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a metaficção historiográfica em Holocausto Brasileiro (2013) [2019.1]

INTRODUÇÃO: A LITERATURA E A VIDA.

O presente ensaio trabalha com a obra de Daniela Arbex, “Holocausto Brasileiro” (2013), e tem o objetivo de situá-la - e as demais obras que seguem a mesma configuração - como "metaficção historiográfica", e reiterar seu pertencimento ao âmbito literário. 
Abordar obras consideradas não-ficcionais ainda é um embate quanto à sua classificação: afinal, trata-se ou não de literatura?
A construção narrativa, quando utilizada em função da História, recebe pouca ou nenhuma credibilidade como literatura. Geralmente na forma romance, apresenta uma construção que tenta corresponder à multiplicidade do presente: sua matéria é o passado ainda vivo, questionável e sujeito a revisões.
De acordo com “O Romance Histórico”, de Lucàks (1937), essa forma nasce no século XIX, com Walter Scott, já que ele é o primeiro autor a conceber o tempo como razão do modo de ser e agir das personagens. Para Lucàks, o romance histórico deve surtir esse efeito: mostrar aos leitores as razões sociais e humanas que influem sobre os pensamentos e os comportamentos dos homens e mulheres da obra. 
De esfera popular, o romance focaria nos detalhes aparentemente insignificantes e resultaria da compreensão do relacionamento entre o passado histórico e o tempo presente.
Acontece que esse passado histórico não é uma organização ingênua e imparcial; tudo o que se sabe sobre é enviesado (propositalmente ou não) pelas ideologias dos homens e instituições que detinham o poder do discurso. Nunca sabemos o fato, apenas versões dele - a verdade chega diferentemente até as pessoas porque depende de suas visões de mundo. A partir desse aspecto, pode-se considerar o romance histórico como “ficção histórica”, visto que o fato não existe isolado. 
A ficção histórica permite ao escritor e ao leitor a troca de papéis, pois oferece a palavra ao outro - esse “outro” que foi isolado, silenciado e submetido às perspectivas dos “eus” passados. É esse tipo de produção que vai trazer à tona os discursos das mulheres, dos negros, dos pobres, da comunidade LGBTQIA+, enfim, das minorias marginalizadas.

APROFUNDAMENTOS: E AS HISTÓRIAS NÃO CONTADAS?

A partir dos anos de 1980, com o fim da ditadura militar, o diálogo entre estudiosos da literatura e da história se intensificou. A busca pelo que havia sido censurado promoveu uma vulgarização necessária da “verdade”, pessoal e não-linear.
Sobre isso, Flávio Loureiro Chaves afirma:

“Por si só não é histórica aquela literatura que compete com a crônica pura e simples dos fatos ou inclui em sua matéria eventos e figuras decalcadas diretamente sobre a existência real. Entretanto, poderá sê-lo (e com maior força de convicção) aquela que, embora totalmente fictícia, assume como preocupação central a História e a exposição de uma visão histórica.”

