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“A loucura da fome”: neuropsicologia e Holodomor (1931 a 1933)

A loucura, segundo Basaglia (1985), tem duas faces: a experiência psicopatológica e a condição de exclusão. E por mais que a fome pareça se reduzir a uma dimensão biológica e psicológica, ela deriva da condição de miséria. A exclusão social de nada possuir, nem mesmo o básico como trabalho, moradia ou alimentos, impede a compreensão de si mesmo como pessoa humana.

A condição de privação extrema é relatada cientificamente como predecessora de distúrbios mentais, cuja maior incidência nos miseráveis e desnutridos deve ser compreendida a partir da articulação de elementos cognitivos, afetivos e sociais.

O primeiro estudo que se utilizou de técnica de neuroimagem para analisar a associação entre pobreza e função cerebral foi realizado em 2015 por Kimberly Noble, e desde então tem-se evidências de que a pobreza e a desnutrição afetam a morfologia cerebral e o desenvolvimento dos sistemas de atenção, memória de trabalho, flexibilidade cognitiva, linguagem e sistema regulatório - referente à capacidade de ajustar, em função do contexto, os pensamentos, emoções e condutas.

Os resultados convergem com aqueles de pesquisas anteriores. O sistema imunológico dos desnutridos torna-se defeituoso: eles adquirem infecções com muita facilidade e têm capacidade termo-reguladora deficiente. É importante lembrar que é no segundo trimestre de gestação se acelera o desenvolvimento do Sistema Nervoso Central (SNC) do feto, ou seja, a deficiência será permanente, já que as células cerebrais que estavam programadas para multiplicarem-se neste período não o puderam fazer por falta de alimento.

CHAVES (1975 p.80) comenta que, para MONCKEBERG, “o sistema nervoso central sofre alterações devido à desnutrição severa instalada nos primeiros meses de vida, havendo ainda uma redução no tamanho do encéfalo. Estas alterações parecem definitivas, pois a observação destas crianças até os sete anos de idade mostra um significativo retardamento físico e psicomotor.”

O encéfalo pode ter suas funções modificadas ou anuladas em consequência de deficiências das substâncias químicas responsáveis: “estas lesões irão se refletir mais tarde num desempenho intelectual abaixo do normal, com diminuição na capacidade de aprendizagem da criança na escola, aumentando a evasão escolar”. (VASCONCELLOS; GEWANDSZNAJDER, 1987, p. 84).

O organismo do desnutrido assemelha-se ao de crianças que nascem com o sistema imunitário defeituoso ou de quem sofre de leucemia, pois as células que deveriam constituir o batalhão de defesa contra agressores externos não funcionam de maneira adequada. 

A glicose, por exemplo, é a substância energética do neurônio, e sua deficiência altera bastante o comportamento do indivíduo, tornando-o irritável, insone e fadigado. Na criança, diminui sua capacidade de aprendizagem, tornando-a negativista e agressiva.

A deficiência, em outro exemplo, de um aminoácido denominado histidina, conjuntamente às alterações do metabolismo dos ácidos graxos poli-insaturados, do colesterol e dos fosfolipídeos podem alterar e retardar o desenvolvimento da linguagem.

Se há deficiência de matéria-prima, como proteínas e vitaminas, há diminuição ou anulação das atividades enzimáticas.

A aprendizagem, inteligência e memória são processos formados no Sistema Nervoso Central (SNC), mesmo que não se apresentem lesões estruturais ou funcionais no SNC, é comum um quadro de apatia, diminuição da atividade física e psicomotora, como também alterações de afeto e de humor. Tais pessoas são pouco ou nada capazes de uma interação ativa com o meio social.

A pobreza ocasiona déficit nutricional, o qual interfere nos processos iniciais da organização cerebral - como a síntese de neurotransmissores, a formação dos neurônios no metabolismo energético das células neurais, impactando a velocidade do processamento de informações, o controle emocional e as competências da memória e aprendizagem. 

A partir da primeira infância, essas crianças apresentam quadro comportamental disfuncional com a presença de irritabilidade, choro, dificuldade de aprendizagem, déficit de atenção, hipoatividade, alterações no sono e atraso na linguagem, e tendem a apresentar comportamentos antissociais (FROTA et al., 2011).

Seus cabelos são fracos e sua pele é ressecada, e sofrem alterações no nível de energia, autocontrole, baixa imunidade, baixa interação social, tristeza, diminuição afetiva e oscilações de humor e apatia entre outros. (MURADAS; CARVALHO, 2008; MENDES, 2016).

Embora o período de gestação e os primeiros três anos de vida sejam críticos para a formação neuronal, intervenções realizadas ao longo dos próximos 18 anos podem minimizar impactos devido à plasticidade neuronal.

