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A aproximação entre fenomenologia-existencial e clínica psicológica

Quando Jaspers, em 1913, funda a Psicopatologia como ciência autônoma (e portanto desvinculada da clínica psiquiátrica), utiliza o método fenomenológico, compreensivo e descritivo, criando assim a “psicopatologia fenomenológica”, também chamada de Psicopatologia Geral. Aquilo que era concebido apenas como sintomatologia (e portanto objetivado e distanciado de quem o apresentava) é ampliado para a compreensão de vivência, com a preocupação de serem avaliadas exclusivamente a partir do relato e da visão do paciente (os dados em si mesmos). Como ciência predominantemente descritiva, a  psicopatologia fenomenológica não se ocupa com as causas das manifestações, embora seu emprego seja um pré-requisito para qualquer investigação causal.
Essa abordagem compreende que "o discurso sobre o sofrimento psíquico não é uníssono, mas sim polifônico, cujas ressonâncias ecoam em diversos modelos explicativos dos transtornos mentais". (Henriques, 2010)
Desde 1980, o discurso biológico (apoiado na genética, na psicofarmacologia e nas neurociências) domina o campo da psicopatologia. Num movimento de retroalimentação com a imperante indústria farmacêutica, o consumo de medicamentos psiquiátricos nunca foi tão grande quanto o é na atualidade, já que mesmo os indivíduos considerados "normais" os utilizam para fins de “automelhoramento” (Enhancement) (Azize, 2008), ou seja, para a otimização de performances voltadas à “sociedade do espetáculo” (Debord, 1997). Concomitantemente, ressurgem as discussões sobre a eficácia dos tratamentos físicos para os transtornos mentais, como psicocirurgias e eletroconvulsoterapias, num esforço de reduzir o sofrimento psíquico ao neurobiológico, e intervir sobre ele com o mínimo de contato e diálogos humanos possíveis.
“(...) ainda estamos muitíssimo longe de uma ‘teoria do campo unificado’ na psicopatologia, e ficamos restritos às tentativas de amarrar as inúmeras pontas soltas – biológicas, psicológicas e sociológicas – dos nossos conhecimentos. (...) A única maneira de se evitar – ou talvez tentar administrar – os devaneios explicativos é a absoluta fidelidade à observação clínica.” (Bastos, 2000, p. 242).
Devido a esse afastamento, psiquiatria e psicanálise passam a se relacionar como rivais, já que o diagnóstico estrutural psicanalítico não crê que os transtornos mentais representem (apenas) doenças, mas sim modos de ser, e que mesmo estruturas aparentemente tão singulares de neuroses e psicoses derivam "dos mais gerais e compreensíveis impulsos da mente humana" (Freud, 1911) de maneira que o diagnóstico, ao invés de implicar uma patologização, se encaminha para a ideia de uma possibilidade existencial. Assim, enquanto a psiquiatria ocupa-se com o diagnóstico sindrômico e/ou nosológico, a clínica psicológica funda-se no diagnóstico estrutural - aberto à causalidade psíquica e aos efeitos do inconsciente. O ser psicólogo move-se no âmbito do ser-com.
"O termo clínica, provindo do grego kline, significa cama; assim clínica significaria debruçar-se sobre alguém que está ao leito. Clinicar seria debruçar-se ou inclinarse para poder apreender e escutar aquele que precisa de cuidado em mal estar. Clínica, então, seria uma modalidade da solicitude, fundamentada na escuta". (Morato, 2013)
Ao invés de se reduzir a classificações e rótulos abstratos e excessivamente teóricos (e portanto assujeitados), que inserem o indivíduo num campo simbólico apartado de como essa psicopatologia se manifesta nele, a clínica psicológica se pauta naquilo que Heidegger (1927/1984) chama de solicitude em seu modo liberador: a compreensão do outro diante de suas próprias possibilidades. A abordagem fenomenológica-existencial na clínica psicológica oferece uma outra possibilidade de concepção daquilo clamado como doença e anormalidade, além de um discurso que se volta inteiramente para a expressão da subjetividade do paciente. É a compreensão de que o eu sempre é numa forma afetiva e humoral, pois reage e se encontra com o que acontece no aí-fora (o mundo) - sendo as emoções o modo pelo qual o eu apreende o mundo, e os humores, a manifestação do eu nesse mundo. Nesse sentido, a emoção é já uma forma de compreensão apesar de nada ter a ver com a racionalidade: é um modo específico (e legítimo) de entendimento.
