Pular para o conteúdo principal

eigengrau

se confiam no mito da autoestima cujo sinônimo é “se sentir bonita(o)”.

em mim os dias não têm linearidade. me deito em pré-luto: ao cair no sono ela some e me escapa, nunca soube como acontece. ao invés de uma constatação frívola de beleza estética, essa sensação é sobre um bem-estar e um conforto pacífico comigo mesma. nesses dias eu não me agrido; nesses dias eu não preciso me esforçar tanto pra parecer minimamente útil e aprovável ao meu crivo demoníaco. posso não ser produtiva, posso esquecer da aparência, posso fazer o que escolher e tenho direito de ir e vir sem o martelar obsessivo por trás dos olhos. eu não preciso ser além.

ter uma autoestima deficiente me dissocia desse corpo de um modo tão violento que eu desaprendo a atividade mais básica. quando em público eu tremo, eu travo, as palavras se embolam, meu andar se atrapalha, eu adquiro uma postura passiva sem voz e me maldigo incondicionalmente. é uma espécie de constrangimento de mim mesma tão grande que tarefas como fazer uma pergunta, comer entre pessoas ou pegar um ônibus são quase impossíveis. eu não me sinto capaz do trivial. 

em casa, os espelhos ameaçam e eu evito os lugares estratégicos dos reflexos. o banho significa ter de encarar cru um corpo que não parece meu, não parece eu. comer é culpa; dormir é escape. essa sensação parece primitiva e instintiva, inata como o que sempre esteve ali e não tem chance de partir. de repente eu acordo e não tenho nada a ver com a criatura do dia anterior, aquela que eu queria que ficasse e vivesse, aquela que com certas limitações consegue ser intimamente confiante e ativa, e tem uma aparência suave de quem não conhece rotinas de auto ódio.

agora tudo se revela grotesco e patético - há defeitos onde há células. ser nesse corpo parece inviável, já que qualquer contato com o mundo é impossível mediado por tanto ódio, e adquiro um caráter de um túmulo de carne onde não há possibilidade de fuga, de descanso, de pausa.

aquilo que você disse em 2016, aquilo que você deixou que fizessem com você desde os 15 anos, o quanto você evocou a violência alheia, tudo o que você fez consigo, aquela pessoa e aquela outra, eles e elas, tudo isso responsabilidade sua, porque você sempre escolheu ser burra. desenhando o fracasso nos anos. girando e girando, tonta e grogue no mesmo buraco, mas esse corpo anexo não cansa de tentar. insistente, repetitivo. lotado de vírgulas no pulso esquerdo, pura covardia. você nunca escreve nada que presta, não é? você também nunca ri nada com verdade. sempre descobrindo novas formas ridículas e discretas de se ferir, pra que não seja interpelada pelas perguntas. o que te aconteceu? eu tentei me carregar. foi a maneira que achei de me carregar através da tormenta

minha pele um mapa de terra arrasada entre guerras, nesses dias eu não quero ver e não quero que vejam; me cubro como posso e ainda não é suficiente, porque o problema é mais embaixo. não é o que há em mim, é o que há pra mim, é como eu vejo, como essa visão resulta de um emocional distorcido. e saber disso não resolve nada. 

a autoestima não pode ser simulada com performance social ou com um mantra de pensamento positivo, não pode ser comprada com plástica e intervenção estética, não aumenta correlata com possíveis conquistas. não é espontânea. não vem do externo. não adianta a cara que você tenha, o cargo que ocupe, as pesquisas que desenvolva, o que te digam, não importa a verdade. autoestima deficiente é ausência de amor. e isso às vezes você aprende, com frequência você reproduz.

a consequência é a auto-exclusão da vida.

ela me garante de forma muito coerente que eu sou um impasse inultrapassável para que me amem. ela se enrosca mutuamente na minha instabilidade e diz que eu não sirvo pra isso de contato, de lealdade, de família. que isso que assisto as pessoas construírem umas com as outras e levarem adiante nunca, nunca vai me incluir. nunca vai estar ao meu alcance. não, eu não sou má - é pior. não existe vontade ou livre-arbítrio nisso, eu sou apenas quebrada. um fragma que se concebe em estranheza e razoável repulsa.

nesses dias eu contabilizo os sintomas e já não sei em que ponto sou sem eles. ou se os tomo como expressão particular. ou se a decisão de expor é mesmo a única em que eu posso me assegurar de existir. ou se na verdade assim promovo mais distância, como se eu fosse um bichinho cobaia de estudo de caso, descrevendo minuciosamente a própria aberração. e se assim causei que me olhem como um horror de circo, ainda que me dissecar às cegas seja esforço de suscitar ressonância - nascer meu toque no outro, ecoar numa compreensão afetiva, até você ser generoso com meu auto-ódio.