Linda Hutcheon (1947) também afirma que a verossimilhança é ainda mais importante que a “verdade objetiva” e desenvolve o conceito da “metaficção historiográfica”; mas antes de tratar dessa, é necessário compreender um pouco o pós-modernismo.
Diferentemente dos outros momentos literários, o pós-modernismo não possui uma referência temporal exata; fenômeno naturalmente contraditório, subverte os próprios conceitos e costuma ser negativizado por seu caráter descontínuo e fragmentado.
O que à primeira vista parece inconsistência e falha do movimento, na verdade é resultado do panorama temporal e cultural em que o pós-moderno está inserido e o qual pretende representar; a Segunda Guerra, a Guerra Fria, a Ditadura Militar - e todo o capitalismo que escraviza o mundo ocidental - criaram essa atividade cultural inevitavelmente histórica e política, que retorna ao passado não de forma nostálgica, mas que o reavalia e com ele dialoga criticamente.
Conforme o sistema dissolvia a hegemonia burguesa e o popular ganhava mais espaço, os produtos culturais passavam a afirmar as diferenças e a função da arte era questionada. O pós-moderno recusa-se a propor qualquer estrutura-mestra para si mesmo justamente por tanto desacreditar das demais. 
Arte e vida já não são opostos, e assim tem-se a escrita como a “experiência dos limites” (Kristeva, 1980): os limites da linguagem, da subjetividade e da identidade sexual, e mais ainda da sistematização e da uniformidade. A incredulidade coletiva promove debates sobre convenções sociais e artísticas e as instituições passam a ser investigadas. As fronteiras entre as artes tornam-se cada vez mais fluidas - inclusive entre os gêneros literários -, e suas fusões são objetos de mais discussão.
É nesse contexto que Hutcheon (1945) atenta para a “metaficção historiográfica”: uma produção de autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas, que devem ser repensadas e reelaboradas - pois as construções verbais não são fatos e não são ingênuas, todo discurso é articulado sob a ideologia desse autor, e até então os autores cujas vozes alcançavam o público eram aqueles privilegiados em alguma instância: cor, gênero, classe, etc.
As discussões sobre as fronteiras (ficção ou não ficção, e por extensão entre a arte e a vida) não cabem mais nessa modalidade discursiva, já que a metaficção consiste em obras documentais que, ao invés da onisciência e da onipresença da terceira pessoa, adota uma voz pessoal; jogando com as convenções do realismo literário e da factualidade jornalística, o texto é acompanhado por fotografias e depoimentos.
A classificação em “ficção” é alvo de inúmeros apontamentos e não são poucos aqueles que se recusam a considerar essas obras como literatura; isso acontece porque trata-se de algo tão fundamental quanto a questão da verdade. Kosinski (1968), ao nomear manifestações semelhantes como “autoficção”, explica melhor:

“...’ficção’ porque toda lembrança é ficcionalizante; ‘auto’ porque tal maneira de escrever é ‘um gênero literário, cuja generosidade é suficiente para deixar que o autor adote a natureza de seu protagonista ficcional - e não o contrário’.”

É a autoconsciência que admite o caráter provisório do pós-modernismo, como movimento que tece críticas a si mesmo. Não há essência, e sim um processo em andamento; segundo Lyotard (1984, p. 81), "o texto pós-moderno não segue regra pré-estabelecida e não pode ser julgado segundo julgamentos determinantes (categorias comuns)".
Entre suas manifestações, estão os discursos teóricos das teorias marxista, feminista, psicanalítica, e da teoria literária pós-estruturalista - e aos poucos os historiadores já não se preocupam com o realismo documental, com base sólida nos registros, mas atentam para uma redefinição da História, não mais interpretada como realidade.
"A história e a literatura pós-modernas rejeitam o ideal de representação e encaram seu trabalho como exploração, testagem, criação de novos significados, e não como exposição destes", diz Gossman (1978, p.38-39); a história está sendo repensada como uma criação humana, à qual só se tem acesso por meio do texto.
A historiografia passa a vincular a diferença de cor e gênero a questões de discurso, autoridade e poder; a teoria abandona paulatinamente sua torre de marfim e se presentifica na práxis social, minimizando a distância entre a arte de elite e a arte popular.
Hutcheon prossegue e afirma que "hoje pensar historicamente é pensar crítica e contextualmente", e que parte desse retorno problematizante é uma reação ao anistórico que caracterizou o modernismo.
A suspeita sobre essa aparentemente neutralidade do "fato" não se trata de negar o conhecimento histórico, mas de entender que a ficção e a história são discursos, ou seja, o sentido e a forma não estão nos acontecimentos, mas nos sistemas que transformam esses acontecimentos passados em fatos históricos presentes.
Não é possível haver um conceito único, essencializado e transcendente de "historicidade autêntica" ou fazer afirmações isentas de valor a respeito da mesma.
Os acontecimentos não narram a si mesmos.
O pós-modernismo traz uma nova acepção de história que não aquela livre sequência de realidades empíricas brutas; agora, significa o processo de examinar e analisar criticamente os registros, e sua reconstrução imaginativa foi denominada "historiografia". A historiografia baseia-se em duas perguntas sobre o fato: como podemos sabê-lo e o que podemos saber dele?
A metaficção historiográfica reconhece seus próprios processos de construção, e exatamente por isso não se trata apenas de "ficção histórica" ou "romance histórico"; ao mesmo tempo que é intensamente auto-reflexiva, traz acontecimentos e personagens históricos - com a intenção de subverter o sistema a partir do interior do mesmo. São obras que "não só identificam no passado causas para o que veio depois, mas também investigam o processo pelo qual, lentamente, essas causas começam a produzir seus efeitos."

