Pular para o conteúdo principal

Liberdade e neurobiologia - síntese (Searle, 2004)

Liberdade e neurobiologia: reflexões sobre o livre-arbítrio, a linguagem e o poder político” é composto por duas palestras de Searle, proferidas em Paris, em 2001. São uma introdução às teorias de Searle vigentes desde a década de 1970, nas áreas da filosofia da linguagem e da filosofia da mente - voltadas, nesse volume, para o livre-arbítrio e o conceito de consciência.
PALESTRA 1: LIBERDADE E NEUROBIOLOGIA

O problema do livre-arbítrio 

“Como sabemos que não estamos sonhando, que não somos apenas um cérebro flutuando dentro de um recipiente, em que gênios malignos se divertem conosco?”

Trazemos a impressão de que as explicações dos fenômenos naturais devem ser completamente DETERMINISTAS: “...se for preciso explicar certa categoria de comportamentos humanos, parece que, de maneira característica, o fato de agir ‘livremente’ ou ‘voluntariamente’ constitui, para nós, uma experiência que torna impossível recorrer às explicações deterministas”. O desafio cético do determinismo se orienta em torno da competição entre liberdade e da ideia de que todo acontecimento tem uma causa. Searle exemplifica através do dualismo cartesiano mente/corpo: todos os estados mentais são causados por processos neurobiológicos. Dessa forma, o novo problema formulado é sobre essa tal NEUROBIOLOGIA.

A experiência consciente subdivide-se em um caráter passivo da consciência perceptiva (independe de mim pois acontece instantaneamente a partir mundo) e um caráter ativo da consciência volitiva (ação orientada por condições causais como crenças ou desejos); em tal caráter ativo, ocorrem situações de deliberação e ação, definidas por um ou mais intervalos (gap).

Afinal, se nos é concedido que façamos a experiência da liberdade, essa experiência é válida ou ilusória?

Desenvolvendo a problemática entre determinismo e neurobiologia, Searle questiona se seríamos, então, orientados por uma espécie de determinismo psicológico, através de comportamentos psicologicamente compulsivos? 

A ação da consciência sobre o corpo 

Como a consciência pode funcionar casualmente agindo sobre o corpo?

A consciência, na verdade, vem do cérebro - que seria um todo sólido não apenas de conexões neuronais. Tal consciência não é, entretanto, redutível a microestruturas físicas, pois possui uma ontologia em primeira pessoa. Apesar disso, é importante frisar que o poder causal da consciência não se estende para além do poder das estruturas neuronais.

A estrutura da explicação racional 

O livre-arbítrio seria relativo a certos tipos de estados de consciência, como a tomada de decisão livre e racional por meio dos intervalos. A explicação racional não se pauta em explicações causais habituais: designa a razão, ressaltando mais que as condições causalmente suficientes. Tais explicações exigem que postulemos a existência de um eu não redutível, um agente racional, além da sequência dos acontecimentos. Ou seja, seria uma forma lógica de causa dos acontecimentos em consonância com um eu racional consciente (gap).

Aborda-se, agora, a existência desse eu e os problemas relativos ao inconsciente, ao auto-engano (self-deception).

Quanto ao acesso ao intervalo, existem duas vias de acesso: o experiencial (nós como agentes livres) e o linguístico (explicações através de uma entidade ou ego).

Assim, algumas razões são mais imperativas que outras: “A causou B” contrapõe-se a “um eu racional S realizou um ato A e para essa ação baseou-se em uma razão R”.

O livre arbítrio e o cérebro

Voltamos ao problema neurobiologico: as características do cérebro devem estar no princípio do livre-arbítrio. Os estados conscientes são características superiores ou sistêmicas do cérebro, causados pelos microprocessos inferiores;  

mas qual o comportamento dos neurônios e sinapses?

O macro sistema seria constituído de consciência, intencionalidade, decisões e intenções; já os microprocessos, de neurônios, sinapses e neurotransmissores.

Mas como representar o intervalo (gap) no plano neurobiologico?

O determinismo neurobiologico conduziria a um libertarismo psicológico?

“Temos a experiência do livre-arbítrio, mas ele seria uma ilusão, uma vez que os processos neuronais são causalmente suficientes para determinar os estados subsequentes do cérebro”. 

