O “normal” e o patológico através do conto o Alienista (Assis, 1881) e da normatividade de Canguilhem
A classificação em normal ou patológico parece cristalizada nos imaginários; entretanto, isso se dá por influência continuada dos critérios médicos modernos a que somos expostos. Como todas as tipologias artificiais, esta também serve à História e à intenção dos homens e mulheres. Quando se reflete a fundo sobre como se pode conferir ao pensamento-comportamento de determinada pessoa os status de normal ou doentio, vários são os critérios de normalidade existentes; contudo, três se destacam: o subjetivo, o estatístico e o qualitativo.
a) critério subjetivo: associa a doença ao sofrimento, logo, está doente quem se sente doente.
b) critério estatístico ou quantitativo: toma o normal como sinônimo de comum, frequente, ou mais próximo à média;
c) critério qualitativo: define que o normal é aquilo adequado a determinado padrão funcional considerado ótimo ou ideal.
Contudo, falhos como toda tentativa de sistematizar ou homogeneizar àquilo que é humano, tais critérios são facilmente invalidados. Quanto ao critério subjetivo: em episódios de mania (um dos polos do Transtorno Afetivo Bipolar), o sujeito sente-se extremamente bem, potente, disposto e enérgico - e mesmo assim isso não o capacita plenamente como saudável, e por vezes a mania evolui para estados de psicose. Quanto ao estatístico, diversas patologias são comuns, como a herpes ou a ansiedade, assim como é comum que pessoas apresentem comportamentos agressivos e egotistas e isso não as torna moralmente corretas. E, em relação ao qualitativo (a meu ver o mais problemático), é preciso atentar que o padrão funcional recai no relativismo cultural, já que baseia-se em normas socioculturais arbitrárias que em geral obedecem a interesses capitais; sobre isso, pode-se mencionar as Síndromes Ligadas à Cultura (assunto do próximo post). Sabendo disso, Atwood Gaines (1992), questiona a classificação dos DSM’s através da etnopsicologia que embasa as nosografias psiquiátricas norte-americanas, demonstrando que as mesmas defendem uma noção positiva idealizada do eu: aquela de um eu autocontrolado, autônomo e invariavelmente em busca de seu crescimento pessoal. Daí o motivo porquê grande parte dos psicólogos norte-americanos “rejeita o DSM, concebendo-o como enviesado por questões culturais e de gênero, reprodutor do modelo médico-psiquiátrico e guiado pelo reembolso dos planos de saúde”. (Hill & Fortenberry, 1992)
O ALIENISTA: CRITÉRIO ESTATÍSTICO
Na novela O Alienista, de Machado de Assis (1881), é possível identificar uma crítica voraz ao alienismo francês de Pinel, Esquirol e seguidores.
Como já discutido, Pinel pode ser considerado um “reformista”, porque rompe com o tratamento de exclusivo aprisionamento (literal, utilizando-se de jaulas e correntes) e oferece aos internos a possibilidade de tratamento; Simão Bacamarte segue esse exemplo, criando a “Casa Verde” em Itaguaí, e conferindo aos loucos “que eram trancafiados em sua própria casa” e viviam como bichos, um tratamento científico. Seu objetivo, exatamente como o de Pinel, era “estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhes os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal”. (Assis, 1995, p. 22).
Assim, Simão dá início a vasta classificação dos seus enfermos, “dividindo-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito, começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regime, as substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, não só os que vinham dos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, à força de sagacidade e paciência (Ibid, p. 24)” Henriques, 2010.
A autoridade médica absoluta, a defesa de limites tão rígidos entre a normalidade e a loucura e a concepção da segunda como qualquer mínimo escape à razão instituída, leva Bacamarte a encarcerar 4/5 da população itaguaiense.
Ao perceber a quantidade de “loucos” que internara, expede um ofício à
Câmara de Vereadores comunicando que todos os loucos da Casa Verde seria liberados. É aí que emerge o critério estatístico ou quantitativo da normalidade: se a maioria da população da cidade fora classificada como louca, então sua concepção de loucura deveria estar errada.
“(...) a verdadeira doutrina não era aquela [loucura como desequilíbrio das faculdades mentais], mas a oposta, e portanto que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades, e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto” (Assis, 1981, p. 46).
