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Consequências psicológicas da ansiedade materna e do abandono afetivo paterno

Uma vez que a mulher grávida pode ser considerada como o ambiente físico e psicológico para o feto em desenvolvimento, qualquer alteração no seu funcionamento pode ter um efeito potencial sobre o feto e a futura criança.” (Barr, 2016)

Estudos iniciados na 25ª reunião da Sociedade de Neurociência Cognitiva, em Boston, mostra que o estresse da gestante compromete a conectividade neural dos fetos.

Desordens psicopatológicas durante a gravidez afetam não apenas o desenvolvimento embrionário e fetal, como a primeira infância e a adolescência dessas crianças. Essas desordens provêm muito menos de um estado de saúde anterior da mãe do que de estresses externos pelos quais passa essa mulher. 

Para além das alterações hormonais naturais do período gestacional, é preciso considerar a mudança nos status sociais que compreendem desde a descoberta da gravidez até os primeiros anos de vida da criança.

Uma a cada cinco brasileiras são abandonadas durante a gravidez; quase seis milhões de crianças não possuem o nome do pai no registro, número ainda muito inferior à realidade desse abandono afetivo, pois muitas são negligenciadas ainda que registradas e mesmo quando há presença física desse pai. 85% das crianças pequenas são cuidadas principal (e provavelmente unicamente) pela mãe; 40% dos lares são chefiados por mulheres, e apenas 34% possuem o pai presente; o índice de pobreza é 57% maior em lares com mães solo.

Estresse, ansiedade e sentimentos presentes na condição clínica da depressão - como desamparo, abandono e anedonia são comumente vivenciados durante a gravidez; os efeitos da ansiedade provocam complicações obstétricas e, por sua vez, as complicações obstétricas provocam ansiedade nas gestantes. Essas complicações compreendem nascimento de baixo peso, sangramento vaginal e ameaças de aborto e ao desenvolvimento fetal tais como diferenças no padrão de reatividade e altas taxas de batimento cardíaco e a problemas emocionais e de comportamento na infância e na adolescência.

“(...) os autores examinaram os efeitos de respostas de estresse agudo e ansiedade materna na resposta fisiológica de batimento cardíaco fetal. (...) em adolescentes grávidas, os autores verificaram a relação entre os resultados de medidas emocionais maternas (de traço e estado emocional) e medidas biológicas e os resultados da reatividade do sistema nervoso autônomo do feto, particularmente, o tônus cardíaco.” (Correia; Linhares, 2007)


Os efeitos da ansiedade e da depressão materna pré-natal e pós-natal são responsáveis por elevar de duas a três vezes a média de problemas emocionais e comportamentais a partir dos 4 anos de idade. Seguindo esse raciocínio, foi verificado que mães que apresentaram problemas emocionais durante e após a gravidez tiveram filhos com maior probabilidade para desenvolvimento de psicopatologias como depressão maior e transtornos de comportamento na adolescência. 


Entre pais e mães, as mulheres apresentam maior nível de ansiedade - tanto pelas alterações da gestação quanto pelas pressões sociais. Solomon (2012) investiga os determinantes sociais da depressão materna (maternity blues), já que é consequência patriarcal que as mães sejam mais ou totalmente responsáveis pela criação dos filhos e o pai gradativamente se afaste emocionalmente. A depressão materna inscreve ainda a ansiedade da mãe em relação à potencial perda da criança, criando comportamentos de apego negativo.


Há agora provas substanciais de que bebês de mães deprimidas têm um perfil de desregulação que afeta seu comportamento e fisiologia, e que isso provavelmente deriva da sua exposição pré-natal a um desequilíbrio bioquímico em suas mães (Field et al., 2004; Gerardin, Wendland, Bodeau et al., 2010). Como a placenta é bastante permeável, mães compartilham seus hormônios e neurotransmissores com o feto. Além disso, alterações bioquímicas maternas podem ser agravadas pelos efeitos gerais de depressão no comportamento e estilo de vida, como dieta inadequada (Steer et al., 1992), distúrbios do sono (Rieman, Berger e Vodeholzer, 2001), uso de substâncias como nicotina, álcool, drogas e medicamentos e, de modo geral, pouco cuidado com a gravidez e a própria saúde.” (Barr, 2016)


Pesquisas correlacionaram, inclusive, subnutrição materna durante a gestação à maior probabilidade de transtorno esquizofrênico nas crianças.