Em pesquisa realizada por uma equipe de Xangai e publicada na revista American Medical Association, foi calculado que a fome sofrida pelos chineses entre 1959 e 1961 aumentou o risco de esquizofrenia de 0,84% para 2,15%.

O estudo segue a mesma linha de uma outra pesquisa realizada na Holanda que constatou que o risco de esquizofrenia dobrou entre as crianças que nasceram em 1944 e 1945, durante a escassez de comida devido à Segunda Guerra Mundial.

Embora durante o período de escassez de comida a taxa de natalidade chinesa tenha caído em 80%, para os bebês que nasceram na época o risco de esquizofrenia cresceu de 0,84% em 1959 para 2,15% em 1960 e 1,81% em 1961.

A época mais crítica é durante os três primeiros meses de gravidez, pois o cérebro do feto é afetado pela falta de comida ou pelas substâncias consumidas no desespero, que podem ser tóxicas ao bebê.

Em pesquisa de 1984, moradores da re-

gião de Crato (CE) que vivenciaram situação de absoluta indigência e fome, apresentaram “surtos de desequilíbrio” (Guibu, 1998:17) com comportamentos violentos e agressivos. 

“No maior hospital psiquiátrico da região, a Casa de Saúde Santa Tereza, em Crato, sul do Ceará, a procura por atendimento aumentou entre 20% e 30% desde o início do ano, no período da estiagem. Segundo a diretora da instituição, Helenita Santos Telles, uma média de 15 pessoas com supostos problemas mentais procuram atendimento todos os dias no local” (Guibu, 1998:17).

Segundo pesquisa da Folha (1998), pessoas com “dieta monótona” (de deficiência nutricional) podem apresentar um “estado de demência parecido com a loucura” (Guibu, 1998:18).

Quando o organismo fica sem energia, é

ativado o mecanismo de sobrevivência. O corpo tenta de toda forma lutar e, somado o fator psicossocial, acaba gerando atitudes agressivas.” (Abrão José Cury Jr., médico, entrevistado por Guibu, 1998:18).

Embora a neuroimagem da fome só tenha sido possível em 2015, estudos que correlacionam pobreza e transtornos mentais são empreendidos ao menos a partir dos anos 1930. Uma análise que transplanta essa correlação ao Brasil, feita em 2013 com dados do Censo do IBGE de 2010, indica que das mais de 2,4 milhões de pessoas com problemas mentais permanentes acima de 10 anos no Brasil, 82,32% são pobres.

The Distribution of the Common Mental Disorders: Social Inequalities in Europe, de 2004, indica que dos 20% da população europeia de baixa renda, 51% possuem algum transtorno menta­l grave.

Isso de forma alguma significa que a doença mental é restrita à população de baixa renda ou pode ser reduzida a fatores sociais, e sim que a pobreza, e consequentemente a desnutrição e outras carências que se originam a partir de fatores políticos e situacionais, facilitam a gênese e a expressão dessas patologias.

Pensando nisso, é possível construir uma noção dos impactos neuropsicológicos, emocionais e comportamentais das condições de privação, e especialmente da fome, em períodos históricos específicos (intencionalmente políticos) a exemplos de guerras e catástrofes culturais, e como essa experiência é ressentida e se reflete ao longo de gerações.

HOLODOMOR: A GRANDE FOME UCRANIANA

Empreendida por Lênin, a revolução social comunista na Rússia, em Outubro de 1917, significava expropriação: confiscação de terras dos proprietários latifundiários e a socialização da produção agrícola capitalista, o monopólio do grande comércio e a criação da instituição administrativa socialista ao cargo da classe operária. O problema era que, na Rússia pós-revolucionária, ainda coexistiam os “fragmentos de capitalismo e de socialismo”, ou seja, cinco formas econômicas: economia patriarcal, pequena produção mercantil, capitalismo privado, capitalismo do Estado, e socialismo [Ellenstein 1973]. Como julgou Gramsci [1919], não havia condições para que os proletários adquirissem a consciência da sua força de classe:

“Um país com uma agricultura extensiva apresenta condições sociais que isolam os indivíduos, impossibilitam uma consciência igual e generalizada, e tornam impraticável uma unidade social proletária, ou seja, a consciência concreta de classe que dá a medida da sua força e a vontade de instaurar um regime permanentemente legitimado por essa força” [Gramsci 1919].