A consciência está em todas as partes do cérebro onde a atividade neuronal a cria, contrariando, assim, a herança cartesiana de que a consciência não possui localização espacial. O estado dos neurônios determina o estado da consciência. Todavia, todo estado determinado dos neurônios/da consciência não é causalmente suficiente para transportar ao estado seguinte: exige-se processos racionais de pensamento próprio.

A hipótese (1) e o epifenomenismo

(1) o estado do cérebro é causalmente suficiente.

*epifenomenalismo é a visão segundo a qual alguns ou todos os estados mentais são meros efeitos secundários ou sub-produtos do estado físico do mundo, ou seja, o epifenômeno seria, sinteticamente, o que não tem importância no sentido de se tratar de uma característica que não desempenhou o papel causal.

A consciência não seria uma questão de característica superior ou sistemática funcionando causalmente: não há dois conjuntos de causas - a consciência e os neurônios - mas somente um único conjunto descrito em diferentes níveis.

“Nessa hipótese, as características essenciais da tomada racional de decisão, isto é, a experiência que fazemos do intervalo - a experiência do leque de escolhas que nos são apresentadas, a experiência do fato de que os antecedentes psicológicos da ação não são causalmente suficientes para induzir a ação e a experiência dos processos conscientes de pensamento em virtude dos quais decidimos e depois agimos -, todas essas características da experiência não têm importância”.

Seriam epifenomenais porque nossa decisão já estava fixada pelo estado de nossos neurônios. O teste para saber se A é epifenomenal seria o seguinte: mesmo que A não tivesse ocorrido, ainda assim B teria ocorrido.

A hipótese (1), em resumo, desmente o livre-arbítrio e o papel da evolução, já que a atuação racional livre não passaria de uma ilusão, e nossa experiência disso não teria nenhuma influência sobre o mundo, quando na verdade as experiências do intervalo, assim como as decisões finais, igualmente fixadas no plano neuronal, possibilitam a decisão racional.

Hipótese (2) - o eu, a consciência e o indeterminismo

(2) o estado do cérebro não é causalmente suficiente.

“Cada característica da consciência é inteiramente determinada pelo estado dos microelementos, ao mesmo passo que a consciência do sistema funciona causalmente na determinação do estado próximo do sistema, pelo caminho de processos que não são deterministas, remetendo a uma tomada de decisão livre por meio de um eu agindo com base em razões.”

Dessa forma, seríamos estados de consciência, fixados pelos processos neuronais, em conjunto com processos conscientes não deterministas por intermédio do eu racional, o qual toma decisões fundamentadas em razões. 

Para Searle, são três as condições de funcionamento do cérebro: I) a consciência, em seu sistema neuronal, tem funcionamento causal em relação ao corpo, II) o cérebro causa e sustenta a existência de um eu consciente capaz de tomar decisões racionais e de traduzi-las em ações (os efeitos físicos da consciência não são todos racionais e livres; há necessidade não apenas da descrição neurobiologica de causação mental, mas também da descrição neurobiologica do eu racional e volitivo).

O segundo ponto pauta-se no questionamento “como o cérebro cria um eu?”

Searle traz a noção kantiana do eu (argumento transcendental): tal eu é concebido não como uma entidade que vem se sobrepor, mas como um resultante da associação do caráter do agente consciente com a noção de racionalidade consciente.

Assim, há três elementos que um organismo exige pra ter um eu: a) um campo unificado de consciência,  b) a capacidade de deliberar com base em razões (capacidades cognitivas de percepção e memória, e de coordenar estados intencionais para decisões racionais) e c) o organismo deve ser capaz de iniciar e realizar ações (volição).

E, por último, (III) o cérebro é tão capaz quanto o eu consciente (intervalo), de modo que nem a decisão nem a ação são predeterminadas pelas condições causalmente suficientes. 

Qual a realidade neurobiológica do intervalo, ou como integrar a ideia de um indeterminismo racional a essa descrição de funcionamento do cérebro?

Para isso, retomamos a) as experiências de ação livre remetem às ideias de indeterminismo e racionalidade e b) o indeterminismo quântico é a única forma de indeterminismo estabelecida como fato natural. Então, a pergunta correta seria “qual a relação entre a indeterminação quântica e a racionalidade?”, ainda que a indeterminação desse sistema não implique o acaso no âmbito do sistema.


PALESTRA 2: LINGUAGEM E PODER

Searle utiliza-se de sua obra The construction of social reality (1995), sobre a relação entre filosofia política e filosofia da linguagem. Dessa forma, o objetivo da palestra é explicar como a linguagem age na constituição do poder político.

