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A análise psicológica de Hitler, por Langer (1943) - PARTE 1

Em 1943, a pedido do antigo FBI, o psicólogo norte-americano Walter Langer elabora um relatório à distância sobre a análise psicológica de Hitler, a partir de contato com pessoas próximas, da observação minuciosa de seus comportamentos privados e públicos, e do estudo de seus discursos. Apesar de não tão preciso quanto uma análise direta com a cooperação do paciente, o relatório de Langer fornece bases para a explicação de como a personalidade doentia de Hitler foi construída e como era possível exercer tamanha influência sobre o povo alemão comum.

É necessário frisar que muito da rigidez de pensamento e do padrão de comportamento de Hitler se assemelham ao do próprio Bolsonaro - o que oferece a possibilidade de que certos traços psicológicos e materiais sejam comuns a chefes de governos autoritários.

O livro de Langer se divide em seis partes, são elas: como ele acredita ser, como o povo alemão o conhece, como seus colaboradores o conhecem, como ele se conhece, análise e reconstrução psicológica e seu provável comportamento no futuro.

I. COMO ELE ACREDITA SER
Antes de tudo, é preciso dizer que Hitler acredita em sua própria grandeza; ele é o discípulo mais fiel e subserviente de si mesmo e o mais arrebatado pela construção de seu próprio mito. 
Considera-se autoridade em qualquer assunto, de arquitetura à música.
Crê em si mesmo ora como enviado de Deus, ora como o próprio Messias. A ideia de seu caráter mítico possibilita que ele se encare em termos de imortalidade, afirmando que é ele quem mobiliza a época em que vive e que após sua morte as pessoas não o esqueceriam e “pensariam nele por mil anos”, enquanto o mundo mergulharia em inatividade silenciosa. 

II. COMO O POVO ALEMÃO O CONHECE 
O conhecimento dos alemães sobre Hitler sempre foi controlado inteiramente pela imprensa; o contato com sua imagem se deu pela propaganda excessiva, que manipulava sua imagem e seus comportamentos. Hitler muito se destacava em sua oratória, ainda que os discursos não fossem excepcionais e nem mesmo bem encadeados. Os temas pouco variavam e se restringiam à traição política, à interrupção do marxismo e ao domínio mundial judeu. Acontece que ele possuía a “capacidade de sentir o que uma dada plateia queria ouvir e manipular seu tema de tal maneira que ele despertava emoções na multidão”:

Hitler reage à vibração do coração humano com a delicadeza de um sismógrafo. (…) E com isso consegue, com uma certeza que nenhum dom consciente poderia dotá-lo, transformar-se num alto-falante proclamando os mais secretos desejos, os menos permissíveis instintos, os sofrimentos e revoltas pessoais de toda uma nação.”

— Otto Strasser, ex-membro do partido nazista e inimigo pessoal e político de Hitler, 1940.          

Sua influência não se dava pelo que ele dizia, mas por como dizia: ele era um showman, com talento para o drama. Costumava marcar seus discursos para tarde da noite, quando os ouvintes já estavam cansados, orientava que um dos membros do partido introduzisse algum discurso entusiasmado e quando a plateia era conquistada, Hitler entrava triunfante, em pose de reverência e sem olhar para os lados, sempre ao som de marchas militares tocadas por bandas contratadas. Manifestava intensos sinais de nervosismo até que conquistasse a afinidade da plateia. Hitler tivera aulas de oratória e psicologia das massas, e todas as suas atitudes em público reiteravam medidas programadas para que o povo com ele empatizasse. 

Sem dúvida, como orador, ele tem exercido uma influência poderosa sobre os alemães comuns. Seus comícios estavam sempre cheios e no momento em que terminava de falar tinha entorpecido completamente as faculdades críticas de seus ouvintes, deixando-os dispostos a acreditar em quase tudo que ele dizia. Hitler os elogiava e os bajulava. Num momento ele lançava acusações contra eles; em outro os entretinha como espantalhos que ele imediatamente derrubava (falácia do espantalho); sua língua era como um chicote que estimulava as emoções de sua plateia e de algum modo ele sempre conseguia dizer o que a maioria do público estava pensando em segredo mas não era capaz de verbalizar. Quando o público começava a reagir, isso o afetava. Em pouco tempo devido ao relacionamento recíproco ele e sua plateia ficavam intoxicados com o emocional de sua oratória”.