No plano atual, em que a modernidade capitalista maquinante insiste em uniformizar os humores e as expressões subjetivas e minimizá-las o quanto possível, um novo (e artificializado) modo de ser se molda; a ele Heidegger (1927/1984) denomina de indiferença afetiva cotidiana: movimento com emoções sem grandes diferenças, uniformizadas e sem ressonância intensa. 
A compreensão fenomenológica da psicopatologia é a de que, na constituição de ser-aí (ser-no-mundo), o mundo fere o eu, que, por sua vez, a ele responde na justa medida em que é ferido. Assim, não existe a noção de que essa resposta foge da média ou é anormal (exatamente porque busca-se abandonar a ideia de média na pré-determinação do que é equilíbrio psíquico), e sim de que tal respostas são naturalmente variantes, pois a dor desse ferimento difere particularmente. A experiência do ferimento provém da existência na realidade tanto quanto a ela esculpe. Assim, o clínico concebe que se trata antes de uma situação dolorosa composta por circunstâncias e por outros do que de um funcionamento psíquico perturbado por vicissitudes ou traumas.
As psicopatologias são tomadas como atitudes de prevenção à existência, em que essa proteção significa o afastamento de si mesmo, porque desloca a atenção àquilo que ameaça. O trabalho do psicólogo é promover uma situação acolhedora na qual se desmascara esse falso caráter ameaçador, levando o paciente a voltar-se novamente para si (auto-apropriação). 
A experiência da psicopatologia implica uma profunda sensação de ausência de sentido e desorientação da vida; é nesse momento que a ação psicológica intervém, reencaminhando o sujeito de volta a si mesmo. 
Segundo Morato (1989), a compreensão clínica do paciente ocorre por ressonância e não por empatia (MORATO, 1989), isso porque o psicólogo é atingido e afetado pela experiência narrada, ao invés de conceber essa experiência narrada exatamente como faz o paciente. A ressonância implica a experiência de ser tocado e compreender afetivamente (propriedade da afetabilidade).
O compreender é projetivo (àquilo a que se dirige), e é tarefa da intervenção psicológica atentar que o paciente, em relação ao árduo trabalho terapêutico de recuperação e apropriação de si, vai em direção ao que lhe é possível ser, sendo o psicólogo aquele que orienta o poder-ser desse indivíduo. A realidade do trabalho psicológico é a de oferecer possibilidades e não postular necessidades a serem cumpridas.
Além disso, sendo tudo o que existe uma totalidade de nexos significativos, o psicólogo deve habituar-se a ver de antemão, reconhecendo que existe muito na cultura que constitui os modos de ser, e identificar como e até que ponto essa cultura influencia e molda o indivíduo.
A ação psicológica parte do contexto psico-sócio-existencial, e "intenta uma visão compreensiva de sofrimento embutido na narração de uma história que, embora singular, diz respeito a outras pessoas em vários contextos. Nesse sentido, o cuidado do pesquisador/psicólogo considera as questões de quem se é, como se é, com quem se está e onde se está” (Morato, 2013), e ao considerar a esfera sociocultural na qual está inserido o paciente, se aproxima da fenomenologia, que, por sua vez, volta-se para a situação existencial desse indivíduo.
A fala fundamenta o ser-com. O modo pelo qual ocorre a intervenção psicológica clínica é totalmente ordenado e dependente da linguagem: tanto na expressão do paciente quanto no ouvir, compreender, interpretar e responder do profissional. É o ouvir que permite a vinculação (ser-com) entre os homens, assim, a ação psicológica é o ouvir radical. No exercício interno da fala, muito não-falado se deixa entrever, ocultamente expresso, como se a própria fala falasse por entre lacunas de compreensão (CRITELLI, 2002). Ciências como a sociolinguística provam que a fala também revela intenções, noticiando muito mais do que é materializado na palavra. É esse o objeto da ação psicológica. É aí também que a abordagem fenomenológica-existencial entra em cena, ampliando significativamente a possibilidade dessa comunicação. 

Fontes:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL PARA A AÇÃO PSICOLÓGICA NA PRÁTICA E NA PESQUISA EM INSTITUIÇÕES. Morato, Henriette T. P. 2013
Henriques, Rogério Paes. Psicopatologia crítica: guia didático para estudantes e profissionais de Psicologia. 2010

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