Pular para o conteúdo principal

As neurociências da violência e do crime

A evolução dos aparatos biotecnológicos de mapeamento e imagem cerebrais suscitam a busca por uma determinação biológica do mal estar contemporâneo.

"A hierarquização do cérebro como substrato empírico privilegiado na determinação da conduta arrisca desqualificar o inefável das montagens psíquicas intersubjetivas, afora a chance de negligenciar fatores sociais na origem de atitudes violentas”. (Arreguy, 2008)

Concomitantemente, os avanços da psicofarmacologia, desde meados do século XX, conduziram à medicalização de descontroles emocionais comuns, tratando-os como transtornos neurofisiológicos; tal movimento traduz o paradigma do sujeito cerebral, cujas tendências localizacionista e reducionista se assemelham à antiga frenologia.

O transtorno mental - vulgarizado como loucura -, foi, desde sempre, bode expiatório para sentimentos e condutas indesejáveis e reprováveis. O homem mau era louco, e vice-versa. Nisso se apoia a lógica psiquiátrica organicista do monstro moral: em 1857, Morel associava veementemente a loucura com a delinquência e o crime.

Embora muitos argumentem que o problema central da frenologia era a impossibilidade de instrumentos e métodos científicos adequados, seu principal resultado (e da antropologia criminal desenvolvida a partir dela) foi estigmatizar “tipos sociais”, ou seja, negros, prostitutas, pobres e marginais, como os mesmos se fossem criminosos natos. 

No século XXI, não se “vê” mais as causas do comportamento dissidente na face do sujeito, mas “dentro” de sua cabeça, ou seja, em algumas circunvoluções corticais ou no fluxo de neurotransmissores em determinadas regiões cerebrais. Assim, se reestrutura a busca por ancorar na neurofisiologia e na neuroanatomia os fundamentos etiológicos dos crimes.

Ainda em 1937, Papez emite a hipótese de que um circuito em anel composto de diferentes estruturas anatômicas e situado sobre a parte mediana do cérebro [o sistema límbico] seria a sede anatômica das emoções (hoje sabe-se que o mesmo é composto por estruturas como o hipocampo, giro do cíngulo, regiões orbital e ventromedial do córtex pré-frontal, amídalas, córtex temporal, etc).

“Damásio (2003) estabeleceu a diferença entre o locus das ‘emoções’, vistas como mais primitivas, e dos ‘sentimentos’, dados como mais especializados, respectivamente, no sistema límbico e no córtex pré-frontal. Damásio (1994) produziu experimentos sobre a relação entre descontrole emocional, falha no processo de tomada de decisões (sobretudo aquelas tidas como socialmente aceitáveis) e lesões no lobo pré-frontal, criando ‘marcadores somáticos’ do comportamento antissocial. investigou casos de sujeitos com lesão na região ventromedial do lobo pré-frontal apontando conexões entre emoções não inibidas, descontroladas e a atitude socialmente desadaptada. As lesões na região ventromedial do córtex pré-frontal estariam relacionadas à impossibilidade de ‘tomada de decisão’ na escolha de ações socialmente adequadas, sobretudo pela falha na inibição do impulso para a ação”. (Arreguy, 2008)

“Em suma, os neurocientistas apontaram evidências, por exemplo, de que: alterações no córtex temporal de epiléticos estejam associadas ao comportamento violento; lesões na região orbital do córtex pré-frontal estariam relacionadas ao transtorno de personalidade antissocial por erro no processo de tomada de decisão (DAMASIO, 1994; RAINE, 2004); neurotransmissores como a acetilcolina, dopamina, ácido gama amino butírico, mas principalmente a escassez de serotonina (papel inibitório da agressividade) e o excesso de norepinefrina (papel facilitador da agressão) estariam relacionados ao surgimento da violência (FILLEY et al., 2001, p. 6); a redução de 11% na espessura do córtex cerebral de criminosos denotaria que ‘maus cérebros resultariam em mau comportamento’ (RAINE, 2000; 2004); alterações genéticas, fatores pré-natais e dos cuidados maternos (LIU; WUERKER, 2005) levariam a atos violentos na adolescência; etc. Em outras pesquisas, o comportamento violento é atribuído ao uso ou exposição a substâncias tóxicas, desde as drogas mais usuais até a contaminação por chumbo no meio ambiente (KATZ, 1998; GREGORY, 2004; LIU; WUERKER, 2004)”. (Arreguy, 2008)