As ideias de sanidade e loucura foram, então, redefinidas a partir da prevalência estatística: se o desequilíbrio mental prevalece, ele passa a ser a norma a partir da qual se mede o desvio-padrão.
Depois que a loucura foi concebida como padrão, o método terapêutico de Bacamarte era basicamente o “tratamento moral” pineliano às avessas, atacando “de frente a qualidade moral predominante” (Ibid., p. 52). Se o tratamento pineliano consistia em reeducar o indivíduo, Bacamarte buscava deseducá-lo até afetar sua sanidade mental. Assim, após cinco meses e meio, todos os internos haviam restituído o desequilíbrio das faculdades (a “normalidade”).
Sobre a relativização e ineficácia dos tratamentos, Henriques (2010) escreve uma nota:
Poder-se-ia encontrar aqui uma crítica à limitação das intervenções psiquiátricas cujo panorama contemporâneo é o de uma proliferação indiscriminada de códigos diagnósticos que não é acompanhada proporcionalmente pela proliferação de condutas terapêuticas específicas? Sabe-se, por exemplo, que a psiquiatria, comparativamente a outras especialidades médicas, tem um dos menores elencos de medicamentos disponíveis, cuja ação é bastante inespecífica.
Mas, se a normalidade estatística elegia o desequilíbrio mental como seu representante, àqueles anteriormente considerados plenamente saudáveis eram os novos desviantes - inclusive o próprio Simão Bacamarte:
“(...) pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto” (Ibid., p. 52).
Assim, interna a si próprio na Casa Verde e falece pouco tempo depois, sem nenhum avanço teórico quanto aos critérios de classificação.
CANGUILHEM: A NORMATIVIDADE
Ainda hoje vigora a noção de que qualquer desvio implica alteração patológica. Canguilhem percebe que o “normal” não apenas é tido como um fato, mas também como aquilo que é desejável, ou seja, a classificação psicopatológica não é totalmente objetiva e imparcial, possuindo também um conteúdo valorativo.
Trazendo a ideia de anomalia ao debate polar sobre saúde e doença, Canguilhem expande as manifestações do corpo, humanizando-o.
“Anomalia é qualquer diferença constatada em relação ao que é estatisticamente prevalente, uma simples variação, que não implica necessariamente restrição patológica”, e para o autor, as anomalias seriam próprias da pluralidade vital, e não anormalidades, que ocorreriam quando tal anomalia prejudicasse ou impossibilitasse o processo vital.
O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas (Canguilhem, 2002, p. 158).
Portanto, a normalidade não pertenceria ao indivíduo perfeitamente adaptado ao seu meio, mas sim àquele cuja flexibilidade o adaptaria a novas e/ou adversas condições de vida. A essa capacidade Canguilhem chamou normatividade. Para ele, em muitos casos, a normalidade não significa nada mais que rigidez e fragilidade psíquica, incapaz de manter-se equilibrada diante das adversidades e do inesperado da vida.
A prática clínica tensionaria justamente o aumento da normatividade que o sujeito pode alcançar, dadas as condições de limitação que sua doença impôs, e, por causa disso, a noção de saúde só pode ser analisada a partir da singularidade de cada caso.
Para Canguilhem, a saúde era assunto que concernia a todos e não devia se encerrar em manuais científicos; não seria o método classificatório rígido que determinaria a saúde e a doença através de medições de um corpo-máquina, e sim o pragmatismo que confere autonomia ao “corpo subjetivo” sobre sua própria saúde e doença, sendo esse “corpo subjetivo” “o conjunto de habilidades que cada um possui e que permite contornar as agressões às quais se está exposto”.
Assim, tece críticas mesmo a definição de saúde atual da OMS, de que “a saúde é um completo estado de bem-estar físico, mental e social, e não a mera ausência de doença”, por ser demasiada utópica e inexequível, dada a “polaridade dinâmica” da vida, ou seja, “o movimento dialético entre saúde e doença. Dessa perspectiva, saúde é a capacidade de adoecer e se recuperar.”
Além disso, ainda segundo Henriques, a definição de saúde da OMS também compromete a saúde coletiva, já que a utopia da “saúde perfeita” (Sfez, 1996) justifica a ampla medicalização da
população, e se constitui como um exercício de biopoder.
Sendo assim, como, afinal, conceber a tal normalidade?