O sucesso obtido por Hitler acontecia reciprocamente, ou seja, com adesão e apoio popular: só conseguia doutrinar o povo porque este já era secretamente adepto às bases de sua ideologia. Para eles, Hitler lhes abria os olhos para a realidade e era profundamente corajoso em dizer aquilo que os demais não se atreviam. Assim, lhes fortalecia o amor-próprio, brutalmente arrasado pela derrota na Primeira Guerra.

Essa aceitação alicerçava a propaganda. Como só conheciam o Hitler das propagandas que o ovacionavam e nada sabiam de sua vida pessoal, desenvolveu-se um ambiente propício para a construção de um mito.

Tudo que ele fazia era retratado com motivos sobre-humanos (até mesmo sua abstinência sexual ou sua falta de contato com a família “em nome do trabalho”), mas ao mesmo tempo era dotado de profunda humanidade e de sentimentos de bondade e generosidade. Hitler era mostrado como muito amável com crianças e querido por elas, e da mesma forma o era com animais (principalmente cachorros), e assim até mesmo sua escolha pelo vegetarianismo era propaganda. Era, ainda, a despeito de sua mania de grandeza, divulgado como muito modesto e simples, sujeito que nunca deixara de ser um trabalhador e que nunca permitira que o poder lhe subisse à cabeça. Oeshsner afirma que “ele é o grande confortador: um pai, irmão, marido ou filho para todos aqueles alemães que perderam seus parentes”.

Nas propagandas, aparece também como uma pessoa de grande paciência, que jamais derramaria uma gota de sangue se isso pudesse ser evitado. Assim, representa “o ápice da honra e pureza alemãs; o ressuscitador da família e do lar alemães. É o maior arquiteto de todos os tempos. O maior gênio militar de toda a história. Tem uma fonte inesgotável de conhecimento. É um homem de ação e criador de novos valores sociais. Ele é de fato de acordo com o departamento de propaganda nazista o paradigma de todas as virtudes.”

As manchetes afirmavam que “quando ele fala, ouve-se o manto de Deus farfalhar pelo recinto!”; o prefeito de Hamburgo uma vez disse que nós nos comunicamos diretamente com Deus através de Hitler, não precisamos de padres ou sacerdotes”; e até mesmo um grupo de “cristãos” alemães declarou: “a palavra de Hitler é a lei de Deus; os decretos e as leis que a representam têm autoridade divina”.


III. COMO SEUS COLABORADORES O CONHECEM

Hitler afirmava que possuía o dom de reduzir todas as teorias mais complexas à soluções simples e práticas. Diversos fatores da psicologia de grupo foram utilizados por ele para a conquista do povo (os grifos são semelhanças com as atitudes de Bolsonaro, que, apesar de provar ser pouco inteligente, usa dos modelos ditatoriais para construir suas posições):

