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Szasz e a doença mental como mito (1960)

O papel de todos os sistemas de crenças tem sido o de agir como tranquilizador social, em que as possibilidades propostas se situam em um sistema maniqueísta - orientado, por sua vez, pela fantasia sobre a felicidade humana universal. 

Para Thomas Szasz, a doença mental foi cooptada a atuar de modo semelhante aos demônios e bruxas dos anteriores períodos históricos, possuindo não uma existência objetiva, mas um caráter causal (e negativo). Então, o que afinal significa a afirmação de que se está mentalmente doente?

Num primeiro momento, o óbvio conduz a definir a doença mental como um sinal de dano cerebral: as desordens do pensamento e do comportamento diriam respeito a defeitos neurológicos específicos. Tal posição implica que os problemas mentais não se refeririam a diferenças nas necessidades pessoais, opiniões, aspirações sociais, valores e outros fatores essencialmente subjetivos, mas seriam delegados aos processos psicoquímicos. Esse raciocínio busca equiparar simetricamente as doenças mentais às doenças do corpo; quanto a isso, Szasz aponta dois principais equívocos: a) no primeiro, uma doença do cérebro seria apenas um defeito neurológico e não constituiria um problema na vida; nesse caso, porém, não seria possível explicar, apenas por meio de falhas neurológicas, desordens comportamentais quanto a crenças;  b) no segundo, trata-se de um erro epistemológico, em que obviamente as interpretações e posições em caso de doença física e em caso de doença mental são diametralmente opostas: na doença física o que existe são sinais ou sintomas, enquanto que nas mentais existem discrepâncias profundas nas comunicações que expressam ideias inaceitáveis muitas vezes dispostas num idioma não usual do paciente sobre ele mesmo, sobre as pessoas e sobre o mundo. A afirmação de que X é um sintoma mental envolve um julgamento, ou seja, uma comparação do paciente com as ideias pessoais e sociais vigentes.

“A noção do sintoma mental está ligada de uma maneira insolúvel ao contexto social (incluindo o ético) no qual ele é construído da mesma maneira que a noção do sintoma corporal está ligada a um contexto anatômico e genético” (Szasz, 1957)

Quando se afirma que a doença mental é tão real e objetiva quanto a doença corporal, a pergunta a ser feita é: o que se entende por real e objetivo? Para Szasz, a intenção nisso é a de vulgarizar a metáfora de que a doença mental é alguma espécie de infecção ou de malignidade. Entretanto, se assim fosse, seria possível “pegar”, transmitir ou mesmo “se livrar” da doença mental.

A construção desse mito opera na modernidade, em que a opressão não é mais um processo biológico de sobrevivência, e sim um fruto das tensões sociais das personalidades humanas. A doença mental adquire o sentido de uma deformidade na personalidade do indivíduo, a qual não está em consonância com a média e com os interesses dos demais, e causa, consequentemente, focos de discórdia humana.

Assume-se, então, como um afastamento das normas vigentes, sejam psicossociais, éticas ou legais, sendo estruturalmente desigual quanto aos diagnósticos e tratamentos.

Na verdade, então, que tipos de comportamento são considerados como indicadores de doença mental e por quem?

A ação curativa da estrutura terapêutica não é planejada para corrigir apenas desvios médicos; como exemplo, temos o uso desenfreado de antidepressivos e tranquilizantes como paliativos para uma série de questões existenciais.

A psiquiatria está intimamente ligada aos problemas da ética, uma vez que, na contemporaneidade, aborda problemas da vida em geral e não apenas referentes às doenças cerebrais; as ideias de um psicoterapeuta tomam parte em seu trabalho prático. Assim, numa conjuntura ideal, as terapias psiquiátricas deveriam se diferenciar de acordo com as posições éticas que ela incorpora.

“(...) enquanto a doença corporal refere-se a ocorrência óbvias e fisioquímicas, a noção da doença mental é usada para codificar acontecimentos mais particulares e sóciopsicológicos dos quais o observador (diagnosticador) faz parte”. O psiquiatra é um observador participante, pois tanto avalia quanto julga e define a realidade do paciente.

A função da doença mental é a de ocultar dificuldades que no presente são naturais nos intercâmbio sociais; as teorias do comportamento insistem em ignorar que as relações humanas são inerentemente providas de dificuldades. Assim, os conceitos, os diagnósticos e os tratamentos passam a funcionar como disfarces, pois fornecem uma coisa amoral e impessoal como explicação para todos os problemas (Szasz, 1959), afastando assim a responsabilidade e a moral humanas dos mesmos.

A adesão que perpetua o mito permite que as pessoas não encarem a questão básica do que o homem deveria fazer para ele mesmo, acreditando que a saúde mental, concebida como ausência da doença mental, automaticamente garante a tomada de opções certas e seguras na direção da própria vida.

Quando Szasz argumenta que a doença mental não existe, não quer dizer que as ocorrências sociais e psicológicas as quais este rótulo está sendo ligado igualmente não existem; na verdade, sua pretensão não é criar uma nova concepção da doença psiquiátrica nem novas formas de terapia, e sim sugerir que os fenômenos atualmente rotulados como doenças psiquiátricas sejam removidos da categoria das enfermidades a partir de uma revisão muito mais simples, contextual e humana, e enfim considerados não como malignidade de potencial estigmatizador e isolante, mas sim como expressões da luta do homem contra o problema de como o mesmo deveria viver nesse ambiente e nessa época.


Fonte: 

https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2148566/mod_resource/content/0/o%20mito%20da%20doença%20mental.pdf


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