UM ELOGIO À LOUCURA.

"Holocausto Brasileiro" foi eleito Melhor Livro-Reportagem do Ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (2013) e segundo melhor Livro-Reportagem no prêmio Jabuti (2014). Partindo da noção básica de que a literatura, assim como a arte em geral, não tem obrigação nenhuma e não serve a nenhum propósito específico a não ser que o autor deseje, faz-se necessário adiantar que a obra de Arbex tem intenção de denunciar o sistema psiquiátrico e todas as demais instituições brasileiras que corroboraram com o massacre, e resgatar a dignidade e a história não só dos sobreviventes, mas também dos milhares assassinados - como indigentes, anônimos, dejetos sociais.
Eliane Brum, jornalista e escritora brasileira, é a responsável pelo prefácio e prepara brevemente o leitor para o que está por vir.
Maior hospício do Brasil, situado na cidade mineira de Barbacena, o Colônia atravessou a maior parte do século XX e entre seus muros foram cruelmente dizimadas cerca de 60 mil pessoas. Cerca de 70% delas não tinham diagnóstico de doença mental: tratava-se de uma gente rechaçada pela sociedade pelos mais variados e frívolos motivos.

Eram epilépticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram crianças (BRUM, 2013, p.14).

Eram trazidos amontoados em trens, e muitos não sobreviviam à viagem. Ao chegarem, tinham raspadas suas cabeças, eram despidos e rebatizados pelos funcionários. Comiam ratos, bebiam urina ou esgoto, dormiam sobre o capim, eram eletrocutados, espancados e estuprados. As mulheres que lá chegavam grávidas ou que lá engravidavam, cobriam-se de fezes para afugentar quem tentasse tocá-las; entretanto, mal nasciam as crianças, eram roubadas do colo das mães. Nos períodos de maior lotação, morriam dezesseis pessoas por dia. Os cadáveres eram vendidos para faculdades de medicina e quando esse mercado declinou, os corpos foram corroídos em ácido diante dos pacientes.
Brum afirma que "...o genocídio [fora] cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, de funcionários e também da sociedade (...), pois nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a nossa omissão" (p.15). O Colônia abriu suas portas em 1903 e sua última cela só foi desativada em 1994, após a reforma psiquiátrica. Mas Arbex e Brum não são as únicas que acreditam que há descendentes do Colônia - e que essa realidade insalubre manicomial ainda perdura.
É repleto de fotografias do horror capturadas por Luiz Alfredo, fotógrafo da revista O Cruzeiro, numa reportagem intitulada "A Sucursal do Inferno", de 1961. Apesar da exposição, nenhuma medida foi tomada.
Logo no primeiro capítulo o leitor imerge nas estratégias estéticas e realistas de Arbex, e pouco parece haver distância entre o leitor e o objeto; a escritora usa de uma linguagem notavelmente poética, no interior das sequências narrativas, que não só descreve os acontecimentos como consegue gerar a impressão de que esse leitor é um participante suspenso nas paisagens, capaz de ver, ouvir e sentir. A técnica de Arbex é quase uma comunhão com o corpo sem órgãos e com o devir de Deleuze: as palavras não cumprem sua função primeira e instaurada de significante e significado, e a escrita delas é um devir outro que não apenas a escrita. Arbex deseja mais que apenas escrever.
A análise da jornalista é também sentimental e não é por isso que fica em débito com outras produções que desbravam o passado. Sua escrita não se basta de uma mera exposição de fatos histórico-sociais concatenados: muito se assemelha a um romance, contado de maneira íntima e detalhada, e há recorrência de elementos estilísticos, isotopias e figuras.
Pessoas consideradas "tristes", desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães solteiras, alcoolistas, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos de indesejados eram condenados pela teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social - e assim, o hospital atendia, sobretudo, a interesses políticos.
Na década de 60, existiam 5 mil pacientes em um local projetado apenas para 200. Para solucionar o problema da carência de leitos devido à superlotação, o chefe do Departamento de Assistência Neuropsiquiátrica de Minas Gerais sugeriu que as camas fossem substituídas por capim - alternativa logo adotada por outros hospitais psiquiátricos mineiros.