então um dia desses, que eu nunca sei quando é, acontece de eu acordar e essa arte do estrago toda parecer um sonho em paralelo, que continua sendo lembrado, e torna a ser sonhado, mas não faz sentido. não existe quaisquer resquícios de como eu acontecia. parece antigo, parece outra. eu vivo à espera, ansiosa. atrás de como inventar algo pra me segurar e não ter mais que retalhar com fino desprezo toda minha percepção. evitando o “quem” de “quem é você”, porque o que me importa é quando. quando. quando minha autoestima não vai ser refém de um perverso sistema aleatório.

quando vão entender que não é medíocre e egocêntrico e pouco como se considerar bonita, padronizada, elogiável. não é isso que se quer. é sobre o poder-ser: o que se exige é o direito de se conceber, inclusive o mais ordinário ou pouco funcional de si, com a sensação tranquila de “tudo bem, eu aceito, sou eu”. se identificar consigo mesma a maior parte do tempo. se permitir ser amada e acreditar que o que se é possibilita isso. o descanso da obsessiva ideação da própria morte. o mesmo par de olhos e uma única realidade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A clivagem (splitting) no TPB na perspectiva psicanalítica

Também chamado de Transtorno de Personalidade Limítrofe, o TPB (cuja tradução literal indica "fronteira" ou "limite") é por vezes descrito no aspecto de síndrome, que insere subtipos de transtornos fronteiriços. Sobre a concepção do que seria esse estado Limítrofe, os autores reiteram que se trata mais de um "rico território de trocas", ao invés da noção que perdurava desde o século XX, de uma condição psíquica entre a neurose e a psicose: "(...) Green e Donnet, em 1973, associaram a dinâmica fronteiriça a um núcleo psicótico sem delírio denominado de psicose branca (DONNET; GREEN, 1973). (...) A importância, então, de definir limite como um conceito se impõe e reside não apenas no interesse teórico-clínico em delimitar dois ou mais espaços, mas, '[...] sobretudo, ver quais serão as passagens, as transgressões que poderão ocorrer de um espaço para o outro, e nos dois sentidos' (GREEN, 1986a/1990, p. 19). O limite não é, portanto, apenas uma li...

O eu dividido (Laing, 1960) - parte I

O eu dividido: estudo existencial da sanidade e da loucura  (1960) é uma tentativa de fuga da técnica estática da linguagem e da interpretação psiquiátrica da época. Sem aprofundar-se na literatura específica, utiliza-se da fenomenologia existencial de Sartre, Heidegger, Kierkegaard e outros, na busca por definir um lugar digno e pleno para a realização da (perda) de autonomia e do senso de realidade dos chamados esquizóides e esquizofrênicos. Faz-se ressalvas quanto a terminologias: aqui, paciente “esquizoide” tem sentido de um esquizofrênico em potencial que ainda não manifestou psicose aguda (“ ruptura entre o relacionamento consigo mesmo e com o mundo” ); “esquizofrênico” refere-se ao indivíduo em crise, e “psicopata” é tomado como sinônimo da pessoa social e medicamente considerada insana. 1. Fundamentos existenciais-fenomenológicos para uma ciência das pessoas  Laing procura, a partir da abordagem existencialista e tomando de empréstimo os avanços psicanalíticos, romper ...

distorções cognitivas (Beck & Burns, 1989)

o modelo cognitivo de psicopatologia foi proposto inicialmente na década de 1970 por Beck, e enfatiza o papel central do pensamento na evocação e manutenção da transtornos mentais/de personalidade. apesar de ser a psicologia uma ciência recente (final do século XIX),  muitas das questões hoje sistematicamente abordadas através de métodos e técnicas específicas são discutidas desde a filosofia antiga, e assim também o foi com o modelo cognitivo: no século III a.C os estoicos já acreditavam que erros de julgamento eram os responsáveis por emoções e comportamentos destrutivos e na utilidade da lógica para identificar e descartar essas crenças falsas. os princípios que orientam a terapia cognitiva (Margraf, 2009) são o foco no presente, na pessoa e na especificidade dos problemas, sendo portanto definidos os objetivos do processo terapêutico; voltada para a intervenção (ação), a TCC não se basta da tomada de consciência/identificação do problema dinâmico (insight), e reitera a...