Fui internada no final de 2018.
Eu estava em crise desde o primeiro semestre de 2016, mas só percebi meses depois. O humor deprimido não variava muito, ainda que o TPB tenha sua base em oscilações bruscas e breves dos estados humorais. Era como se dentro daqueles desânimo e vazio crônicos eu apresentasse episódios pouco nítidos, mas muito impulsivos, de raiva e tristeza, e nesses momentos tudo em que eu conseguia pensar era me machucar e dar um fim nisso. A automutilação acontecia uma ou duas vezes na semana e as tentativas de suicídio eram também frequentes. Eu não tinha perspectiva nenhuma de um futuro em que isso amenizasse, então toda oportunidade que eu tinha, direta ou indiretamente, tentava me ferir. Os diagnósticos que eu havia recebido até então eram errados e eu tomava medicações que não apenas não resolviam os problemas, como intensificavam os sintomas e me mortificavam fisicamente. Então eu parava por conta própria e quando se tornava insustentável um outro médico passava um coquetel diferente. Eu tive inúmeros efeitos colaterais terríveis nessa época. Enxaqueca, visão embaçada, tremedeira, queda de cabelo, sudorese excessiva, ganho de peso de cerca de 20kg (e com isso vieram outros problemas de saúde), fadiga, dificuldade pra respirar, espasmo muscular e até convulsão. E sabe-se que a interrupção deliberada de medicação psiquiátrica piora muito o quadro. Pra além disso, minhas relações interpessoais eram muito instáveis e eu não conseguia estabelecer vínculo com ninguém, e isso não apenas era consequência de como eu estava, como também piorava demais a situação. Eu andava paranóica, pensando ser sempre indesejável e repelente e me isolei tentando poupar as pessoas de mim. Era um favor e um dever. E o isolamento é o caminho mais curto e rápido pra que a depressão tome conta. As férias de julho foram insuportáveis e eu passava semanas apenas deitada, incapaz de realizar as tarefas mais simples e cogitando suicídio o tempo todo. Tentei na primeira semana de agosto. Dois ou três meses depois, no final de 2018, eu delirei por cerca de duas semanas - o ápice foi o término do meu relacionamento de então, sempre conturbado por causa das minhas crises - e como eu era atendida no Messejana há um tempo, fui pra emergência de lá ser medicada, porque nada do que eu tinha em casa me acalmava ou me fazia dormir. E a falta ou a má qualidade de sono são extremamente adoecedoras. Acontece que, quando cheguei lá, situações corriqueiras da realidade do serviço público psiquiátrico me chocaram mais fortemente do que nos últimos meses em que eu frequentei lá; e eu explodi de raiva, não tanto pela situação presente, mas principalmente por acúmulo. Fui contida e sedada e acordei numa instituição psiquiátrica na fronteira da cidade.
Veja bem, eu acredito realmente que o método de internação é recomendável e eficaz - mas não com os serviços de que dispomos. Ainda que de 1980 até antes dos governos de Temer e Bolsonaro nós tenhamos revolucionado um bocado as concepções e os tratamentos psiquiátricos, ainda não é o bastante pra assegurar internamento digno e saudável. Eu melhorei bastante depois de ser levada, mas não porque recebi ajuda, e sim porque me convenci que, custasse o que custasse, eu não passaria por isso novamente. A ideia da internação era, na verdade, que se tratasse de um período de observação e cuidados intensivos, com apoio multiprofissional e ajustes medicamentosos, como meio emergencial de prevenir ou acalmar crises ou ideações suicidas; o objetivo não seria trancafiar ou punir, mas encontrar conjuntamente formas de amenizar os sintomas e devolver o paciente o mais rápido possível pra comunidade, porque é lá que ele deve aprender a se curar através da mediação profissional. Entretanto, a internação psiquiátrica perdura sendo, sobretudo, uma institucionalização, baseada na contenção e no encarceramento. Você é totalmente isolado das pessoas e não tem contato com o mundo externo, imergindo numa realidade paralela de tempo e regras diferentes. O afastamento social é tanto que torna comuns os abusos lá dentro, tanto de autoridade quanto físicos, e isso foi documentado mais vezes do que se pode contar. Os pacientes estão no limite da vulnerabilidade física e emocional, e completamente à mercê do domínio alheio.