Assim como nos campos de concentração, os recém-chegados recebiam o "azulão", uniforme azul de brim (incapaz de mantê-los aquecidos) e eram encaminhados a setores específicos, inclusive os de trabalho forçado. Mais de 80% das mulheres eram tidas como indigentes, pois não podiam pagar pela internação. 
Tendo a psiquiatria se constituído tardiamente no país, apenas no século XIX, o Colônia carecia de clínicos e psiquiatras. O tratamento de choque e o uso de medicações nem sempre tinham finalidades terapêuticas, mas de contenção e intimidação; havia apenas dois comprimidos disponíveis na farmácia dos pavilhões. A comida era escassa e insossa, misturada à farinha de mandioca para render mais. Cada pavilhão contava com apenas dois funcionários para cuidar de mais de 200 pacientes, e a maioria dos contratados não tinha formação. Os pacientes eram acordados às 5 horas da manhã e levados ao pátio para que os pavilhões "estivessem em ordem para o próximo plantão", e só podiam retornar à noite, para dormir; os pacientes movimentavam-se juntos e ritmados, tentando minimizar o frio.
Toda espécie mais desumana de violação tinha, no Colônia, um lar. Os sobreviventes residem nos locais terapêuticos destinados a pessoas com longas internações que não têm possibilidade de retornar para as famílias e recebem auxílio-reabilitação psicossocial, sancionado no governo Lula.
Em 1916, quase metade da receita do hospital foi garantida pelo suor dos pacientes e pela venda dos alimentos que eles plantavam. O faturamento era garantido, ainda, pelo uso da mão de obra dos internos no conserto de vias públicas, limpeza de pastos, preparação de doces. 
Numa marcha diária, os pacientes vasculhavam os pavilhões em busca de cadáveres, recolhiam-nos e os transportavam, numa carroça de madeira com uma cruz vermelha pintada nas laterais. Iam em direção ao Cemitério da Paz, 8 mil metros quadrados abandonados, onde são mantidos os 60 mil mortos do Colônia. Seus túmulos vêm sendo depredados ao longo do tempo, o mato é alto e por entre as covas há preservativos e latas de alumínio usadas no consumo de crack. O cemitério foi construído junto ao hospital, já que os pacientes, considerados "doidos", assim como os negros, não eram enterrados juntos aos "normais".
A partir de 1960, a disponibilidade de cadáveres alimentou uma indústria de venda de corpos, e quase dois mil deles foram vendidos em apenas uma década. Nos meses de inverno, o faturamento dobrava - já que os doentes eram largados nos pátios, com as vestimentas molhadas, e deixados para morrer.
Dentro do hospital psiquiátrico infantil de Oliveira, crianças estupradas e torturadas não eram o bastante para fechar suas portas; isso só aconteceu em 1976, quando uma telha caiu sobre a cabeça do diretor. Trinta e três crianças foram encaminhadas para Barbacena, onde dividiriam espaço com adultos nus.
Ao invés de camas de capim, havia berços onde as crianças vegetavam, e nunca eram retiradas nem para tomar sol. Muitas morriam ali dentro mesmo, e eram encontradas já enrijecidas. 
Como não recebiam estímulos, as crianças não aprenderam a comer sozinhas, usar o banheiro, tampouco falar.
Em 1979, Franco Basaglia, psiquiatra italiano pioneiro na luta antimanicomial, esteve no Brasil e conheceu o Colônia. Chocado, Basaglia acionou a imprensa. "Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar algum do mundo, presenciei uma tragédia como esta", disse. No mesmo ano, Hiram Firmino, jornalista do Estado de Minas, publicou a série de reportagens "Os porões da loucura", conseguindo não só transpor os muros do hospital, como despertar na sociedade a necessidade de mobilização. Helvécio Ratton, estudante de psicologia iniciando a carreira de cineasta, é o responsável pelo documentário que atuou como golpe de misericórdia no então sistema psiquiátrico brasileiro. "Em nome da razão" foi elaborado de forma improvisada, com equipamentos pagos do próprio bolso de Ratton, e reunião de uma equipe voluntária. O curta não possui trilha sonora - exatamente para que "os sons do desespero, captados no interior da unidade, ajudassem a contar a história" (p.219).