Outras pesquisas neurocientíficas também costumam associar episódios de violência a transtornos mentais, como esquizofrenia, distúrbios esquizotípicos, transtornos afetivos do humor e de personalidade (FILLEY et al., 2001), mas principalmente ao transtorno de personalidade anti-social e à psicopatia (RAINE, 2004; 2008).

Entretanto, além dos transtornos e dos efeitos das lesões na rede cortical, as “lesões funcionais” também são responsabilizadas pelo comportamento criminoso. Nesse caso, não há uma lesão anatômica, mas variações detectadas por um maior ou menor fluxo sanguíneo em regiões identificadas como responsáveis pelas emoções correlatas de comportamentos violentos ou anti-sociais.

Após as considerações, ressalvas devem ser feitas quanto à referida ideia de locus cerebral do crime: as possíveis lesões, assim como as alterações de medições do fluxo sanguíneo ou neuroendócrino não correspondem necessariamente a uma relação de causa e efeito, mas sim a formas de perceber e agir que atuam de modo idiossincrático por cada um em contextos específicos.

O reducionismo ao cerebral não permite espaço para descrições subjetivas e sociais que focalizem as emoções ou que se preocupem com a narrativa do próprio sujeito, gerando inclusive ideias de que a infância deva ser medicalizada.

É de acordo com essa ponderação que o relatório da Conferência Neurocomportamental de Aspen (FILLEY et al., 2001) adverte: "[...] a causa da violência é multifatorial, e uma correlação simples entre disfunção cerebral e um ato violento é raramente possível. A violência ocorre num contexto social, e outros fatores concorrentes como o stress emocional, pobreza, hiperpopulação, álcool e outras drogas, abuso infantil, e desintegração social da família estão frequentemente envolvidos [...]".

Na área jurídica, há dissidências: Morse (1996), por exemplo, afirma existir algo como uma Síndrome de Hiperalegação Cerebral (Brain Overclaim Syndrome - BOS), e que o direito criminal não deve se basear em exames cerebrais. Contudo, há também aqueles que se mostram receptivos às técnicas de neuroimagem, já havendo inclusive histórico de absolvição com base na utilização de Tomografia Computadorizada (TC). Ortega (2006) afirma: “essas imagens constituem evidências sociotécnicas, isto é, sua função é produzir uma aparência de naturalidade e imediação que não deixa margem de dúvida, mas que na realidade oculta ou desloca – muitas vezes na recepção entusiástica das novas tecnologias – os contextos e pressupostos socioculturais e econômicos, nos quais essa evidência e naturalidade descansam”.

Quando se trata de pesquisas sobre a criminalidade, o problema é ainda mais grave, já que se propõem a estudar o cérebro do criminoso com tecnologias de imageamento cerebral dentro do próprio cárcere. Porém, considerando a plasticidade neural e as interações mútuas e inegáveis entre corpo e mente, é impossível duvidar que o próprio ambiente e a situação de estar preso possam alterar as funções neuroquímicas de sujeitos que cometeram crimes. Afinal, seriam as lesões cerebrais, malformações neuroanatômicas ou disfunções neurofisiológicas a causa ou a consequência de uma vida na criminalidade?

Além disso, até que ponto são possíveis e pertinentes pesquisas e gênese de um modelo neuropreventivo para um países emergentes ou “em desenvolvimento”, com extremo grau de pobreza e baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)? É preciso atentar para o perfil desses criminosos, que, em sua grande maioria, são de baixa renda e passaram por privações socioafetivas.

Bezerra (2000) também critica a postura “materialista reducionista” que subordina os aspectos mentais a processos estritamente biológicos. Já autores como Katz (1998) apostam num modelo bidirecional, em que as ciências sociais e humanas se associariam ao modelo neurocientífico na produção de um saber unificado sobre a criminalidade.

Segundo Maturana (1995), o corpo violento se constitui num processo de autopoiesis, através de um “modo de ser” que depende invariavelmente da interação, ou seja, de um modo de viver.

É claro que um subjetivismo inconsequente pode ser tão prejudicial para o avanço das políticas de saúde quanto um “eliminativismo” naturalista, mas a tendência à agressão ou violência “vista” exclusivamente através das técnicas de imageamento cerebral parece não contemplar integralmente as questões concernentes à violência emocional - esta que depende do tipo de interação do sujeito com o contexto que o circunda, levando em conta seu sofrimento subjetivo, e também sua história de vida.


Fonte:

Arreguy, Marília Etienne. A leitura das emoções e o comportamento violento mapeado no cérebro. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 [ 4 ]: 1267-1292, 2010. *Artigo formulado a partir de excerto da tese “Os crimes no triângulo amoroso” (Arreguy, 2008).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A clivagem (splitting) no TPB na perspectiva psicanalítica

Também chamado de Transtorno de Personalidade Limítrofe, o TPB (cuja tradução literal indica "fronteira" ou "limite") é por vezes descrito no aspecto de síndrome, que insere subtipos de transtornos fronteiriços. Sobre a concepção do que seria esse estado Limítrofe, os autores reiteram que se trata mais de um "rico território de trocas", ao invés da noção que perdurava desde o século XX, de uma condição psíquica entre a neurose e a psicose: "(...) Green e Donnet, em 1973, associaram a dinâmica fronteiriça a um núcleo psicótico sem delírio denominado de psicose branca (DONNET; GREEN, 1973). (...) A importância, então, de definir limite como um conceito se impõe e reside não apenas no interesse teórico-clínico em delimitar dois ou mais espaços, mas, '[...] sobretudo, ver quais serão as passagens, as transgressões que poderão ocorrer de um espaço para o outro, e nos dois sentidos' (GREEN, 1986a/1990, p. 19). O limite não é, portanto, apenas uma li...

O eu dividido (Laing, 1960) - parte I

O eu dividido: estudo existencial da sanidade e da loucura  (1960) é uma tentativa de fuga da técnica estática da linguagem e da interpretação psiquiátrica da época. Sem aprofundar-se na literatura específica, utiliza-se da fenomenologia existencial de Sartre, Heidegger, Kierkegaard e outros, na busca por definir um lugar digno e pleno para a realização da (perda) de autonomia e do senso de realidade dos chamados esquizóides e esquizofrênicos. Faz-se ressalvas quanto a terminologias: aqui, paciente “esquizoide” tem sentido de um esquizofrênico em potencial que ainda não manifestou psicose aguda (“ ruptura entre o relacionamento consigo mesmo e com o mundo” ); “esquizofrênico” refere-se ao indivíduo em crise, e “psicopata” é tomado como sinônimo da pessoa social e medicamente considerada insana. 1. Fundamentos existenciais-fenomenológicos para uma ciência das pessoas  Laing procura, a partir da abordagem existencialista e tomando de empréstimo os avanços psicanalíticos, romper ...

O modelo biopsicossocial (Engel, 1977), a psiconeuroimunologia e a Medicina Integrada

O modelo biopsicossocial de Engel (1977), bem como suas evidências na Psiconeuroimunologia, evidenciam que o adoecimento humano é, antes de tudo, uma  forma de expressão particular , caracterizada pela  inter-retro-reação  das dimensões celulares, teciduais, orgânicas, assim como interpessoais, ambientais e históricas, concebendo o sujeito de forma holística. O objetivo terapêutico da medicina não deve mais ser restituir a “normalidade” anatomofisiológica do corpo, e sim resgatar a autonomia  comprometida, voltando-se assim para a dialética da prevenção de doenças e da promoção da saúde.  Na atualidade, o modelo de Engel encontra possibilidade principalmente na  clínica , cuja característica fundamental é o foco na  humanização , onde a  "observação (visão externa), introspecção (visão interna), e o diálogo (entrevista) são a base da  tríade metodológica para o estudo”,  e no modelo de  Medicina Integrada , cuja função é prom...