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Gênero e imperialismo psiquiátrico

Quando foi descoberto que a determinação social influenciava tanto quanto a biológica na manifestação e no curso dos transtornos mentais, os estudos se voltaram para esse externo - como tal cotidiano, quase sempre despercebido, pode se tornar patológico?


Diferenças extremas de prevalência e de natureza dos transtornos foram constatadas entre os gêneros: mas quanto disso seria de responsabilidade da neuroanatomia, e quanto se daria pela imposição de papéis sociais? (é importante frisar que ambos os fatores se influenciam mutuamente).


A literatura está repleta de antigas doenças específicas das mulheres; a “histeria” descrita por Freud no início do século XX é decerto a mais conhecida. Irigaray (2017) aprofunda sua crítica à psicanálise na patologização de reações naturais à opressão: a histeria (cuja etimologia em grego vem de “útero”) não seria uma loucura feminina, tampouco uma “inveja do pênis”, e sim uma expressão nervosa e deprimida da não-adaptação à funções arbitrárias e violentas.


Como ocorre em todo estudo de transtornos mentais, é necessário lembrar que os números mencionados correspondem aos casos documentados, e muitas variáveis podem prejudicar a precisão, como constrangimento, ignorância ou falta de acesso à serviços de saúde pública.


Solomon (2001), em capítulo sobre populações e depressão, documenta que a proporção de mulheres deprimidas é duas a três vezes maior que a de homens deprimidos (definindo-se justamente após a puberdade), e que isso pode derivar tanto da exposição facilitada a sofrer violências durante a vida, quanto do profundo sofrimento advindo do papel destinado à uma mulher: sempre subordinada e passiva a um homem-proprietário - produto da feminilidade.


Não é absurdo imaginar que existe um tipo de mulher que seria imune a qualquer categorização de insanidade: aquela filha, esposa ou mãe cujas obrigações de servir, cuidar e proteger estivessem em dia, de acordo com a vontade daqueles a quem ela sustenta.


Sustenta, sim, pois a economia não seria tal como é não fossem as jornadas tripla e quádrupla de trabalho gratuito feminino doméstico. Faxineira, cozinheira, babá, assistente social, prostituta, enfermeira - responsabilidades em que a solidão é condição necessária.


Ainda assim, mulheres possuem quase sempre menor poder aquisitivo do que homens (famílias de mães-solo, menores salários e cargos inferiores), e é sabido que a pobreza, e consequentemente a privação material e emocional, é precedente de transtornos mentais.


O processo de naturalização dessas funções não é percebido cognitivamente, e a mulher, quando insatisfeita, não volta sua frustração para os fatos, mas sim para si mesma. 


A opressão externa recai sobre a realidade interna, sendo assumida como incapacidade, insuficiência e fracasso pessoais.


Apesar de biologicamente mais propensas a falar, a fala das mulheres, quando não silenciada, é censurada; entretanto, ainda assim, mulheres apresentam mais facilidade de relatar sofrimento e buscar ajuda, já que os estereótipos de gênero admitem ser inerente ao comportamento feminino isso que é historicamente tido como exagero e dramaticidade - e na verdade expressão normal da vida psíquica, mas que contrasta com a construção da masculinidade sobre os pilares de apatia e resistência à exteriorização de emoções. 

Apesar de apresentarem maiores índices de automutilação e tentativas de suicídio, as mulheres não suicidam tanto quanto os homens. Explicações sociais defendidas orbitam em torno da maior exposição aos comportamentos agressivos (já que os meios de suicídio são sempre violentos) e da pressão exercida pela cultura para que os homens não falem sobre si, pois esse tipo de sofrimento interno refletido no comportamento seria essencialmente feminino.


Estudiosos argumentam, ainda, que as taxas de depressão, por exemplo, podem ser as mesmas, cujos contrastes residiriam em suas formas de manifestação: em mulheres, os sintomas predominantes seriam de acordo com a arquitetura da feminilidade -  passividade, anedonia e auto-depreciação; já em homens, a dor psíquica seria encaminhada a tomar contornos físicos, através do abuso de substâncias e da agressividade.


Essa via de explicação seria a mesma para os transtornos mais comuns entre homens e mulheres:

Mulheres apresentam maiores taxas de prevalência de transtornos de ansiedade e do humor que homens, enquanto estes apresentam maior prevalência de transtornos associados ao uso de substâncias psicoativas, incluindo álcool, transtornos de personalidade anti-social e esquizotípica, transtornos do controle de impulsos e de déficit de atenção e hiperatividade na infância e na vida adulta. Nos transtornos cuja prevalência é semelhante em homens e mulheres, são observadas diferenças na idade de início, perfil sintomatológico e resposta ao tratamento.” (Andrade; Viana; Silveira, 2006)


A prevalência de transtornos do humor em mulheres poderia se explicar biologicamente também pelos maiores níveis de esteroides sexuais femininos (como estrógeno) que agem na modulação do humor, assim como a maior adesão à violência física nos homens poderia ser devido aos seus maiores níveis de testosterona. Entretanto, é interessante notar como a sintomática de alguns transtornos notadamente “femininos” (devido à alta incidência), como transtornos alimentares (90%), TPB (75%) e TDI (90%), correspondem às opressões: apresentam como desencadeador primário situações de abuso; personalidade, identidade e auto-estima são as entidades mais comprometidas, através da fragmentação e do trauma; padrões de comportamento inseguros e dependentes perfazem os transtornos.


Isso porque mais de 80% das mulheres relatam alguma experiência de abuso (e, considerando a naturalização da violência, questiona-se quantas já foram abusadas e interpretaram como normalidade); a estrutura do gênero se pauta sobre a repressão sexual e o desconhecimento e ódio do próprio corpo; a aparência e a estética são as armas da indústria (principalmente após a segunda revolução feminista) para inflamar as inseguranças mais profundas e possuir controle sobre a população feminina; mulheres são, desde o nascimento, produtos da expectativa masculina sobre o que pensar, o que gostar, o que fazer, como se portar: não é de surpreender que questionamentos sobre o self se tornassem uma espécie de neurose e que, ao sentir aquilo considerado atípico ou impróprio para uma mulher, a inadmissão e a intolerância rotulassem essa mulher de modo a afastá-la do rol das “normais”.

Ensinadas a obedecer e acatar, não nos é orientada a construção de autonomia ou emancipação que conduziria à saúde mental, e o temor do abandono perfaz a todas - sendo apenas extrapolado em casos de alguns transtornos.


Homens apresentam menos transtornos afetivos e mais àqueles relacionados à comportamento e cognição, como transtornos de conduta, narcisista, esquizofrenia e TDAH. Os transtornos de conduta não apenas indicam maior facilidade para agressividade como podem, na idade adulta, ser diagnosticados como TPA - caracterizado por menor ou nula capacidade de empatia.


Em suma, os critérios de diagnóstico parecem colaborar para a manutenção dos status patriarcais, ignorando causas ambientais e patologizando os traumas femininos, tornando sintoma a “emoção excessiva” - já que os padrões de normalidade, assim como a revisão psiquiátrica até hoje, são elaborados a partir das perspectivas masculinas. 








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