 POR FINS

O fato existe no mundo, até que seja interpretado e passe a existir para alguém. Nenhum indivíduo é capaz de apreender a verdade de forma imparcial e independente, pois seu entendimento é mediado por sua subjetividade. O próprio narrar já compreende ficção. 
Nunca captamos a coisa em si, instantânea e inevitavelmente depreendemos tudo através de nossas experiências, crenças e desejos. É assim com a lembrança e mais ainda com a escrita. 
Porque ainda que se trate de um registro do passado histórico a partir de x perspectiva, a transposição para a escrita acarreta uma série de procedimentos narrativos que atuam como uma linguagem interna do contador de histórias.
Essa contestação do indivíduo unificado e coerente se vincula a um questionamento mais geral sobre qualquer sistema homogêneo - a continuidade e o fechamento históricos e narrativos são contestados a partir de dentro. A teleologia das formas de arte é transformada.
É assim que surge o "marginal" (perspectiva descentralizada) e o reconhecimento de que nossa cultura não é masculina, branca, heterossexual, classe média, ocidental - o que temos são culturas, em que o marginal não é o novo centro, pois as certezas são posicionais e todo estabelecimento de padrão é tirano e limitante.
Surgem os textos que incitam essa "ruptura" do questionamento sobre o conceito de arte; são textos que não pertencem exclusivamente a esse ou aquele discurso, mas a ambos, reflexiva e contraditoriamente - tal como se faz a metaficção.
O compromisso de Arbex é, antes de tudo, humano. E a metaficção historiográfica compreende que não é mais viável aquela arcaica ideia de que o historiador deve purificar sua prosa de imagens e metáforas para lavrar com fidelidade o que realmente houve. Cada capítulo se assemelha mais à crônicas ou contos nessa mescla de gêneros que tem intenção de narrar aguçando a criticidade, e os personagens são diretamente evocados, com descrições comportamentais e emocionais.
O capítulo V se inicia com um breve diálogo que diz muito sobre nosso tratamento psiquiátrico até os dias atuais:

"Quando o superintendente do serviço de psiquiatria da Fundação Educacional de Assistência Psiquiátrica (...) pisou no terreno do Hospital de Neuropsiquiatria Infantil, localizado no município de Oliveira, no oeste de Minas, tomou um susto. Logo ao chegar ao hospital do Estado, em 1971, avistou um menino ‘crucificado’. Apesar do sol inclemente, o garoto, que aparentava idade inferior a dez anos, estava deitado no chão, com os braços abertos e amarrados, e o rosto queimado pela exposição ao calor de quase trinta graus. Formou-se para a freira responsável pelo setor, esperando alguma explicação.
- Por que esse menino está amarrado nesse salão?
- Se soltar, ele arranca os olhos das outras crianças. Tem mania - respondeu a mulher, com naturalidade.
- E quantos olhos ele já arrancou?
- Nenhum - disse a religiosa." (p.87)

Nossos sistema psiquiátrico na verdade é carcerário, e abusa do silenciamento e da violência para lidar com os que a ele recorrem. Interna compulsoriamente, privando o indivíduo não só da liberdade como de qualquer chance de estabilidade emocional - pois esse setor é especialmente degradante. Não há tratamento ambulatorial, comunitário, aberto. A intenção não é tratar a enfermidade para que essa pessoa possa ser reintegrada à sociedade, mas isolá-la para perpetuar uma suposta limpeza social. As teorias podem ser outras, assim como as leis que as acompanham, mas a lógica ainda é manicomial - os pacientes ainda são os mesmos "doidos", desassistidos apenas de forma mais discreta. A cultura dos maus tratos perdura.
Esse ensaio é apenas um breve apanhado sobre um período da nossa história que, além de não poder ser esquecido, precisa ser conhecido com todo seu horror e atualidade. A habilidade literária de Arbex facilita e atua como mediadora no entendimento desse genocídio em solo mineiro - com a conivência das autoridades que deveriam justamente proteger essas pessoas. Organizando-se em torno da questão filosófica de base "o que é a verdade?" o livro e o ensaio sobre ele evocam os lázaros omitidos, anônimos e, sobretudo, inocentes.

 BIBLIOGRAFIA 

Arbex, Daniela. Holocausto Brasileiro - 1. ed. - São Paulo: Geração Editorial, 2013.

Deleuze, