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A psicopatia e a "medicalização do mal"

O conceito de psicopatia, mesmo atualizado sob a égide supostamente neutra e objetiva do Transtorno de Personalidade Antissocial, ainda se ancora nas justificativas históricas de desvio de caráter e anomalia moral. Henriques (2009, 2014) aborda a psicopatia como a própria "medicalização do mal operacionalizada pela psiquiatria" e questiona: como proceder nesse caso, na qual os seus signos praticamente se reduzem à maldade e à crueldade e para a qual não há tratamento médico eficaz?

A partir de uma perspectiva fenomenológica da psicopatologia, a psicopatia refletiria uma alteração primária da “consciência moral” (Gewissen é o termo em alemão), na ausência de qualquer “alteração da consciência da realidade” (lucidez / vigilância) ou da “consciência do Eu” (autoorientação). Ou seja, os considerados "psicopatas" teriam plena consciência de suas transgressões, mas também um completo desprezo por regras e normas morais. Quanto a isso, pontuo:

A natureza desse desprezo seria neurobiológica?

Qual o nível de responsabilidade daquele que possui o conhecimento conceitual do dever, mas não opera empaticamente para entender na íntegra noções básicas como respeito ou ética?

Como, dadas as limitações, se estruturam os valores desse sujeito, e qual a extensão de sua possibilidade de compromisso social?

Qual o nível de liberdade moral daquele incapaz, parcial ou totalmente, de sentir? 

Historicamente, o conceito de psicopatia foi intensamente revisto; remete à manie sans delire (“loucura sem delírio” ou “loucura racional”) de Pinel e a moral insanity (“loucura moral”) de Prichard. A descrição pineliana garantiria que “(...) as funções do entendimento permaneciam intactas e só subsistiam à alteração da afetividade e à excitação, amiúde furiosa” (apud Bercherie, 1989, p. 36). Em 1860, Morel menciona os “maníacos instintivos”, ou seja, indivíduos cuja maldade e tendência à criminalidade eram inatas, e pouco tempo depois, no final dos anos 1880, Lombroso defende semelhante ideia, com sua teoria do “delinquente nato”, em que tal criminoso seria inclusive identificável através de sua estrutura facial e corporal. Na literatura psiquiátrica, é creditado a Koch o uso do termo “psicopático” pela primeira vez em sua obra "As inferioridades psicopáticas", de 1891. Contudo, é preciso lembrar que, no século XIX, a expressão “psicopata” (do grego: psyché = alma; pathos = paixão, sofrimento) se referia aos doentes mentais de modo geral. Os trabalhos de Kraepelin, Birnbaum e Gruhle afastaram rigidamente a psicopatia da psicose, afirmando que seria possível comorbidade, mas não gradação; já Kretschmer, em sua obra "Biótipo e caráter", de 1922, desconsideraria essa ideia, ao instituir um continuum de manifestações que iam da normalidade à doença. Sob sua influência, em 1968, Schneider toma a psicopatia como uma variação (desvio quantitativo e não negativo em sua essência), que tanto poderia ter um extremo negativo (antissocial) quanto um positivo (gênio). 

O estreitamento entre a noção de psicopatia e o transtorno antissocial fica a cargo de Cleckley, em The Mask of Sanity (1941). Como aponta o próprio título, o autor acreditava que, devido à ausência de sintomas psicóticos clássicos, o psicopata possuiria uma aparência de normalidade. Ele apresentaria, ainda, uma “demência semântica”: um déficit na compreensão dos sentimentos humanos, embora a nível comportamental pareça compreendê-los. Cleckley postula, então, as características centrais do indivíduo psicopata:

  1. Aparência sedutora e boa inteligência 

  2. Ausência de delírios e de outras alterações patológicas do pensamento

  3. Ausência de “nervosidade” ou manifestações psiconeuróticas

  4. Não confiabilidade 

  5. Desprezo para com a verdade e insinceridade 

  6. Falta de remorso ou culpa 

  7. Conduta antissocial não motivada pelas contingências

  8. Julgamento pobre e falha em aprender através da experiência 

  9. Egocentrismo patológico e incapacidade para amar

  10. Pobreza geral na maioria das reações afetivas 

  11. Perda específica de insight (compreensão interna) 

  12. Não reatividade afetiva nas relações interpessoais em geral

  13. Comportamento extravagante e inconveniente, algumas vezes sob a ação de bebidas, outras não

  14. Suicídio raramente praticado

  15. Vida sexual impessoal, trivial e mal integrada 

  16. Falha em seguir qualquer plano de vida (Cleckley, 1988, p. 337-338).

Resumindo: o psicopata causa uma boa impressão às pessoas à primeira vista; demonstra raciocínio lógico eficiente, sendo capaz de prever as consequências de seus atos, elaborar projetos de vida e criticar-se superficialmente quanto aos seus erros do passado; parece ser uma pessoa livre de empecilhos sociais ou emocionais; as manifestações neuróticas clássicas lhes são ausentes, assim como parece ser imune à angústia ou preocupação diante de situações perturbadoras. A partir de situações cotidianas, descobre-se que ele não possui senso de responsabilidade, contudo, não age de modo antissocial todo o tempo, sendo comum a alternância com condutas socialmente aceitas e valorizadas. O psicopata mostra total desconsideração pela verdade e não compreende a atitude das pessoas que a valorizam e a cultivam. não se sente culpado pelos vários importunos causados a si mesmo e a outrem, e se exime de qualquer responsabilidade e acusa diretamente outras pessoas. Apesar da inteligência acima da média, o psicopata não consegue aprender com seus erros. Nenhuma punição é passível de fazer com que o psicopata mude suas maneiras, embora as práticas punitivas, de ordem médica e jurídica, sejam as que mais recaiam sobre ele. Embora sua incapacidade para o amor não seja absoluta, suas reações afetivas ocorrem sempre em intensidade limitada. O psicopata possui uma profunda deficiência de insight (compreensão interna), que lhe acarreta um comprometimento grave em seu senso de avaliação da realidade. Ele é incapaz de estabelecer uma relação de empatia com outra pessoa. Esta deficiência é de difícil compreensão, já que ele utiliza todas as palavras, como se as compreendesse, mas, ao mesmo tempo, é alheio aos seus significados mais profundos. Costuma apresentar abuso de álcool e pouca propensão ao suicídio. A vida sexual é caracterizada por práticas sexuais desviantes. De modo geral, as relações sexuais, que podem ser de vários tipos, são impessoais e não implicam relacionamentos afetivos duradouros. Henriques (2009)

Atualmente, “psicopatia” (ou “sociopatia”) é sinônimo de “personalidade antissocial”; na Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10, os critérios diagnósticos para psicopatia são:

F60.2 Transtorno de personalidade antissocial

Transtorno de personalidade, usualmente vindo de atenção por uma disparidade flagrante entre o comportamento e as normas sociais predominantes, e caracterizado por:

(a) indiferença insensível pelos sentimentos alheios; 

(b) atitude flagrante e persistente de irresponsabilidade e desrespeito por normas, regras e obrigações sociais; 

(c) incapacidade de manter relacionamentos, embora não haja dificuldade em estabelecê-los;

(d) muito baixa tolerância à frustração e um baixo limiar para descarga de agressão, incluindo violência; 

(e) incapacidade de experimentar culpa ou de aprender com a experiência, particularmente punição;

(f) propensão marcante para culpar os outros ou para oferecer racionalizações plausíveis para o comportamento que levou o paciente a conflito com a sociedade.

Pode também haver irritabilidade persistente como um aspecto associado. Transtorno de conduta durante a infância e a adolescência, ainda que não invariavelmente presente, pode dar maior suporte ao diagnóstico (OMS, 1993, p. 199200).