A relação mencionada busca reconciliar a concepção que temos de nós mesmos como agentes conscientes, inteligentes, livres, sociais e políticos com uma concepção de um mundo constituído de partículas físicas, desprovidas de inteligência e significado, e submetidas aos campos de força.

Searle inicia a distinção sobre a qual se apoia a análise: elementos da realidade que são independentes do observador (relacionados à física, à biologia e à química, tais como força, massa, atração gravitacional, ligação química, fotossíntese etc) e elementos da realidade dependentes do observador (de suas atitudes, pensamentos e intencionalidades, tais como o dinheiro, a propriedade, o casamento, a linguagem etc).

Entre a distinção de tais elementos da realidade dependentes ou independentes do observador, é preciso acrescentar uma distinção entre a objetividade e da subjetividade epistêmicas (na primeira, o valor de verdade é determinado independente do sentimento e das preferências do indivíduo, e na segunda ocorre o contrário) e a objetividade e subjetividade ontológicas (são propriedades da realidade: as primeiras não precisam de experiências subjetivas, enquanto a segunda depende da experiência do sujeito). Essa distinção é necessária porque Searle defende que toda a realidade política têm parte na subjetividade ontológica - é relativa ao observador.

Em seguida, o autor parte para a formulação da relação gradativa humana entre fatos sociais e fatos políticos; “a produção de fatos sociais é uma capacidade com base biológica que os humanos compartillham com outras espécies: ou seja, a capacidade de intencionalidade coletiva”, ou comportamentos de cooperação. A passagem para os fatos institucionais (políticos) se dá através de dois elementos suplementares: a atribuição de funções e as “regras constitutivas”. A primeira se inicia graças as características físicas dos objetos, e progride, através da intencionalidade coletiva, às funções com base não apenas em estruturas físicas, mas também na aceitação coletiva do status desses objetos (como exemplo, temos o dinheiro). A regra constitutiva está relacionada à atribuição de status (diferentes das regras reguladoras): criam a possibilidade ou definem novas formas de comportamento (como exemplo, tomamos as regras de um jogo de xadrez). Ou seja, a passagem do primitivo para o institucional se dá na propriedade de atribuir um status às coisas que não o possuem intrinsecamente e, em seguida, associando a esse status, um conjunto de funções que só se podem exercer em virtude da aceitação coletiva do mesmo e de sua função correspondente.

O mencionado status está ligado a potências positivas e negativas; é constituído por linguagem e simbolismo, através da nossa representação (fenômeno X é representando como tendo status Y). 

Sobre a linguagem: a mesma é uma instituição social de base - é não apenas necessária para a existência das outras instituições sociais, mas também no sentido em que os elementos linguísticos se autodefinem como linguísticos. Tal definição ocorre na conjunção de nossa capacidade inata e nossa exposição cultural. Em Speech Acts (1969), Searle evoca a função da linguagem tanto quanto comunicação consigo mesmo e com os demais, quanto como papel suplementar de constituição da realidade institucional (para que as coisas públicas sejam, as pessoas são responsáveis por ter delas os pensamentos condizentes, através dos meios apropriados concedidos pela ordem linguística ou simbólica).