  • reconhecimento da importância das massas em qualquer movimento;
  • reconhecimento do valor de conquistar a juventude e de doutrinar as crianças;
  • reconhecimento da necessidade de conquistar as mulheres;
  • capacidade de sentir, se identificar e expressar em linguagem apaixonada as necessidades e os sentimentos mais profundos do alemão comum;
  • capacidade de apelar às inclinações mais primitivas (e ideais) do homem para despertar os instintos mais baixos e mesmo assim mascará-los com nobreza justificando todas as suas ações em nome de um objetivo;
  • reconhecimento de como as massas necessitam ideologias amparadoras, de base espiritual;
  • a capacidade de caracterizar forças humanas conflitantes em imagens vívidas e concretas que são compreensíveis e emocionantes para o homem comum;
  • aptidão de recorrer às tradições do povo, evocando as emoções inconscientes mais profundas;
  • compreensão da importância da intensidade artística e dramática na produção de grandes comícios;
  •  reconhecimento do valor do slogans, palavras da moda, frases dramáticas e epigramas felizes em penetrar nos níveis mais profundos da psique; sobre isso, diz Hanfstaelgn: “há pouco espaço num cérebro, ou por assim dizer, pouco espaço de parede, e, se você mobialiá-lo com seus slogans, a oposição não terá espaço para pendurar seus quadros porque o aposento do cérebro já está abarrotado com a sua mobília”;
  • compreensão da solidão e do isolamento das pessoas modernas e da necessidade de pertencerem a um grupo ativo;
  • consciência da importância da confiança conquistada com demonstrações de eficiência e organização do governo;
  • Capacidade de apelar e despertar a preocupação e a proteção de seu povo, representando a si mesmo como o portador dps fardos naturais e do futuro desse povo; (lembrar de como a saúde de Bolsonaro mobiliza seus seguidores)
  • Capacidade de convencer os outros a repudiarem suas consciência individuais e permitirem que ele assuma esse papel;
  • Uso pleno do terror e dos medos do povo.

Como quando criança, seus colegas revelaram que, na verdade, Hitler era quase sempre desorganizado, desleixado e pouco afeito a esforços intelectuais (o partido chegou a contratar uma secretária que assegurasse que ele cumpriria suas obrigações e deveres). Quase nunca era pontual, era incapaz de manter uma agenda de trabalho e possui horários bastante irregulares; parecia inclusive ter forte aversão a ir dormir ou ficar sozinho. dorme mal, acorda por vezes gritando e toma medicações para dormir. Tem certa compulsão com o modo como a cama é arrumada. É pouco dedicado ao trabalho e à reuniões e se entedia facilmente - só se dedica àquilo que lhe chama atenção. É procrastinador e não pensa no problema de um jeito normal, mas espera que a solução se apresente para ele, e seus processos de pensamento vão do emocional ao factual, ao invés de começarem na ordem inversa como a lógica determina. Seus estados de ânimo mudam drasticamente de acordo com suas performances políticas, e costuma ter acessos de fúria: “seu comportamento é extremamente violento e revela uma total falta de controle emocional. Nos piores acessos de fúria, Hitler sem dúvida age como uma criança mimada que não consegue tudo que quer, e bate os punhos nas mesas e paredes. Ele dá bronca, grita e gagueja, e em algumas ocasiões espuma de saliva se acumula nos cantos de sua boca". Assuntos bastante insignificantes podem provocar essa reação, como quando alguém o contradiz. É incapaz de enfrentar situações inesperadas e costuma fugir em alguns encontros. Em situações difíceis sucumbe e chora como criança, suplicando simpatia, ou mesmo ameaça se suicidar. Não possui relações íntimas e mantém considerável distância das pessoas. Também não consegue manter conversas normais ou ouvir as pessoas, e suas tentativas de diálogo sempre assumem tons de palestra. Tem como truque a desculpa de esquecimento, e na verdade a maioria dos nazistas aprendeu com ele a esquecer de tudo aquilo que não querem lembrar.

Carece de senso de humor, principalmente de autoironia: "ele se leva a sério e se inflama com uma raiva temperamental com a menor infração por ato ou atitude contra a dignidade e santidade do estado e do Führer", diz Huss. Possui dificuldade de relacionamento com mulheres, e em 1924, Geli, sua sobrinha (filha de sua meia-irmã Angela), chega para cuidar de sua casa. Pouco tempo depois, eles estavam morando sozinhos no apartamento dele, e muitos membros do partido achavam que a proximidade dos dois atraía má publicidade. Hitler se tornou possessivo com a atenção de Geli e se recusava a deixar que ela saísse com qualquer outro homem. Então, certo dia, ela foi encontrada morta no apartamento de Hitler, vítima de uma bala disparada do revólver dele. Especulou-se muito se havia realmente se matado, como consta no veredicto do médico-legista, ou se havia sido morta por Hitler. Depois disso, ele entrou numa profunda depressão que durou meses.