Já os critérios diagnósticos da psicopatia no DSM-IV-TR são: 

Critérios Diagnósticos para 301.7 Transtorno da Personalidade Antissocial

A. Um padrão global de desrespeito e violação dos direitos alheios, que ocorre desde os 15 anos, indicado por, no mínimo, três dos seguintes critérios:

(1) incapacidade de adequar-se às normas sociais com relação a comportamentos lícitos, indicada pela execução repetida de atos que constituem motivo de detenção

(2) propensão para enganar, indicada por mentir repetidamente, usar nomes falsos ou ludibriar os outros para obter vantagens pessoais ou prazer

(3) impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro 

(4) irritabilidade e agressividade, indicadas por repetidas lutas corporais ou agressões físicas

(5) desrespeito irresponsável pela segurança própria ou alheia 

(6) irresponsabilidade consistente, indicada por um repetido fracasso em manter um comportamento laboral consistente ou de honrar obrigações financeiras

(7) ausência de remorso, indicada por indiferença ou racionalização por ter ferido, maltratado ou roubado alguém 

B. O indivíduo tem no mínimo 18 anos de idade.

C. Existem evidências de Transtorno da Conduta [caracterizado por “agressão a pessoas e animais”, “destruição de patrimônio”, “defraudação ou furto” e “sérias violações de regras”] com início antes dos 15 anos de idade.

D. A ocorrência do comportamento antissocial não se dá exclusivamente durante o curso de Esquizofrenia ou Episódio Maníaco (APA, 2002, p. 660).

Nota-se que, enquanto os critérios do CID-10 ainda focalizam determinados aspectos subjetivos, os critérios comportamentais do DSM-IV-TR acentuam a correlação histórica da psicopatia com a delinquência, ao ter como base uma orientação criminal comportamental. O diagnóstico apela principalmente para o testemunho de terceiros, ao invés de pautar-se, a priori, na escuta clínica do paciente. O sofrimento psíquico e os desvios comportamentais são considerados através de atos ilícitos observáveis, o que não apenas restringe o diagnóstico à infração da lei, como ignora outros comportamentos problemáticos que não alcançaram a esfera judicial.

Em tentativa de conciliação teórica, Hare considera a psicopatia como a forma mais grave de manifestação do transtorno da personalidade antissocial; haveria, portanto, diversas nuances de manifestações desse transtorno, em cujo extremo se encontraria a psicopatia – reservada a indivíduos sem empatia, remorso ou culpa.

A verdade prática é que o diagnóstico de transtorno da personalidade antissocial costuma ocorrer em casos em que o tratamento falha em “curá-los”. Isso acontece também em razão do "critério operacional", vigente desde o DSM-III (1980): "é a resposta positiva ao tratamento farmacológico (empírico) que passou a confirmar a posteriori o diagnóstico".

"No caso do transtorno da personalidade antissocial estabeleceu-se que é a resposta negativa ao tratamento o que permite a confirmação da hipótese diagnóstica. Sustenta-se assim seu niilismo terapêutico. Não por acaso, esse transtorno localiza-se no Eixo 2 do DSM, justamente o lócus dos transtornos crônicos supostamente incuráveis". *O TPB (Borderline) aparece classificado na mesma categoria II/cluster B.

Para Henriques (2009, 2014) a abordagem psicológica mais efetiva para o tratamento da psicopatia ou TPA seria a psicanálise; alguns autores psicanalistas acreditam que a gênese da psicopatia resulta de uma deficiência no Superego, o representante psíquico da norma internalizada – tal como proposto por Sigmund Freud. De acordo com tais autores, nesses casos, haveria um “Super-eu isolado”, “Super-eu deficitário”, “hipotrofia do Super-eu”, “Super-eu sádico”, entre outros. Aos moldes do imperativo categórico kanteano, o psicopata apresentaria um "imperativo sadeano": uma aproximação com o sadismo, o qual leva às últimas consequências essa injunção do Supereu, isto é, o impulso ao gozo.

O tratamento psicanalítico se construiria em torno de regular seu modo de gozo, ao invés de substituí-lo ou proibi-lo. Tal como na política da redução de danos, o objetivo seria chegar a certa regulação do modo de gozo que diminua os prejuízos causados a outrem e a si mesmo.


Fontes:

HENRIQUES, R. P. “Psicopatia enquanto conceito - Discussão do problema a partir de uma perspectiva histórica e filosófica”. Revista Psicologia - Especial Psicopatas (Mythos Editora), nº 4, p. 14 - 19, São Paulo, 06 jan. 2014.

HENRIQUES, R. P. "De H. Cleckley ao DSM-IV-TR: a evolução do conceito de psicopatia rumo à medicalização da delinquência". Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, v. 12, n. 2, p. 285-302, junho 2009.

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