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O critério do consentimento perdoa o estuprador

A cartada de mestre das leis patriarcais é o estabelecimento do critério “consentimento”. “Se ela consentiu, não é crime” - ou pelo menos não tão crime ou violência quanto o caso daquela que lutou e esbravejou.

A cultura é homogênea quanto à endossar e proteger comportamentos típicos de quem estupra, prostitui e agride. Mulheres nascem e são criadas num ambiente que lhes diz que a única resposta possível é “sim”. 

A feminilidade é o adestramento social dessas mulheres de acordo com os desejos e expectativas dos donos do discurso, do dinheiro, e, por consequência, delas mesmas. É impossível fugir completamente de sua influência brutal mesmo depois que você a percebe e a despreza, pois ali está ela, antes e depois de você, devorando tudo aquilo que perfaz o ser mulher em sociedade.

Quanto mais novas, pobres e sozinhas, mais passivas e alienadas somos, pois não há meio intelectual e material suficiente para lutar contra a feminilidade. 

A possibilidade de escolha só existe num contexto em que há opções viáveis disponíveis; a ideia de liberdade não existe no seio de opressões estruturais. Portanto, não faz sentido chamar de “consentimento” o que é pré-estabelecido: mulheres são lenta e gradativamente condicionadas a aceitar, permitir e tolerar, ainda que isso as mutile, porque a natureza que lhes é doutrinada é a de servir.

Esse consentimento-obrigatório é conquistado pelo agressor, que em seguida usa disso para ser poupado. Porque, por motivos nada lógicos, acredita-se que o sofrimento é justificado se não for esboçado claramente um pedido de socorro, e ainda, que esse sofrimento pode ainda ser requerido.

Recorrer à ideia de consentimento para justificar a violência contra a mulher não apenas é ilógico como cai no mesmo clichê de responsabilizar e culpabilizar a vítima, fingindo que ela possui poder de evitar a própria agressão - além de dar a si mesmo e às autoridades a desculpa perfeita para não intervir.

A estrutura do abuso em geral funciona cegando a vítima: os processos mentais são comprometidos na tortura física ou psicológica e impedem que o indivíduo se distancie para melhor avaliar a situação. A familiaridade com o abuso durante a vida age mascarando o próprio abuso sofrido, e quase sempre não existe noção completa do que se vive, principalmente porque na maioria das vezes esse abuso é cometido por alguém próximo por quem se tem afeto, e o afeto prejudica o julgamento sóbrio. Assim, o problema se volta para si, e não para o praticante.

O afeto, o acesso indiscriminado, a confiança e a permissão são conquistadas pelo abusador: é o modo mais fácil de manter em silêncio a vítima e perdurar as agressões pelo maior tempo possível. 

Se consentir, para mulheres, é um processo usurpado e inviabilizado desde sua gênese, quão importante é definir se o sofrimento foi “consentido” ou não?

Julgar em termos de aceitar ou não a violência empreendida contra si mesmo é fazer daquele que sofre o cúmplice de seu próprio sofrimento. 

A sexualidade de uma mulher é permitida aos homens não importa o “não” que se declare, pois aprendemos que nosso sexo é em nome de terceiros e que sempre atende a um objetivo (nunca nosso); o afeto e o sexo assumem diversas facetas, desde acalmar a situação à satisfazer esse homem porque ele têm direito de ser satisfeito às custas de nosso trabalho escravo. O sexo nunca foi, para a mulher, uma questão de vontade e opção: ela é levada maquinalmente a isso, pois seu corpo não pertence a si e o usufruto dele deve atender ao prazer de outros. Assim, ela pouco aprende sobre poder e sobre seu próprio corpo - e menos ainda sobre ambos na mesma frase.

Seja por pressão de companheiros, convencimento físico ou emocional, álcool ou outros tipos de drogas, carência social e baixa renda, idade precoce, transtornos ou outros tipos de confusões mentais - concordar sob influências não é consentir, é ser coagida, e ceder não é querer.

O poder de escolha só existe em condições propícias para o “não”, em que há diálogo e alternativas conscientes.

Porque se esse “não” quase sempre não é suficiente, igualmente um “sim” alienado também não o é. 

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