Contudo, as dezenas de milhões de camponeses eram contra a coletivização de suas propriedades, e o Estado não conseguiu pô-los a trabalhar nas instituições coletivas, de modo que a regularização da situação só era possível por meio da força [Kulchynskyi 2008]. Assim, as regras não permitiam aos produtores agrícolas venderem os cereais que sobrassem, pois os mesmos deveria ser obrigatoriamente entregues ao Estado. Os camponeses ficaram impossibilitados de avaliar a sua própria situação de escravos, pois tinham sido educados pela fome: “...quem não trabalha, não come”. Foram proibidos por lei de “fugir” do campo para a cidade ou para outras regiões em busca de alimentos ou trabalho [Piryg 2007:35]. Em lei assinada por Stalin em janeiro de 1933 - a Lei da inviolabilidade da propriedade socialista -, era proibida qualquer tipo de ajuda humanitária ou envio de alimentos para as regiões da fome. Escritores intelectuais que ousavam escrever a respeito do que acontecia foram executados por conspiração ou sentenciados a, no mínimo, 10 anos de prisão.

Segundo sugere David Marcus, o governo passou a utilizar  “uma estratégia de privação de comida como instrumento de extermínio e aniquilação das populações problemáticas – os camponeses”.

O resultado foi gradativo, mas seu ápice se deu de 1931 a 1933, através da Grande Fome Ucraniana - considerada um dos mais graves desastres dos direitos humanos na primeira metade do século XX e sem precedentes na Europa. Pelo seu alcance em mortalidade, é designada como fome catastrófica, tendo em conta que no espaço de um ano morreram de fome e de doenças com ela relacionadas entre 7 e 11 milhões da população rural de ucranianos (os números são estimativas, já que as fronteiras foram fechadas a informações e os documentos foram destruídos, mas há autores que citam até 17 milhões de mortos). Esse período ficou conhecido também como Holodomor - expressão em ucraniano que significa matar pela fome.

Sob a opressão da fome dilacerante, as pessoas eram capazes de devorar qualquer coisa, desde grama, cascas de árvore, insetos e cachorros, a cadáveres de parentesOs camponeses comiam as sementes ao invés de plantá-las, já que a agonia não lhes permitia esperar a colheita. Muitos recorreram ao canibalismo. Textos da época relatam que os famélicos arrancavam os fígados dos cadáveres a fim de transformá-los em patês e vende-los no mercado. Já outros comiam partes de cadáveres em decomposição que jaziam espalhados pelo país, principalmente de crianças. Outros ainda de fato raptavam crianças e as devoravam. 

“Não há uma essência da memória. Não apenas os indivíduos lembram-se das coisas, como também grupos e as mais diversas coletividades. Ou seja, os modos de recordar são definidos culturalmente pelos grupos, pelas coletividades, pelas massas que se identificam e que variam ao longo do tempo e segundo a formação cultural”. Em um evento considerado trágico, a reminiscência não é passiva: há constante necessidade de identificar uma origem, os motivos, os pretextos, as causas. Esse ressentimento induz a uma ressignificação coletiva das emoções e comportamentos. Como exposto anteriormente, tal motivo (de bases plurais) é responsável pelo desenvolvimento e expressão de diversos distúrbios emocionais e mentais. Assim, o combate às consequências dilacerantes da condição de miséria absoluta e de privação da possibilidade de existência digna é dever estatal fundamental para a menor incidência não apenas de transtornos mentais, como também de comportamentos de extrema instabilidade, envolvendo principalmente episódios de violência extrema. A experiência de abuso de toda natureza já é consenso científico como parte da etiologia das atitudes humanas outrora incompreensíveis, e abordar a fome através do viés neuro e psicoemocional talvez seja mais uma chave pra entender os chamados monstros morais.


Fontes:

O HOLODOMOR E A MEMÓRIA DA FOME DOS UCRANIANOS (1931-1933):

OS RESSENTIMENTOS NA HISTÓRIA. TAMANINI. Projeto História, São Paulo, v. 64, pp. 154-184, Jan.-Abr., 2019.

FATORES PSICOLÓGICOS E SOCIAIS ASSOCIADOS À DESNUTRIÇÃO 

INFANTIL: UM ESTUDO BIBLIOGRÁFICO. Felberg; Pinheiro; Batista. Revista Opara – Ciências Contemporâneas Aplicadas, ISSN 2237-9991, FACAPE, Petrolina, v. 6, n. 1, p. 32-48, jan./dez., 2016.

Loucuras da fome. Rebello. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 14(3):643-646, jul-set, 1998.

https://www.bbc.com/portuguese/ciencia/story/2005/08/050803_esquizofreniacl.shtml

https://journals.openedition.org/ras/1010

http://fundacaotelefonica.org.br/promenino/trabalhoinfantil/colunistas/as-consequencias-da-desnutricao-no-desenvolvimento-fisico-e-mental-infantil/

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