Não sinto com segurança qual o dia, mas o calendário marca o fim da primeira semana de isolamento compulsório. Foi rápido demais que esse medo chinês e improvável ganhou contornos adjetivais de surto e epidemia. Meus pais e avós, entre os fantasmas de pandemias, guerras e crises econômicas, certamente nunca experimentaram um pânico global tão vizinho, pulsando nas soleiras das portas, e muito literalmente no ar. Respiramos ainda meio embasbacados, mas absolutamente desconfiados; seria agora? essa besta, minúscula a ponto de conquistar a invisibilidade do olho humano, mas jamais irrisória - será agora, neste fático e mal fadado instante fisiológico, que ela terá desbravado minhas vias, minhas mucosas, possuindo como um demônio do medievo minha carne flácida e me convertendo em estatística?
Os dias têm sido compridos, de modo que mal se assemelham à noção de contagem que conhecia; não tenho dormido muito, acordo pouco depois das 6h e a rotina nula me obriga a deitar por volta das 21h. Voltei a precisar da quetiapina e mesmo assim a combino com a melatonina, na tentativa imprudente de apagar. Apagar de uma maneira que o corpo possa de fato parar e esquecer, aprendendo com o sono a se reestruturar; mas desperto algumas vezes de madrugada, quando a compulsão ataca e logo me sinto inchada e culpada por toda a comida inútil dessa fome emocional. O corpo todo dói, mais fortemente das laterais do pescoço até a região anterior dos ombros. As costas acusam esse profundo mau jeito de tensão e postura inadequada, e parece impossível que qualquer alongamento de fato alivie os músculos.
Hoje precisamos sair pela primeira vez desde o início das recomendações do governo. As avenidas, outrora aquele comum show de barulho e fuligem, estavam desertas. Tendo notado tarde demais a data de validade vencida do nosso álcool em gel, procuramos a farmácia. Na entrada, uma senhora pedia dinheiro. Realmente dinheiro vivo é algo que não se vê depois da primeira semana do mês na nossa casa, quando pagamos as contas. Comida, então. É que só vamos na farmácia. Certo, nesse caso a senhora podia comprar um sabonete e uma pasta de dente pras minhas meninas? O crédito curto, a ansiedade de precisar se assear o quanto antes. Claro. Não temos álcool em gel. Esperado. Em tempos de cólera, as pessoas transparecem o egoísmo e a ignorância emocional estocando mais produtos do que jamais precisariam. Civilizados e pregando essa nova espécie de seleção natural. Compramos um minúsculo frasco de álcool líquido e notei o olhar perdido da senhora em direção às pessoas com máscara e ao cenho franzido da minha mãe por não encontrar o álcool em gel. Me afastei como mandam as recomendações, já que aquilo tudo parecia um lugar comum, uma ansiedade compartilhada, como se subitamente uma ideia inata platônica nos brotasse ao inconsciente coletivo. Pagamos e ela me agradeceu, perto demais, e me tocou, num gesto gentil e costumeiro. Processei um pouco lento demais e suponho que ela não sabia o que havia nas ruas, exatamente porque ela só existia nessas ruas. Quando saio do estabelecimento, vejo-a já longe, a perco. Seu medo é outro. Sem moeda de troca e sem identidade social, não têm espaço na informação; e ainda que um ou outro acaso lhe conduza às últimas notícias, o acesso é muito rarefeito, insuficiente. Quais os sintomas? Ah. Disseram que é tipo uma gripe, eu acho. Ah. Então tá. E mesmo assim, que importância prática teria? Como a mendicância e a rua crua possibilitam prevenção ou cuidado? Ter noção da gravidade realmente é a melhor opção incondicionalmente?
Ela me tocou, e eu escolhi não me esquivar, diante do absurdo que é ter de abdicar de contato físico. Eu sei sobre, não é preciso repetir. Mas seria inumano não aceitar aquela mão e retribuir com um sorriso quente a gratidão por algo tão banal. Imagino agora ela banhando as meninas, e espero que não estejam com fome quando limpas. Eu, sempre muito dada a carinhos, suponho o entrave à nossa cultura de calor agora; estranhos se cumprimentam com abraços e beijos que americanos e europeus destinam apenas aos seus queridos. Cutucamos pra chamar atenção, agradecemos apertando pele, parabenizamos colando carne. Somos hipócritas carinhosos, ainda que muitos dos afagos sejam vazios. E agora? Como se beija a suspeita?
No supermercado duas moças higienizavam as mãos e os carrinhos de compra dos clientes que chegavam; os corredores respondiam com um silvo de galpão abandonado, e as prateleiras pouco guardavam itens. Máscaras brancas, azuis e verdes, brancas azuis verdes. Me senti subitamente exposta e estúpida.
Escolhi os tomates com desconfiança e percebi, num tom jocoso: mesmo os tomates feios e machucados (e caros) parecem selvagens agora. Que mão haveria de tê-los rolado, examinando-os, antes? Aquela superfície delicada guardaria alguma gotícula de espirro ou tosse a qual eu levaria, ingênua, pra casa?
Apenas algum tempo de cárcere e todos os meus vícios destrutivos retornam; mesmo meu couro cabeludo lateja, e bambeio entre avaliar a realidade (precisando urgentemente de um bloquinho de papel e caneta para isso) e abdicar de todo esse esforço, me entregando ao que odeio ser minha natureza de apodrecer relações e me revelar odiável mesmo àqueles por quem muito apreço tenho. Eu viveria enfim só, realizando meu pavor maior ao invés de existir continuamente pressionada entre penhascos de conjecturas, suando frio e me induzindo a permanecer grogue na tentativa de me esquivar desse específico contato comigo mesma.
Paramos.
