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As CBS (Síndromes Ligadas à Cultura): as influências socioculturais e borderline

As Síndromes Ligadas à Cultura (Culture-Bound Syndrome), embora pouco mencionadas em manuais e contextos psiquiátricos tradicionais, são frequentes em trabalhos de antropologia e de psiquiatria transcultural (também chamada etnopsiquiatria). O termo foi incluso no DSM-IV (1994), no apêndice "Plano para formulação cultural e glossário para síndromes ligadas à cultura" (APA, 1995, p.793). Entretanto, na quinta edição do manual (2014) a classificação foi reavaliada e decomposta nas sessões de transtornos somáticos e de formulações sobre cultura, que visam ponderar o diagnóstico. Como já discutido aqui, o projeto do DSM-V foi elaborado com vistas a ser o mais ateórico e objetivo possível, promovendo o sutil distanciamento do sujeito portador, facilitando a medicalização e minimizando espaços para ressalvas. 

No CID-10 o termo CBS não é utilizado, e as síndromes comumente entendidas como CBS estão incorporadas à classificação no item F48.8, "outros transtornos neuróticos especificados", tratando-se de "transtornos mistos de comportamento, crenças e emoções que são de etiologia e status nosológico incertos e que ocorrem com particular frequência em certas culturas..." (OMS, 1993, p.169)

O conceito, inicialmente utilizado em relação a contextos locais específicos - comportamentos que sugerem desarranjo mentais recorrentes única ou principalmente em determinada minoria étnica, vivificou-se nas discussões a medida que a consciência dos impactos socioculturais sobre a saúde do indivíduo eram reconhecidos; as consequências orgânicas e neuroplásticas do estresse e da ansiedade das grandes cidades, da alimentação excessivamente industrial, do excesso de trabalho e da falta de sono, da baixa renda e de males complexos como o machismo passam a ser investigados com mais afinco a despeito do esforço da psiquiatria tradicional e do DSM de manter a psicopatologia circunscrita à dimensão psicológica e despreocupada quanto à etiologia (causas). Tal atitude carrega a intenção de restringir a compreensão e as discussões sobre a psicopatologia ao campo científico da psiquiatria e da psicologia, fugindo do alcance popular e questionador quando refere-se às causas, e o quanto as mesmas estão correlacionadas ao contexto capital a que estamos submetidos. Não se trata, absolutamente, de ignorar ou negar a etiologia neurofisiológica e psicológica dos transtornos, e sim possibilitar sua mesclagem, e portanto compreensão e intervenção mais holísticas, aos causadores externos socioculturais e econômicos.

O termo CBS (Culture-Bound Syndrome) foi utilizado à primeira vez pelo psiquiatra chinês P. M. Yap (1965), como culture bound psycogenic psychosis - a qual substituiu termos como psicoses étnicas, neuroses étnicas, psicoses histéricas, exóticas ou atípicas e síndromes reativas à cultura (Hughes, 1996a).

As variáveis mais estudadas da incidência dos transtornos mentais em determinados grupos são a migração e a urbanização recente, a pobreza, a religiosidade, a violência e a criminalidade. As comparações têm sido feitas entre dois pólos básicos:

  • sociedades industrializadas: totalmente imersas na cultura da modernidade; predominância da família nuclear, menor influência da religião e da tradição sobre os valores e atitudes dos indivíduos, maior nível escolar, menor discrepância de poder nas relações homem-mulher e nítida separação entre o domínio da vida pública e privada.

  • sociedades “tradicionais”: parcial ou escassa imersão na cultura da modernidade; predominância da família extensa, forte influência da religião sobre a subjetividade, baixa escolaridade formal, imensa assimetria de poder nas relações homem-mulher e interpenetração do domínio privado e do público.

As principais CBS estudadas até então são:

  • koro ou suo yang: Malásia e China, estudada por Yap (1965); crença de que os órgãos sexuais estão encolhendo ou desaparecendo.

  • latah: Malásia e Indonésia, por Murphy (1976); distúrbio de sobressalto repentino com gritos, xingamentos, movimentos de dança, risadas incontroláveis, e imitação das palavras ou das ações das pessoas ao redor.

  • anorexia nervosa: Ocidente, por Ritenbaugh (1982) e Lee (1996)

  • nervios: Costa Rica, por Low (1985); "ataques de nervos" repentinos e aparentemente imotivados, com sintomas continuados de ansiedade e pânico. 