Em comparação com as mulheres grávidas não deprimidas, as mulheres com sintomas depressivos têm níveis mais altos de cortisol e norepinefrina, e níveis mais baixos de dopamina e serotonina.” (Barr, 2016). Tal desequilíbrio hormonal das mães é transmitido aos fetos. Tendem a nascer prematuros ou com baixo peso e são fisiologicamente menos maduros: revelam maior assimetria frontal direito em um EEG (eletrencefalograma). Segundo Abrams, Field, Scafidi e Prodromidis (1995), esses recém-nascidos apresentam ainda pontuações mais baixas em orientação, tônus motor, nível de atividade. Armstrong, O’Donnel, McCallum, e Dadds (1998) observaram o aumento de problemas de sono nessas crianças.


Distúrbios no temperamento e expressão emocional, como oscilações rápidas de humor e transtornos de personalidade também foram constatadas como sensibilização persistente dos circuitos do sistema nervoso central como consequência de estresse precoce.


É concebível que a exposição precoce ao cuidado com tendência negativa e imprevisível de uma mãe deprimida sensibilize o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal que media a resposta ao estresse e está na base do aumento da vulnerabilidade dessas crianças a transtornos de ansiedade e depressão.

Além disso, o estresse durante a gravidez também pode afetar a função intelectual geral e a linguagem do lactente (Gallois e Wendland, 2012).” (Barr, 2016)


Quanto ao abandono afetivo por parte do pai, Eizirik & Bergamann cit. por Benczik (2011) afirma que a ausência paterna gera conflitos no desenvolvimento psicológico e cognitivo da criança, bem como influencia o desenvolvimento de distúrbios de comportamento ligados à insegurança, inferioridade e agressividade (o TPB seria um deles). Em geral, são documentados aumento de ausência nas aulas, risco aumentado de envolvimento com drogas, relacionamento frágil com os pares, depressão, ansiedade, labilidade emocional e a externalização de comportamentos-problemas (Cia, Williams & Aiello, 2005).


A ausência paterna compromete ainda a condição financeira da família, sendo determinante para situações de privação material. Afeta também a capacidade de convivência e os elos sociais, bem como o desempenho acadêmico. Crianças do sexo masculino apresentam problemas relacionados à agressividade e delinquência, enquanto as do sexo feminino refletem essa ausência paterna e sua consequente falta de parâmetros relacionais em seus relacionamentos futuros (principalmente românticos), reproduzindo padrões aprendidos subconscientemente.


Durante a infância, a presença do pai (ou outra referência afetiva e cuidadora) é responsável pelo equilíbrio e aumento de autoestima e segurança, necessárias às habilidades sociais - enquanto sua ausência esvazia o núcleo de confiança da crianca, acarretando problemas no desenvolvimento neural, motor e relacional. 


Já na fase da adolescência, segundo Sganzerla e Levandowski (2010), o abandono afetivo paterno potencialmente provoca “manifestações de comportamento delinquentes, porte de arma e embriaguez no contexto escolar além de amadurecimento físico precoce, maior probabilidade de uso de drogas e alto índice de obesidade”, sendo as transgressões sexuais, comportamentais e sociais consequências dessas fragilidades nas composições familiares, em que o adolescente busca em outra linguagem ser reconhecido como sujeito.


Na idade adulta, estudos com indivíduos que cresceram sem referência paterna demonstram a continuidade da insegurança, da baixa auto estima, da dependência emocional e financeira, da ansiedade, dos desvios comportamentais e distúrbios da personalidade na idade adulta.


A instabilidade emocional na gravidez se ancora também em determinantes sociais muito mais amplos, e é comumente sucedida pelo abandono desse companheiro e pai - outro intenso causador de conflitos cognitivos e psicológicos nessas crianças e adultos, que reproduzem suas inseguranças e desordens nos demais vínculos afetivos. 


Fontes: 

A ausência física e afetiva do pai na percepção dos filhos adultos.

Camila Ceron Damiani; Patrícia Manozzo Colossi.

http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2015000200008


Barr, Marcia, Organizadora

Nerurociências e Educação na Primeira Infância: progressos e obstáculos / Marcia Alvaro

Barr. – Brasília; Senado Federal; Comissão de Valorização da Primeira Infância e Cultura da Paz, 2016

https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/536046/neurociencias.pdf


Ansiedade materna nos períodos pré e pós-natal: revisão da literatura.

Luciana Leonetti Correia; Maria Beatriz Martins Linhares.

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0104-11692007000400024&script=sci_arttext&tlng=pt


AS CONSEQUÊNCIAS DA AUSÊNCIA PATERNA NA VIDA EMOCIONAL DOS FILHOS.

Edgar Henrique Hein Trapp; Railma de Souza Andrade.

http://uniesp.edu.br/sites/_biblioteca/revistas/20180301124653.pdf



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