Os carros os aviões as rodovias os shoppings o comércio as escolas as igrejas os mercados. As redes sociais se converteram - do montante de rostos cuidadosamente arquitetados às orientações e testemunhos da calamidade pública. Há um uivo em uníssono, ainda que não se saiba bem em qual significação consiste. Mesmo a tevê permanece estática nas mesmas notícias e discursos de temor. O dinheiro ficou suspenso entre mãos que se recolheram, antissépticas. Parados, voltamo-nos para o trivial, cujo dever do prazo obscureceu: como a vitamina sustenta, como a água limpa, como a higiene previne, como o cuidado cura. Como as unidades de saúde precisam ser defendidas e como o pessoal é político: a doença do pobre não se realiza como a doença das demais classes, e a miséria funcional é muito mais comum do que nos garantiram. Como criamos uma natureza egoísta e fatalmente concorrente, e como a perversão do capital aliena a mais primitiva elucubração. Como a vida é frágil e outra, muito outra, do que a rotina a que convencionamos chamar de vida. Como a baixa renda inviabiliza o prazer, a distração e a catarse. Muita pressa e produção, muita cacofonia e paliativos - medidas emergenciais e drásticas que se naturalizam, remédios às várias pílulas coloridas e soldadoras, patologizando o medo comum. Estamos apavorados há muito mais tempo e além de muitos outros vírus, mas não estávamos em casa, não havia noite ou silêncio livres da iminência da manhã e do barulho, e todas as coisas íntimas deviam ser deixadas pra depois. De repente notamos, ou admitimos, que esse corpo não está bem e precisa de mais - desde alimentação adequada, exercícios e sono - à possibilidade de calma e respeito psicológicos. Preocupar-se com a família, eles que não são você mas que também sofrem. Lembrar que pessoas também podem ser perdidas. Descobrir quais são as prioridades, e o que realmente é possível ser adiado. Nos comparamos então àqueles mentalmente crônicos, cujos isolamento e medo são antigos e invariáveis. Viver a dor e a sensação de solidão social, dessa vez sem anestésicos virtuais ou esquivas efêmeras. Só temos a nós mesmos e aos muito próximos pra olhar.
E dessa vez, pela primeira, não temos meios materiais de fazer planos na intenção de viver sob a gestão do previsível e do calculável, sempre estreitando as vistas pros objetivos demasiados particulares e instrumentalizando as relações, sem conferi-las verdadeiro espaço e atenção.
E não preciso ir longe; penso no que fui ensinada a chamar de família, e percebo a discrepância entre minhas formulações sobre laços e afetos depois da adolescência, quando as experiências por si só comprovaram a falência das instituições comuns que deveriam me proteger, e o verbete social. Esse pai, e esses tios e tias, hoje a maioria depois de sua sexta década, desmentem a função que dizem ter o tempo, de amadurecer e humanizar; e acredito que isso tenha acontecido menos por disposição de caráter do que por escolha deliberada por não se dedicar a processos morais tão complexos. Foi uma opção confortável não ser minha família, especificamente eu, que sem pai e posses, não mostrava valor inerentemente material, e seria sempre aquela forma básica e primitiva de vida, cujas aspirações e atuações jamais ameaçariam os planos e as conquistas deles para si e para os seus. E quando esse medíocre animal lhes foi estranho em reivindicação por outras possibilidades de existência, quando agonizou incômodo e indevido demais, o ódio e a doença mantidos sempre polidos e discretos no fundo de suas respectivas índoles veio à tona; como ela ousa querer, e principalmente não querer algo? Então a doença arrebentou no polo mais fraco, ainda que as obsessões e comportamentos no polo oposto fossem tão patológicos quanto - e as vezes penso que ainda mais, pois não eram motivados por sintomas, e podem ser descritos em termos imorais de egoísmo e perversão. A maldade do sujeito comum, esse que com discrição paga suas contas, trabalha, engole suas pílulas, faz ligações de assuntos frívolos e com frequência se delicia no berço de vítima, parece doença apenas porque insistimos em metaforizar a enfermidade em termos filosóficos. Atitudes doentias não prescrevem agentes doentes, e tampouco a chamada maldade é unidirecional e existe sob a égide do consenso. O indivíduo mau expressa isso de forma multifatorial e tão cotidiana que nem ele ou os demais notam - pois a dor só ganha contornos de dor quando atinge aquele sente. A dor nos outros é só uma fábula, um berro seco rompendo a frequência. É a partir disso que desmonto e empilho mentalmente minhas relações, no exercício de entender onde ainda posso errar. E percebo o quanto de mágoa e amargura ainda resiste, direcionada àqueles cujo sangue se combina com o meu, mas que permitiriam que o meu escorresse sem ressalvas, se pudessem ser honestos - ao invés de perpetuarem essa hereditária postura hipócrita.
E assim o sendo, entendo como o microcosmo intensificou a transmissão do vírus e orientou a pandemia a essa magnitude; a monopolização da informação, a criação e veiculação de notícias falsas, o descumprimento das medidas de isolamento, a estocagem de comida e artigos de higiene, a compra ilegal de antibióticos e de medicação controlada, as receitas caseiras de antissépticos, a superlotação das unidades de saúde, a reivindicação por prioridade e imediatismo nos atendimentos, a tranquilidade que assolou o coração comum enquanto as vítimas eram apenas chineses e italianos, o caráter de feriado dado à quarentena. Essa ameaça biológica tem envolvido menos o potencial de contágio e a imunidade dos corpos (pois essa não depende da vontade), do que as ideias e os comportamentos básicos de convivência e respeito - provando que, a despeito de reações emocionais e fisiológicas típicas da espécie humana, o desdobramento moral e social delas não é, de forma alguma, inerente a nós.
Comentários
Postar um comentário