deve ser testada de acordo com a não conjunção de sua relação com o outro saudável).
Normal e anormal eram, então, pensados não em termos especificamente médicos, mas sim sob a lógica da ordem e da desordem, e por isso deveria ser instituída a docilização (controle) desse corpo por meio de sua institucionalização.
Grande contribuição do movimento antipsiquiátrico foi o reconhecimento da influência na dimensão mental dos microuniversos sociais, principalmente a estrutura familiar - pois esta promove a mediação entre indivíduo e Estado, como primeiro grupo educativo a que é exposto a pessoa, e, como se estrutura na sociedade em que se insere, acaba reproduzindo os vícios sociais maiores.
A antipsiquiatria teve, ainda, papel essencial na esfera pública, tornando as questões concernentes às doenças mentais acessíveis aos desprovidos de conhecimento da nomenclatura científica. Ocorre, assim, a expressão da loucura através da linguagem literária, poética, política, musical e filosófica, criando um discurso contra o totalitarismo, a opressão e a miséria social.
2. COMO TIPOS NATURAIS: DETERMINAÇÃO BIOLÓGICA E NEUROCIÊNCIAS
Os avanços proporcionados pelas tecnologias de pesquisa médica, especialmente aqueles conquistados nos campos neurocientífico e genético, possibilitam que, partir de 1970, a "segunda onda biológica da psiquiatria" se destine a buscar determinações orgânicas das patologias mentais - a herança genética e a fisiologia cerebral são tomadas como seus cernes, e tais doenças passam a ser denominadas transtornos do neurodesenvolvimento.
A publicação em 1980 do terceiro Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III) marca essa compreensão organicista dos transtornos mentais, através de atitudes objetivas sobre a sintomatologia, o diagnóstico e as estratégias psicofarmacológicas de tratamento.
A partir dos anos 2000, solidificou-se a percepção de que os processos de saúde-doença não podem ser adequadamente descritos com base em modelos lineares, fundamentados em uma causalidade unidirecional e na lógica da previsibilidade - fossem biológicos ou sociais. Gradativamente, tal percepção passa a promover a articulação entre ambos os campos, baseando-se nas noções de epigenética, neurodesenvolvimento e plasticidade cerebral.
A hipótese levantada de que haveria um gene X para determinado transtorno é então descartada, e descobre-se que a respectiva participação desse gene é limitada, ou seja, o marcador biológico contribui para a formação da doença, mas não é capaz de responder exclusivamente pela sua etiologia. Portanto, ao concluir que a etiologia dos transtornos mentais é multifatorial, passa-se a investigar quais são e de que maneiras acontecem as ativações e interações desses genes com seus elementos ambientais precipitadores.
É assim que desenvolve-se a recente ideia de epigenética (publicada oficialmente, em estudo com modelos animais, à primeira vez apenas em 2003):
"Os mecanismos epigenéticos são apresentados como a via de interação entre o genoma e o ambiente, explicando em termos biológicos o modo como se conjugam as influências oriundas do meio externo e a carga genética dos indivíduos". Isto é, tais mecanismos seriam um link entre os genes e sua expressão fenotípica desencadeada por fatores externos. O conceito traria as noções não de determinação biológica, mas de potencialidade, vulnerabilidade ou resiliência, e de produções de variação de risco. O ambiente atuaria como um filtro, permitindo ou impedindo a expressão de um determinado gene, além de regular a intensidade com que ocorre essa expressão.
Os mencionados fatores ambientais (que podem ser tidos como causa, elemento precipitador ou colaborador na formação) "variam desde nutricionais e químicos, como a dieta materna durante a gravidez e a contaminação por vírus e substâncias tóxicas, mais relacionais, como o nível de cuidados maternos (destaque para a teoria do apego, de Bowlby) e a exposição ao estresse em períodos precoces da vida."
Saber que existe uma construção gradativa da vulnerabilidade atualiza a designação das referidas enfermidades em transtornos do neurodesenvolvimento, pois passam a ser "entendidos como o estado final de uma série de processos anormais de desenvolvimento do cérebro, que tem início anos antes do estabelecimento da patologia propriamente dita". Assim, atenta-se para seu caráter de continuidade: atuando progressiva e cronicamente.
Apesar da presença de fenômenos epigenéticos no cérebro adulto, permanecendo a influência ambiental ao longo da vida - a capacidade de exibir modificações de curto prazo (plasticidade neuronal) é reiterada como um dos fatores mais proeminentes na atuação epigenética; a temporalidade, ou seja, durante os períodos críticos do desenvolvimento - inclusive o pós-natal, tendo sido comprovado em estudo por Weaver, em 2004 - e a intensidade dos cuidados maternos ofertados nos momentos iniciais da vida (inclusive nos primeiros meses de gestação), o desenvolvimento neuronal e as tendências de resposta a eventos estressores na vida adulta estariam intimamente associados. O consenso sobre a natureza desses eventos estressores acreditam que seriam o trauma, o abuso e o abandono infantil.
Entretanto, da mesma maneira que tais períodos críticos do desenvolvimento neuronal possibilitam alterações prejudiciais, a flexibilidade desse sistema permite a direção oposta: o chamado "enriquecimento ambiental" comprova que o estresse pré-natal pode ser compensado por cuidados maternos adequados no período pós-natal.