  • brain-fag: África Ocidental, por Prince (1985); queixas somáticas, relacionadas ao sono e à cognição, como dificuldade em concentrar e reter informações, dores de cabeça, pescoço e olhos.

  • padrão de comportamento tipo A: Ocidente, por Helman (1987); padrão de comportamento com tendência à ambição, competitividade, agressividade e hostilidade, predispondo tais pessoas à doenças coronarianas. 

  • taijin kiofusho: Japão, por Kirmayer (1991); o termo significa transtorno (sho) do medo (kyofu) das relações interpessoais (taijin). Trata-se de uma fobia social, em que as pessoas que a possuem ficam extremamente constrangidas ou temem desagradar os outros por causa de sua aparência. 

  • manchariska: Peru, por Carey (1993); chamada de "doença do susto", é o medo persistente de se deparar com fantasmas de ancestrais perturbados. 

  • susto e mal de ojo: México, por Baer & Bustillo (1993); susto apresenta sintomas de ansiedade e pânico, e o mal de ojo é semelhante ao mau olhado brasileiro.

  • amok: Papua Nova Guiné, por Pal, S. (1997); é uma súbita e espontânea explosão de raiva selvagem, que faz a pessoa afetada atacar e matar indiscriminadamente pessoas e animais que aparecem à sua frente, até que o sujeito se suicide.

  • zar: Etiópia, entre outros países africanos, por Grisaru et al (1997); é o termo para a sintomatologia da possessão por espíritos ou demônios.

No contexto sociocultural brasileiro, também já foram descritas "síndromes" específicas: 

  • Glossolalia (“dom da fala”): observado em grupos pentecostais, quando, em estado de transe, o crente passa a falar em uma linguagem incompreensível.

  • Obsessão: observado no espiritismo kardecista, quando os sintomas variados, a exemplo de angústia, tristeza, humor um espírito obsessor exerce ação negativa sobre o indivíduo, causando sintomas muito variados, como angustia, tristeza, depressão, fobias e etc.

  • Quebranto ou mau-olhado: generalizado na cultura popular, porém mais enraizado nas populações rurais, quando um indivíduo maldoso, por “irradiação maléfica”, provoca sintomas como moleza, bocejamento constante, olhos lacrimejando, inapetência e tristeza, principalmente em crianças.

  • Espinhela caída: comum em populações rurais ou recentemente urbanizadas. A reentrância do apêndice xifóide, segundo a crença popular, produz sintomatologia multiforme, mas mais frequentemente vômitos, astenia, estado de fraqueza e apatia generalizada.

Pfeiffer (1985) argumenta que uma das razões da controvérsia do conceito acontece em diferentes níveis, que o autor enumera como:

  1. Áreas de estresse específicas de cada cultura, como as ligadas à estrutura familiar e social, ao ambiente e à tecnologia disponível; 

  2. Padrões de conduta (e padrões de conduta desviante ou doente) esperados, enfatizados e coibidos em cada cultura;

  3. Interpretações do comportamento desviante em cada cultura.

Os principais questionamentos que podem ser feitos sobre as CBS são:

  • A incidência exclusiva em grupos ou minorias étnicas.

  • A não interação etiológica e de desenvolvimento de fatores neurológicos orgânicos dos transtornos étnicos referidos como "exóticos".

  • O emprego do termo parece pressupor que há existência de síndromes não ligadas a cultura, ou seja, que as demais patologias mentais não sofrem (ou sofrem em menor escala) as influências culturais.

Entretanto, independente das críticas à validade e aos critérios adotados para a inclusão de determinadas patologias na classificação, a noção de CBS suscita que a psiquiatria admita como os fatores culturais atuam no surgimento e na evolução dos transtornos; e de fato é irresponsabilidade ignorar que a incidência e manifestação das psicopatologias variam drasticamente conforme faixa etária, construção de gênero, poder aquisitivo e regiões ou países.

Exemplos:

  • um trabalho apoiado pela FAPESP e publicado na JAMA Psychyatry aponta que homens jovens (18-24 anos), minorias étnicas e moradores de áreas com baixos indicadores socioeconômicos têm maior propensão a apresentar um primeiro episódio psicótico.