Enquanto eu estive lá, lembro que o tempo não fazia sentido, porque não corria e os dias eram sempre iguais e intermináveis. É estritamente necessário que haja atividades durante todo o dia, pra ocupar a mente e o tempo. Mas nós ficávamos lá, nos esforçando pra nos entreter com qualquer coisa, porque a ociosidade é insuportável. Você não tem acesso a celular, óbvio, mas nem mesmo a lápis ou canetas ou tevê. Eu via os internos varrendo todo o jardim por horas, não porquê fossem obrigados, mas porque precisavam fazer algo. Durante as semanas eu só tive consulta com psicólogo uma única vez, e considerando que se vai para lá supostamente devido a uma crise grave e que os profissionais deveriam estar disponíveis (porque essa é a ideia de tratamento intensivo), a psicoterapia deveria ser todo dia. O que mais se observa é que são pouquíssimos os profissionais preparados: ou não têm formação adequada ou simplesmente não têm empatia suficiente e nos tratam como animais incapazes. Conheci mulheres mandadas para lá pelos motivos mais absurdos; você se surpreenderia de saber porque pessoas são internadas. A política de inserção e manutenção não é rígida e ainda acontece muito de o motivo de se estar num hospício é apenas por ser indesejável lá fora. Pacientes com os mais diversos transtornos são alocados no mesmo pavilhão. No meu quarto haviam duas senhoras dementes. Dementes, alcoólatras e portadores de distúrbios de personalidade ficavam todos misturados. Não havia um cuidado pleno no diagnóstico e na medicação; ninguém nos dizia porquê estávamos ali ou quanto tempo ficaríamos. Foi prescrito pra mim alprazolam 3x ao dia; o alprazolam ou xanax é um benzo ansiolítico e sedativo, com potencial viciante e que a longo prazo compromete a memória e a capacidade de concentração. O ideal é que você recorra a benzos em momentos de crise, e não como medicação diária. Como eu ficava dopada e dormia o dia todo, e não era um sono reparador mas tenso (e eu tinha paralisia noturna), punha debaixo da língua de uma maneira que não conseguiam ver quando faziam a checagem, e depois cuspia no sanitário. Só tomava à noite, mas tinha muito medo, porque as portas ficavam abertas e a ronda noturna era feita por homens.
O que acontecia lá não é pontual, e sim o padrão de todo pavilhão psiquiátrico, e a tendência é que quanto mais público atenda, mais defasados sejam o sistema e a estrutura.
Eu consegui esconder um lápis na fronha do travesseiro e mantinha um caderninho onde desabafava, porque me parecia que a cada mínima demonstração de descontrole lá dentro você ganhava mais uns dias. Copiei apenas alguns aqui porque são muitos.
“Uma angústia terrível de já não saber quanto tempo os dias duram. E as horas-gárgulas se empoleiram imóveis, absortas... a carranca mais contorcida num sorriso de ver nossa tortura.
Tentei matar a sede dos gatos mas as vasilhas estão furadas e eles fogem. Eu também o faria”
“Tive paralisia noturna essa noite. Sentia alguém me tocando por trás - massagem irônica nos dedos. Sua cabeça desgrenhada sobre mim. Tentava agarra-la. Uma senhora dorme sentada. Despencou para o lado, por sobre si mesma, e cobre os seios por coincidência na queda.”
“Um muro-golias
azul e branco
pra camuflar
a matéria-escura
que nos tornávamos
Avulsos chinelos
arrastados
parede rente à cerca
elétrica
mas antes
os avulsos chinelos
e tudo outra vez
Ambulatórios como frigoríficos
portas fechadas sem trancas
mosquitos e moscas necrofagos
e gentes
loucas
apenas de amores
Essa espera vã
com as caixinhas com pílulas
e nomes próprios
nesse ócio
a única vegetação não artífice
somos nós”
“Todo mundo com visitas e eu só. Minha mãe mais arrumada, linda, depois de não ter uma filha. Falo que o ócio consome. Ela me diz que lá fora o ócio era o mesmo. (...) ela disse que fumo porque quero. A moça falou energicamente comigo em defesa da mãe, e fui sarcástica com ela, e mais cedo nos desentendemos também.
Eu achava que tinha ao menos minha mãe. Estou só, lúcida e afundando. Meu problema é muito mais profundo do que eu supunha e começo a me dar conta disso, e de que não vou sair daqui.
A mãe não vai mais vir.
Eu e os remédios as prescrições e as crises em solilóquio. Eu não deveria ter pedido ajuda”
“Fui mesmo grossa com a moça, devo pedir desculpas. Sinto os passos no corredor vindo na direção do meu quarto, mas nunca são pra mim.
Estou só, recolhida aos bagaços dos ponteiros do relógio. Encolhida sem caber.
Ouço risadas. Invejo-as. (...)
Eu lá sei o que é amor. Talvez um dos tipos seja esse monopólio dos instantes, ou enfiar no manicômio-maquiado o filho.”
“(...) me acordou três da manhã pra contar de um homem que passou em frente às janelas. Mas Silvana, seu Raimundo não saiu da quadra e nosso quarto é o último, depois só parede mesmo. Parede azul. Azul azul azul. Eu já falei do azul? Sereno e triste. Apelo por piedade.
Vai que é, que faz sentido, que tudo disso tem uma verdade, que essa mania de certidão nos assombra.
Aliso seus cabelos, os fios brancos nascentes apontando. Ela gosta de carinho. Dorme num minuto, com a boca escancarada. (...)
Talvez eu sinta o que inexiste e trabalhe com esses hipotético-dedutivos. Talvez eu esteja largando do juízo (como dizem sobre Silvana). O juízo horrorosamente delimitado e ditado.