O poder político 

A concepção da realidade social e da racionalidade comporta uma concepção implícita do poder político, e pode ser resumida em algumas propostas: a) o poder político é uma questão de funções de status (poder deôntico); b) relações entre o poder político e o poder econômico diferem em motivações: o primeiro corresponde à máquina governamental, enquanto o segundo corresponde ao aparelho econômico que cria e distribui bens. Quanto à questão da motivação, a função de reconhecimento de um status por um agente consciente confere-lhe uma razão de agir que é independente de seus desejos imediatos. Na política, o fato de reconhecer um conjunto de fatos institucionais como válido ou obrigatório cria razões de agir independentes do desejo; c) todo poder político vem de baixo: o fato de o sistema de funções de status exigir um reconhecimento coletivo faz que todo poder político autêntico venha da base; d) estar na origem do poder político, por meio da contribuição da intencionalidade coletiva, não impede que o indivíduo se sinta impotente: sente-se que os poderes locais independem de nós, e assim, introduz-se uma nova e alternativa forma de intencionalidade coletiva, a consciência de classe, de gênero etc; e) os poderes políticos, por sua vez deônticos, são constituídos linguisticamente: as funções de status só podem existir se forem representadas através da linguística, embora o conteúdo da representação não tenha de corresponder exatamente ao conteúdo real da estrutura lógica do poder deôntico - “aqueles que controlam a linguagem controlam o poder”; f) differentia entre fatos políticos de outros fatos sociais e institucionais: o conceito do político invoca um conceito de conflito de grupo (embora nem todo conflito de grupo seja político); g) o conceito de função de status desenvolvido em The construction of social reality postula que as mesmas são razões de agir independentes do desejo; h) mas o que, afinal, torna um sistema aceitável? Weber identificou três tipos célebres de “legitimação”: o tradicional, o carismático e o racional - sendo esse último o mais teoricamente creditado à aceitação, embora muitos desses sistemas funcionem sem nenhuma questão de legitimação ou justificação, como apenas uma questão de dinheiro, por exemplo, e assim é como acontecem e são perpetuadas as injustiças sociais; i) a mecânica das mudanças sociais dependem do movimento nas funções atribuídas e no background - e inclui-se aí a linguagem, com sua característica de instituição de base.








Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A clivagem (splitting) no TPB na perspectiva psicanalítica

Também chamado de Transtorno de Personalidade Limítrofe, o TPB (cuja tradução literal indica "fronteira" ou "limite") é por vezes descrito no aspecto de síndrome, que insere subtipos de transtornos fronteiriços. Sobre a concepção do que seria esse estado Limítrofe, os autores reiteram que se trata mais de um "rico território de trocas", ao invés da noção que perdurava desde o século XX, de uma condição psíquica entre a neurose e a psicose: "(...) Green e Donnet, em 1973, associaram a dinâmica fronteiriça a um núcleo psicótico sem delírio denominado de psicose branca (DONNET; GREEN, 1973). (...) A importância, então, de definir limite como um conceito se impõe e reside não apenas no interesse teórico-clínico em delimitar dois ou mais espaços, mas, '[...] sobretudo, ver quais serão as passagens, as transgressões que poderão ocorrer de um espaço para o outro, e nos dois sentidos' (GREEN, 1986a/1990, p. 19). O limite não é, portanto, apenas uma li...

O eu dividido (Laing, 1960) - parte I

O eu dividido: estudo existencial da sanidade e da loucura  (1960) é uma tentativa de fuga da técnica estática da linguagem e da interpretação psiquiátrica da época. Sem aprofundar-se na literatura específica, utiliza-se da fenomenologia existencial de Sartre, Heidegger, Kierkegaard e outros, na busca por definir um lugar digno e pleno para a realização da (perda) de autonomia e do senso de realidade dos chamados esquizóides e esquizofrênicos. Faz-se ressalvas quanto a terminologias: aqui, paciente “esquizoide” tem sentido de um esquizofrênico em potencial que ainda não manifestou psicose aguda (“ ruptura entre o relacionamento consigo mesmo e com o mundo” ); “esquizofrênico” refere-se ao indivíduo em crise, e “psicopata” é tomado como sinônimo da pessoa social e medicamente considerada insana. 1. Fundamentos existenciais-fenomenológicos para uma ciência das pessoas  Laing procura, a partir da abordagem existencialista e tomando de empréstimo os avanços psicanalíticos, romper ...

O modelo biopsicossocial (Engel, 1977), a psiconeuroimunologia e a Medicina Integrada

O modelo biopsicossocial de Engel (1977), bem como suas evidências na Psiconeuroimunologia, evidenciam que o adoecimento humano é, antes de tudo, uma  forma de expressão particular , caracterizada pela  inter-retro-reação  das dimensões celulares, teciduais, orgânicas, assim como interpessoais, ambientais e históricas, concebendo o sujeito de forma holística. O objetivo terapêutico da medicina não deve mais ser restituir a “normalidade” anatomofisiológica do corpo, e sim resgatar a autonomia  comprometida, voltando-se assim para a dialética da prevenção de doenças e da promoção da saúde.  Na atualidade, o modelo de Engel encontra possibilidade principalmente na  clínica , cuja característica fundamental é o foco na  humanização , onde a  "observação (visão externa), introspecção (visão interna), e o diálogo (entrevista) são a base da  tríade metodológica para o estudo”,  e no modelo de  Medicina Integrada , cuja função é prom...