  • A Sociedade Brasileira de Psiquiatria aponta que os diagnósticos mais comuns encontrados entre os homens são o de dependência química, abuso de drogas ou de álcool, distúrbios de conduta, transtorno de personalidade antissocial, transtorno de personalidade narcisista, TDAH, e apresentam maiores índices de suicídio; já as mulheres apresentam mais depressão, transtornos de ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático, transtornos alimentares, transtorno de personalidade borderline e transtorno dissociativo de identidade.

Por que isso acontece?

Explicações possíveis se baseiam na opressão pelo gênero a que mulheres são submetidas; a pressão pelo casamento e a convivência comumente orientada pelo machismo do marido; a maternidade compulsória, sua idealização e a responsabilidade de criar os filhos quase exclusivamente delegada às mães; a tripla jornada de trabalho devido ao emprego regular, aos filhos e ao serviço doméstico; salários substancialmente menores em comparação com os dos homens ocupantes do mesmo cargo; o cotidiano de assédios e de abusos físicos, sexuais, psicológicos e morais e a consequente naturalização da violência; a indústria da "beleza", a pressão estética, a rivalidade feminina e a baixa autoestima; a objetificação e a hiper-sexualização do corpo feminino em contraste com a repressão e a negligência sexual, além da demonização da masturbação e do conhecimento do próprio corpo, do mito da puta e da cooptação da liberdade sexual pela cultura do estupro, entre inúmeras outras questões, determinam os critérios postulados para os diagnósticos.

Não é coincidência que os portadores de TPB (Borderline) sejam 75% compostos por mulheres. Sim, o transtorno definitivamente existe, mas seus sintomas são exacerbados pelo contexto de opressão pelo gênero. Uma reflexão crítica dos critérios do borderline permite a conscientização do quanto a manifestação da patologia se apoia em fatores externos. Não se pode esquecer, também, que a psiquiatria tradicional se orienta não apenas pelos padrões de comportamentos normalizados de um corpo-máquina e objetivado, como pela experiência e manifestação dos transtornos mentais nos homens.

Exemplos:

  • padrão de relacionamentos instáveis: a profunda insegurança e o medo do abandono (real ou imaginário) perpassam os relacionamentos da esmagadora maioria das mulheres consigo mesmas e com os outros, pois somos expostas frequentemente a abandonos de toda natureza e à dependência emocional e financeira.

  • impulsos: refere-se a comportamentos de auto-negligência, por décadas mencionados como "promiscuidade" das portadoras, além de abuso de drogas, direção perigosa, e outros atos que ferem o auto-cuidado. Ressalvas: qual o padrão comparativo, já que homens apresentam tais hábitos muitas vezes como parte do exercício de ser másculo? quanto disso deriva da estranheza com que são concebidas mulheres que transam, bebem e dirigem como homens? É claro que, como todo impulso e toda compulsão, não deixa de ser um problema, pois tais comportamentos são orientados por desespero e tentativa de fuga. A hiper-reatividade emocional do TBP (outro critério) facilita a exposição dessas mulheres ao abuso pelos outros ou por si mesmas.

  • Autoestima: a instabilidade e a insegurança quanto à auto-imagem e quanto à própria identidade são como bases venenosas do relacionamento da grande maioria das mulheres, base construída pela exposição aos vícios patriarcais.

  • Hiper-reatividade: Caso essa hiper-reatividade emocional se baseie nos padrões emocionais de homens, cuja masculinidade tóxica preza pela apatia e pela economia da expressão íntima, o critério cai no clichê de rotular as mulheres como histéricas.

  • Borderline rage: sendo um dos sintomas mais comuns do borderline, quanto dos episódios de raiva/ira/ódio são ocasionados apenas por uma incapacidade de internalizar e silenciar (o que é culturalmente bem visto) as desigualdades e os abusos a que somos submetidas? Afinal, quanto do que é rotulado como sintoma é, na verdade, apenas uma desregulagem daquilo que é perfeitamente idiossincrático, justificável e compreensível? 


    Fontes:

    Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5/[American Psychiatric Association]. 2014

    http://agencia.fapesp.br/pesquisa-identifica-populacoes-mais-vulneraveis-a-transtornos-mentais-graves/26959/

    http://www.polbr.med.br/ano98/sinboun.php

    http://petdocs.ufc.br/index_artigo_id_256_desc_Psicologia%20M%C3%A9dica_pagina__subtopico_50_busca_

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