3. OS TRANSTORNOS MENTAIS COMO TIPOS INTERATIVOS (Hacking, 1997) E PRÁTICOS (Zachar, 2000)
Afinal, os transtornos psiquiátricos existem de fato - natural e biologicamente - ou são apenas construções sociais?
Diante das duas perspectivas - embora a hipótese epigenética elucide grande parte das dúvidas sobre a natureza das patologias mentais -, há ainda aqueles que se confundem sobre que posição adotar, visto que ambas têm sua coerência. Assim, se interrogam não sobre as teorias contextualizadas, mas sobre a própria natureza dos objetos classificados.
Desde a Antiguidade, ganhando contornos mais específicos com Linnaeus no século XVIII, a noção de doença era a de entidade delimitada na natureza. As doenças seriam, por assim dizer, semelhantes às espécies naturais de plantas e animais, e o desafio da taxonomia médica e científica seria apreendê-las da forma correta. Suas descrições se apoiavam em sinais e sintomas e foi progressivamente substituída pela etiologia e fisiopatologia, na busca incessante de causas e mecanismos para a posterior especificação terapêutica. A delimitação em bases biológicas passou a conferir o valor de um certificado de realidade. A crença geral é a de que a descoberta dessas mesmas causas e mecanismos seja apenas uma questão de tempo e avanço tecnológico; contudo, não é o que ocorre no caso dos transtornos mentais, e por vezes a atitude de validá-los cientificamente pressupõe a redução da dimensão mental à cerebral.
A visão construtivista radical encontra justificativa na historicização das categorias de saúde-doença através de teóricos como Szasz, em suas obras The Myth of Mental Illness (1961/1974) e The Manufacture of Madness (1970/1997); aqui, "as doenças socialmente construídas são fruto de uma sociedade medicalizada, liberal e urbana, e, assim sendo, não existiriam como doenças ‘reais’, mas como resultado do controle social da psiquiatria pela rotulação e estigmatização dos indivíduos, da ação das indústrias farmacêuticas, interessadas em vender medicamentos, e portanto, em produzir transtornos". Szasz (e é preciso atentar para consciência possível da época de suas publicações - zeitgeist - e sua intenção primordial de denúncia ao imperialismo psiquiátrico) se apoia num certo dualismo cartesiano em que doenças são alterações patológicas (lesões identificáveis) do corpo, e os transtornos mentais são dificuldades com pensamentos, sentimentos e comportamentos, e por isso não seriam doenças, mas questões morais ou "problemas da vida".
Assim, as doenças mentais até poderiam possuir um substrato fisiológico, sendo corporificadas (embodied) em um aparato orgânico que lhe oferece condições de possibilidade, mas imersas (embedded) em um círculo de valores e em uma cosmologia, e seus portadores estariam sujeitos ao julgamento moral e à estigmatização psiquiátrica.
Hacking (1997) é um dos teóricos que se prontifica a elucidar essa tensão; propõe então uma nova semântica: a dos tipos indiferentes e interativos. Os primeiros não sofreriam a ação daquilo que é dito sobre eles; já os segundos seriam aqueles em que as classificações produziriam efeitos sobre a autopercepção, havendo um diálogo entre diagnósticos, doença e ideias que delas decorrem. Nos tipos interativos haveria, ainda, uma espécie de looping: primeiro, incidindo sobre como as classificações científicas influenciam o sujeito classificado, e segundo, sobre como os que são classificados modificam os sistemas de classificação. Os objetos reagem à forma com que são classificados e isso muda a dinâmica de produção e manifestação das próprias características em que se baseiam tais classificações.
De encontro à teoria de Hacking, Zachar (2000) apresenta a noção dos tipos práticos: sabendo da inevitável e recíproca influência entre a natureza e o social, nenhum recorte vale de forma absoluta para todos os propósitos; assim, um tipo prático é um padrão estável que pode ser identificado com confiabilidade e validade, de acordo com o objetivo pretendido. Portanto, o adjetivo "real" nada acrescentaria a tal descrição de transtorno: a questão não é qual é a classificação "correta", mas qual será a mais útil para os nossos propósitos. Os tipos práticos não podem ser definidos por propriedades inerentes, e os critérios externos (situacionais e direcionados pelos interesses humanos) desempenham papel em sua definição.
"Recusar a visão de transtornos mentais como tipos naturais não significa negar suas bases biológicas e aceitar a tese construcionista radical, mas tão somente defender que tais transtornos não são categorias delimitadas, com condições internas necessárias e suficientes para seu diagnóstico. Por outro lado, reconhecer seus determinantes psicossociais e culturais também não significa que as bases biológicas inexistam".
Fontes:
Banzato; Zorzanelli. Superando a falsa dicotomia entre natureza e construção social: o caso dos transtornos mentais. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, 17(1), 100-113, mar. 2014
Oliveira, William Vaz. A fabricação da loucura: contracultura e a antipsiquiatria. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro v.18, n.1, jan.-mar. 2011, p.141-154.
Freitas-Silva; Ortega. A determinação biológica dos transtornos mentais: uma discussão a partir de teses neurocientíficas recentes. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 32(8):e00168115, ago, 2016
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