A proposta defendida é que “normalidade” não seja utilizada em uma relação dicotômica com a psicopatologia, antagonizando a mesma. A ideia é que essa relação na verdade seja reconhecida por seu caráter fluido, flexível e cíclico: a saúde e a doença não são conceitos fechados, constantes e imutáveis, mas sim condições que interagem e se alternam conforme desequilíbrios físicos e psíquicos cotidianos. A normatividade de Canguilhem admite que a saúde do indivíduo reside justamente em sua capacidade de adaptar-se ao imprevisto, e acontece de a psicopatologia ser também essa tentativa de interpretação e reação à adversidades. Somos humanos e nenhuma razão padrão é capaz de nos blindar a traumas e estressores. É preciso respeitar o tempo e a singularidade de casa indivíduo, sem recorrer a medicalização daquilo que é trivial. A anormalidade seria justamente quando nenhum tempo e singularidade confeririam recuperação e restituição do equilíbrio, prejudicando a vitalidade. Então, sim, a medicação específica não seria jamais negada, mas o esforço maior deveria se voltar para a psicoterapia, onde esse indivíduo, através de trabalho conjunto, reorganizaria a si mesmo.
Se tornou hábito patologizar aquilo que apenas foge à regra, havendo um consenso sobre o que são o pensar e o agir humanos. Talvez essa pressão social para adequação compulsória e mecanizada seja o que traz mais sofrimento à psicopatologia do que os próprios sintomas. Para ilustrar isso, Henriques recorre ao exemplo de Ray, um paciente de Oliver Sacks portador da Síndrome de Tourette. Apresentando os tiques desde os 4 anos, Ray aprendeu não apenas a conviver com a doença, adaptando-se às suas limitações, bem como a tirar proveito dela em diversas atividades (como a música). Entretanto, a doença lhe custava empregos estáveis e o relacionamento, e Ray procurou Sacks, que lhe prescreveu Haldol - que lhe conferiu uma sobriedade frígida a que Ray era incapaz de se acostumar, tendo sido posteriormente manipulado de forma a minimizar seus efeitos de automatização, devolvendo a Ray a agilidade mental e as demais características que lhe faziam reconhecer a si como ele mesmo, características que fugiam bastante da média, e ainda assim não eram consideradas doentias ou prejudiciais.
“Ter a Síndrome de Tourette é uma loucura, é como estar bêbado o tempo todo. Estar sob o efeito do Haldol é sem graça, deixa a pessoa certinha e sóbria, e nenhum desses dois estados é realmente livre (...) Vocês, “normais”, que possuem os transmissores certos nos lugares certos no cérebro, têm todos os sentimentos, todos os estilos disponíveis o tempo todo: seriedade, veleidade, o que quer que seja apropriado. Nós, os que temos a síndrome, não: somos forçados a leviandade pela síndrome e forçados à seriedade quando tomamos Haldol. Vocês são livres, têm um equilíbrio natural: nós precisamos tirar o maior proveito possível de um equilíbrio artificial” (apud Sacks, 1997, p. 117-118).
Entretanto, é preciso ponderar: não se deve desautorizar toda a clínica psiquiátrica e sua metodologia diagnostica em troca de uma concepção utópica e romântica da doença mental, mas sim fazer dialogar critérios e não protagonizar um diagnóstico frio, distante e objetivado; antes, muito antes de um CID circunscrito num esforço generalizante, há um indivíduo, e ele possui a voz sobre a condição que apresenta. É preciso não cair na tentação prescritiva de medicalizar e silenciar em uma caça frenética à padronização e à funcionalidade social: em se tratando de patologias crônicas, sabe-se que a cura futura não deve ser o foco, e sim o controle e a amenização presente dos sintomas que fazem sofrer. As manifestações da doença não vão desaparecer de todo, e ainda que assim o fosse, os anos experienciados certamente não iriam. A prática clínica deve se pautar em ressignificar e conferir autonomia dentro do possível para o paciente, de forma que ele conduza as próprias interações saúde-doença, e possa ele mesmo, idiossincraticamente, definir sua ideia de normalidade.
Fonte: Henriques, Rogério Paes. Psicopatologia crítica: guia didático para estudantes e profissionais de Psicologia. 2010
Comentários
Postar um comentário