Era, ainda, descuidado em relação aos colaboradores: o único critério de filiação ao partido era que o solicitante fosse "incondicionalmente obediente e fielmente dedicado a mim".

Era sabido por muitos colegas que Hitler possuía gosto pela pornografia, e recebera desde novo acusações de perversão sexual.

Contrapondo-se à ideia das propagandas de que Hitler era modesto e simples, seus gostos pessoais - como alimentação, vestuário e pinturas - eram caros, e Hitler gastava muito com precauções extremas com sua segurança.


IV. COMO ELE SE CONHECE

Hitler nunca falava ou revelava qualquer coisa de si. O que se sabe é que vinha de uma família camponesa semi-analfabeta. Seu avô paterno não era oficialmenre conhecido, e uma das investigações apontou ser possível que Hitler fosse ¼ judeu. Tais documentos sumiram e chanceler mandante da investigação foi assassinado.

Em geral Alois, seu pai, tratava os vizinhos camponeses com inferioridade e em casa era dominador e tirano; bebia muito (os filhos costumavam ter de buscá-lo no bar) e era comum que batesse na mulher, nos filhos e até mesmo no cão de estimação. Alois era, ainda, declaradamente anti-alemão.

mãe de Hitler era filha de criação de seu próprio marido, e 23 anos mais nova. Era comentada como amorosa e dedicada aos filhos, e Adolf era seu preferido. Aparentemente ela, Klara, perdeu três ou quatro filhos (ao longo de 4 anos) antes de Adolf e há boatos de que havia uma menina, mais velha que ele, que por ser deficiente mental era escondida da vizinhança. Assim, quando Adolf nasceu ele se tornou seu pequeno milagre, recebendo todo o afeto que seria destinado ao marido e aos outros filhos, até seus cinco anos, quando seu irmão nasceu. Entretanto, o menino morreu aos seis anos. Paula, a irmã mais nova, também parece apresentar retardo mental.

Alois morreu quando Hitler tinha 14 anos. 

Sabe-se também que era um estudante medíocre, por desinteresse e pouco esforço.

Aos 18 anos foi reprovado no exame de admissão da Academia de Belas Artes, e pouco depois sua mãe morrera de câncer de mama. Um ano depois, Hitler não foi nem mesmo aprovado para mostrar suas pinturas na academia de belas artes, e também foi reprovado na escola de arquitetura. Sem rumo, inicia seus estudos políticos, apenas para embasar seu nacionalismo alemão: "ele nunca estuda para aprender, mas sim para justificar o que sente. (...) em outras palavras, seu julgamento se baseiam por inteiro em fatores emocionais e em seguida são revestidos com argumento intelectual". Nessa época, foi despedido de seu emprego de operário por inimizade com os colegas e passou a pedir esmolas. Quando Hitler conseguia dinheiro, parava de trabalhar. Nesses anos, andava com judeus tranquilamente. Hanisch, um conhecido, afirma:

"Hitler parecia muito judeu, de modo que eu muitas vezes brincava com ele dizendo que devia ter sangue judeu, pois uma barba tão grande como aquela raramente cresce no queixo cristão. Ele também tinha os pés grandes, como um errante do deserto deve ter" .

Foi através do contato com outros políticos que passou a aprender sobre antisemitismo.

Hitler era profundamente grato e satisfeito com a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Sobre isso, ele próprio escreveu:

"Na verdade a luta do ano de 1914 não foi imposta sobre as massas, mas sim desejada por todo o povo. Para mim, esse tempo chegou como redenção das experiências vexatórias de minha juventude. Mesmo hoje não tenho vergonha de dizer que, no arrebatamento de entusiasmo, caí de joelhos e agradeci ao céu com um coração transbordante".

Aos 25 anos ingressou no regimento bávaro como voluntário, e quando a guerra acabou, ele perdeu seu lar durante 4 anos, o exército, e de novo estava sozinho, entrando em depressão. Em seguida, foi descoberto pelo exército pelo seu talento de oratória.

Langer, mais à frente, escreve:

"Houve uma concordância geral entre os colaboradores de que Hitler é provavelmente um psicopata neurótico que beira a esquizofrenia. Isso significa que ele não é louco no sentido comum do termo, mas sim um neurótico que carece de inibições adequadas. Ele não perdeu por completo o contato com o mundo ao redor e ainda tenta fazer algum tipo de ajuste psicológico que lhe dará um sentimento de segurança em seu grupo social. Também significa que há um claro componente moral em seu caráter, não importa o quão profundamente possa está enterrado ou quanto foi distorcido". Isso indica que, ainda doente ou com traços de doença mental, Hitler era capaz de julgar as situações e decidir por si mesmo.

Langer garante que Hitler é movido por medos, ansiedades e sentimentos de solidão e de culpa, e que grande parte de suas energias é geralmente desperdiçada numa luta consigo mesmo, ao invés de ser direcionada para o mundo externo. “As gratificações indiretas por meio de fantasias tornam-se substitutos para a satisfação obtida por meio de realizações reais".

Hitler apresentava cotidianamente alternância nos estados de ânimo: "quase tudo pode subitamente inflamar sua fúria e ódio, mas, da mesma forma, a transição de raiva para o sentimentalismo ou entusiasmo pode ser bastante repentina", diz Rauschning.

Assim, é improvável que haja uma completa dissociação da personalidade Hitler: ele pode adotar um ou outro papel mais ou menos de acordo com sua vontade.

"A personalidade do Führer é uma concepção excessivamente exagerada e distorcida de masculinidade idealizada por Hitler. Tem todas as marcas de uma formação reativa criada inconscientemente para compensar e encobrir tendências profundas que ele despreza". Ou seja, inconscientemente é possível que Hitler repudie a si mesmo.

Apresenta profundo medo de doenças, especificamente do câncer, e também tem medo de ser envenenado, de engordar, de ser traído, de perder sua orientação mística e da morte prematura:

"O resultado desses medos é um estreitamento do mundo em que vive; assombrado por receio secretos, ele desconfia de todos, até mesmo daqueles mais próximos. Não consegue estabelecer nenhuma amizade íntima por medo de ser traído ou de ser descoberto como realmente é. Conforme seu mundo fica mais e mais limitado, ele se torna cada vez mais solitário. Sente-se preso e frequentemente compara a sua vida com a do Papa".

Entretanto, “interpreta seus medos como prova de sua própria importância, e não como sinais de sua fraqueza fundamental; à medida que o mundo pessoal de Hitler se torna menor, ele deve estender os limites de seus domínios físicos. Enquanto isso, sua autoimagem deve ficar cada vez mais inflamada para contrabalançar suas privações e manter suas repressões".


V. ANÁLISE E RECONSTRUÇÃO PSICOLÓGICA 

Langer inicia o quinto capítulo com comentários que poderiam ser facilmente aplicados a Bolsonaro:

No início de sua carreira, o mundo o observou e considerava-o divertido. Muitas pessoas se recusaram a levá-lo a sério alegando que 'provavelmente ele não vai durar’ (...). Para a maioria das pessoas parecia inconcebível que essas coisas pudessem mesmo acontecer em nossa civilização moderna".


É comumente considerado louco ou até mesmo inumano, afinal, é mais fácil para que as pessoas compreendam seus crimes e todo o horror cometido por ele, separando-o dos homens “normais”. Entretanto,

"eles não podem se contentar em simplesmente considerar Hitler um demônio pessoal e condenado ao inferno eterno para que o restante do mundo possa viver em paz e tranquilidade. A loucura do Führer se tornou a loucura de um país, ou até mesmo de uma grande parte do continente. Não se trata inteiramente das ações de um único indivíduo, mas existe um relacionamento recíproco entre Führer e o povo, e a loucura de um estimula a do outro, e vice-versa. Não foi só Hitler, o louco, que criou a loucura alemã; a loucura alemã também criou Hitler".

Hitler é, na verdade, a expressão de um estado de espírito existente em milhões de pessoas, não só na Alemanha, mas em menor grau em todos os países civilizados. Existe um chamado “caráter cultural geral”: o povo é exposto a influências sociais, como padrões familiares, métodos de treinamento e educação, e oportunidades de desenvolvimento, e isso é razoavelmente homogêneo dentro de uma determinada cultura.


Sabe-se que as experiências da infância são responsáveis por moldar padrões de comportamento que se seguem pelo resto da vida. Assim, seria necessário saber sobre a origem e a criação de Hitler; apesar de nunca falar sobre sua infância, família ou vida anterior à chegada ao poder, Hitler menciona em Mein Kampf, por meio da terceira pessoa, excertos da vida de um indivíduo que dá a entender ser ele mesmo; descreve a vida de uma criança de família classe baixa, e, tendo em vista o fato de que existem cinco filhos na casa de Hitler e que seu pai bebia muito, Hitler provavelmente falava de sua própria infância, principalmente considerando que ele nunca teve um amigo íntimo e não poderia observar essas situações através de outras pessoas.

"Entre os cinco filhos há um menino, digamos, de 3 anos (...) quando os pais brigam quase que diariamente, a brutalidade se revela por completo, e então os resultados dessa educação visual ficam de modo lento, mas inevitável, evidentes para o pequeno (...) [ocorrem] ataques brutais por parte do pai contra a mãe ou agressões devido à embriaguez. O pobre menino aos seis anos sente coisas que fariam até uma pessoa adulta tremer. As outras coisas que o menino ouve em casa não tendem a favorecer seu respeito pelo seu ambiente (...) de fato, as coisas acabam mal quando o homem desde o início segue seu próprio caminho, e a mulher, por amor aos filhos, coloca-se contra ele. Discussões e chateações começam, e na mesma medida em que o marido se afasta de sua mulher, ele se aproxima do álcool. Quando ele enfim volta para casa, embriagado e violento, mas sempre sem nenhum centavo, então Deus tenha misericórdia da cenas que se seguem. testemunhei tudo isso pessoalmente em centenas de ocasiões".

Quando o pai estava sóbrio procurava criar uma impressão totalmente diferente, e apoiava-se muito em sua dignidade e em seu cargo no serviço público para conquistar o respeito dos vizinhos; até mesmo exigia que os filhos o tratassem por “Herr Vater” (senhor pai).

Em geral, principalmente em relação a filhos homens, o caráter do pai serve de modelo. É um pré-requisito para uma personalidade estável, segura e bem integrada na vida adulta. Hitler, quando adulto, sempre procurou uma figura masculina forte que ele pudesse respeitar e imitar; tentou encontrar grandes homens da história que poderiam satisfazer essa necessidade, como César ou Napoleão. 

Não possuía habilidades relacionais e era comum ele dizer que era culpa da mulher se o homem se desencaminhasse; costumava dar lições de moral a respeito disso, dizendo que todas as mulheres estavam disponíveis para o sexo - em outras palavras, ele enxergava as mulheres como sedutoras, responsáveis pela decadência dos homens e as condenava por sua deslealdade.


Durante a Primeira Guerra, após servir ao exército e se conscientizar da derrota alemã, reagiu de maneira tipicamente a histérica.


Sua crença inabalável em sua missão e em sua imortalidade acontecia também porque três ou quatro crianças morreram antes de seu nascimento, e ele mesmo era um bebê frágil que sobreviveu; logo em seguida, seu irmão mais novo também morreu. Ele deve ter se perguntado porque os outros morreram e ele continuou vivo; a conclusão natural era de que ele foi escolhido para viver por causa de algum propósito específico, e de que estava sob a proteção divina.


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