O juízo medicado.
A Silvana carente, carente. Eu mais igual. Ex-mulher, propriedade manipulada, criança código. Urros ao invés de palavras e poucas palavras substituindo pequeninos afazeres básicos.
Silvana ri desse circo de destratos - e eu nem falo daqui.
Silvana é, hoje, quem me põe pra dormir.”
“Me dou conta. (...)
Esse ciclo de abusos mudou meu olhar sobre as coisas e enxergo tudo com maldade. Até que ponto as pessoas realmente me feriram e quando eu comecei a transferir para outras relações esses medos e essas dores? (...)
Minha ideia de sexo foi dilacerada. ERA SUJO E EU ERA SUJA. Era uma vontade alheia que eu deveria conceder. Boa menina.
Por que eu fiquei? Por que eu precisava tanto pertencer a alguém? Pareço inexistente se o outro não me vê com posse mascarada de amor. Mas eu mesma não me vejo. Sem ninguém é como se eu fosse um artefato de enfeite que deveria ser maculado com o uso. Eu não quero, mas cedo. ME CEDO.
Aquela ideia do pornô se entranhou, sabe...? Nas outras transas ele queria que eu reproduzisse o que eu tinha “aprendido”. Me deixei ser destruída e chamei isso de liberdade sexual ou sexo casual.
Queria voltar no tempo e me pegar quando menina ainda. Contar a ela que ela estava sofrendo.
Achava que era obrigação me dar. (...)
Pelos problemas em conceber sexo agora me sinto menos mulher. Eu queria uma vida mais fácil, como uma adolescente que não teve essa fase coagida pelo estupro. Como uma jovem adulta independente de medicações e fora do internamento psiquiátrico. Plenamente capaz de socializar, discernir e preservar relações saudáveis, apta a entrar no mercado de trabalho. Então me sinto menos PESSOA.
Até que ponto se estende o abuso?
Ele tornou abusivas minhas relações posteriores? (...)
Sempre ostento essas situações patéticas e ridículas. (...)
Sempre interpretei que me apaixonava fácil, mas na verdade eu facilmente DEPENDO. “Cuidadores”.
Absorvo, eu quase sou o outro. Uma imitação barata e vagabunda. Como se me propusesse a ser manipulável.
Na maioria das vezes me sinto tão patética que quero me agredir. É inacreditável o quão burra consigo ser. Tenho esses planos de me abandonar.
As pessoas parecem rapidamente perder o interesse em mim. Por que? Sempre me sinto um lixo. Não agradar suficientemente os outros me destrói”
“Ligação ligação ligação ligação ligação
Minha mãe. Se não ela, quem?
Até ela deve me amar menos.
A psicóloga me mandou trocar de short, porque era muito curto e lá estava cheio de homens.
Minha mãe desligou o celular. Caixa postal. Nada resta. Ela não atende, nem vem mais.”
“Minha mãe tem uma voz diferente, de quem não quer falar comigo. Sinto horrores aqui que jamais experimentei. O real abandono. A real solidão. O cárcere a hostilidade a carência o desespero. Tudo o que eu pensava conhecer é superlativizado.
Nunca jamais me senti tão mal.
Não reconheço minha mãe (...) me sinto largada aqui.
Eu quero pedir PELO AMOR DE DEUS. Eu preciso falar dele, não suporto mais. Não suporto mais a cada minuto.
Dona Sula arruma suas coisas pra ir.
Dona Dan todo dia diz que vai embora.
Sabrina parte também essa semana.
Leonardo tentou fugir.
EU PRECISO QUE VOCÊS ENTENDAM.
Existe uma tortura psíquica tão sutil nesse local que é chamada de tratamento.
PELO AMOR DE DEUS eu não sei a quem recorrer. A psicóloga viu meu estado após a ligação e não disse nada. Eles apenas nos deixam esmorecer segundo a segundo com a carga de negatividade e medo. Porque falar sobre isso nos impõe mais dias, esses dias aumentam, as horas se esticam como boulevares abandonadas.
Isso não vai passar. Não com ele aqui o tempo todo.
Nada é trabalhado, apenas somos cerrados entre azul e branco. Cores de ódio fúria e terror.
Eles podem ir e vir. Sair. Dominar-nos. Serem. O poder reside em uma única palavra maldita e ninguém sabe.
Queria pôr fogo em tudo. Queria contar que queria pôr fogo em tudo.
Aqui não cabem nem as fantasias.
POR FAVOR. Escuto passos que não se dirigem a mim. Nunca estive tão deprimida e não o posso dizer. SOCORRO
Acho que ele tem medo que eu conte algo.
Eu não posso aguentar aqui sem ninguém apto a uma conversa decente.(...) PELO AMOR DE DEUS por que esse castigo se eu não tenho culpa de estar doente? Eu posso me tratar lá fora... eu vou sair louca daqui”
“Eu quis ser querida e falhei. Não quis mais nada desde então”
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