Repitam que a melhor saída é ser honesta.
Mesmo quando não há energia pra procurar entender e tornar externamente compreensível.
Depois de anos de uma depressão estável (no sentido de não haver melhora no quadro) você perpetua os hábitos que surgiram com ela. O isolamento, o silêncio, a fuga do contato, a dissimulação.
Você não lembra como era antes, esse antes parece uma outra era, inacessível e fantasiosa. A normalidade da convivência não é recuperável assim. Você não tem como resgatar como eram seus padrões de relação, e é obrigada a criar novos dentro das suas limitações.
Você é irremediavelmente marcada pela apatia, pelo distanciamento, pelo alheísmo. Ficar só não é uma opção, mas uma condição solidificada; qualquer esforço em mudar isso, buscando se tornar mais interativa e espontânea, é forçoso demais. Incômodo, doloroso. Você se sente o próprio incômodo, sempre arrastada pela rotina, como um obstáculo no dia-a-dia dos outros.
Cronicamente ansiosa, tu perde o fio dos assuntos e a noção do agora. Os gestos parecem secos e artificiais demais. Você se torna excessivamente autoconsciente e crítica e nada é apenas isso ou aquilo: você imerge num looping exaustivo de porquês, se obrigando compulsivamente a descobrir o sentido das coisas, porque nada parece conter uma essência ou um propósito definido ou indubitável.
Transita entre instinto, desamparo aprendido, fenótipo das circunstâncias. Sequela. Gera um ciclo de auto-ódio que não se rompe com teorias coerentes sobre o que vem acontecendo. Você sempre poderia ser diferente, essa é a impressão. Você poderia tentar um pouco mais, e alcançar os outros e deixar que te alcancem - não é difícil, parece imediato é óbvio pros outros. E por que não? Você se sente um pouco melhor agora do que no ano passado, certo? Isso não deveria significar mais?
Você tem medo. Um medo esmagador. Porque é muito muito fácil que essa distância se torne cada vez mais substancial (na verdade esse é o curso natural se você se distrair apenas um pouco), e em se estendendo, você inexiste no contexto. E se tu não está ali, ou aqui, ou em qualquer lugar, significa que a depressão voltou e se instalou mais imperiosa que antes. E você falhou, se iludindo sobre ser capaz de recuperar sua funcionalidade básica.
Você quer que te conheçam. Gostem ou não de você, permaneçam ou não na sua vida, mas você quer tentar. Quer ser sabida pelo entorno, fazer parte de algo, quer se fazer presente e experimentar sensações reais e comuns. Você quer o mínimo humano - compartilhar gostos, piadas, opiniões, discussões. É assim que se existe. É assim que se continua sendo. Mas não consegue dar um bom dia porque isso parece penetrar uma tal barreira protetiva, como se você fosse extremamente vulnerável, e as relações fossem um risco à manutenção do teu equilíbrio. É fatalista: as coisas se acabam, e as coisas que por acaso se mantêm um instante não são pra você. Você não merece, não é capaz de preservar nada e macula tudo aquilo que poderia ser simples. Construir laços é burocrático demais pra alguém instável e que nem sempre pode se fazer ativo; você vai faltar e decepcionar, e as pessoas vão igualmente faltar e decepcionar, e ainda que isso seja a base irremediável de qualquer relação humana, parece insuportável no atual estado. Todo o redor parece a ponto de quebrar e se liquefazer de maneira muito discreta - daquela forma que ninguém percebe porque não existe queixa audível. Você não sabe onde dói e não vê doer. Provavelmente não é real.
E você ainda não consegue dar bom dia.
O seu corpo pouco te pertence. Já era conformada com não haver controle sobre os processos mentais, mas nem mesmo sua dimensão biológica e física te pertence. Teu corpo espasma querendo se munir da segurança da solidão a cada possibilidade de contato real. Você quer, realmente quer conversar, tocar, outrar-se; mas se impede. Às vezes nem percebe, até que a noção do fracasso ataca.
Mesmo aparentemente cumprindo as obrigações sociais e fisiológicas, existe um foco de morbidez e infecção nessa normalidade, uma espécie de fingimento que não se conhece a natureza.
Eles, os outros, se viram pra você e comentam, por vezes textos muito importantes ou bonitos ou tristes, e você convulsiona um bocado, mas bem por dentro - já que nada te escapa, e as palavras são sempre econômicas, de modo que as reações parecem consequentemente frívolas.
Entende que é além do bom dia? Você se acostuma, a mais custo do que percebe, a se abster de comunicações essencialmente humanas. A doença mental afasta você do que é inerente e próprio de uma pessoa.
Então começam as suposições; você é só indiferente ou preocupada com outras coisas mais. Ou tem uma hierarquia instituída e imodificável de casos que exigem sua posição. Ou não se importa tanto assim.
Você é uma impostora, incapaz de estar inteira e consciente nas situações, pouco ou nada apta a amar verdadeiramente, porque isso exige energia e você tem se tornado um arremedo de vida biológica que apenas reage mediocremente e foge.
De maneira muito discreta e concisa - é aí que reside essa quarentena crônica e estrutural.
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