Com a incidência de casos divulgados e sensacionalizados pela mídia sobre crianças envolvidas em crimes graves, a ideia de malignidade inerente volta à tona, como sempre quando se deseja desculpar as razões concretas do hediondo - e a responsabilidade do Estado quanto a isso.
Reitero que investigar e elencar as bases e justificativas dos crimes não minimiza a gravidade deles ou a responsabilidade dos réus.
Mas é um dever social, e as autoridades policiais, judiciais e psiquiátricas deveriam ser as primeiras a se comprometer, seguidas da opinião pública. Não é o que acontece.
Existe uma tendência a embasar os motivos como psicopatia, ignorando não apenas a não-utilização do termo como diagnóstico, e sim como instrumento forense, como também o fato de que os traços psicopáticos se inserem em psicopatologias - ativadas por desequilíbrios neurológicos e exposição à violência precoce.
O abuso familiar ou outros tipos de agressão empreendidas na infância são listados como os maiores fatores desencadeadores de delinquência e distúrbios de conduta e de personalidade posteriores. A criança, quanto mais nova, se apresenta em fase aguda de desenvolvimento cerebral e comportamental e qualquer trauma em tenra idade é passível de desorganizar profundamente a vida de um indivíduo.
É constatado que a maioria daqueles rotulados como “psicopatas” foram vítimas de abusos múltiplos e severos durante a infância, embora haja também aqueles que mesmo responsáveis por crimes extremos tenham, ao menos superficialmente, uma infância “normal”.
A explicação mais aceita nesses casos é complexa: acontece que o foco governamental não incide sobre saúde mental acompanhada, análise de conduta e comportamento, inteligências e responsabilidades emocionais; criam-se pais sem noção do papel que desempenham e que não recebem orientação sobre como agir. Não há de fato manual para mães e pais. Mas também não há mínima atenção e auxílio nesse trabalho árduo.
Então, ainda, pais afetuosos podem não ser presentes.
E pais presentes podem não ser atentos.
E pais atentos podem não ter limites.
E pais podem ter limites mas não sensibilidade.
E pode haver muito mais do que violência e negligência.
Pode haver a não-percepção desses filhos. Filhos podem ser desconhecidos.
E os crimes são cometidos por raiva, resposta, desespero, busca por atenção. “Cries unheard”, é como Sereny chama tais ações.
Essas crianças e adolescentes não devem ser instantaneamente perdoados, ignorados ou menos responsabilizados. Mas é preciso ter ideia de dois fatos: o primeiro é que perturbações profundas comprometem a capacidade de empatia e julgamento pleno sobre certo e errado. E na maioria dos casos documentados, os crimes foram consumados sem noção total da consequência. E a segunda é que o sistema se conforma em punir drasticamente crianças pequenas ao invés de se comprometer primordialmente com seu tratamento e sua reabilitação; e é essencial lembrar que os períodos de mais intenso desenvolvimento da personalidade - infância e adolescência - passados em instituições de encarceramento e punição acarretam mais danos do que consciência. O ambiente insalubre destinado aos infratores compreende hierarquias que só são superadas com violência, manipulação e escambos superiores.
Nossas prisões não existem para reabilitar, e sim isolar e vingar a sociedade.
A divulgação midiática deliberada dos nomes desses menores e, principalmente, a demonização deles, origina e fortalece preconceitos que mesmo se um dia libertados, perduram como exclusão e rejeição.
Não há como haver compreensão da violência quando tudo que se conhece é a violência.
Por lei, até os 18 anos não se permite a taxação de psicopata, e o diagnóstico de TDA só pode ser concluído após essa idade. Até então, o consenso é sobre transtornos de conduta, que podem refletir não apenas o TDA, mas outros transtornos.
Ainda assim, todo transtorno deve ser tratado e receber máximo envolvimento psiquiátrico, farmacológico e terapêutico. Acredita-se que a resposta plena aos testes de TDA inutilizam qualquer tratamento, mas há evidências de que quando mais cedo detectados e tratados sintomas de desvios de conduta, são possíveis o controle e até mesmo a remissão.
O psicopata - a semente ruim - é uma desculpa social.
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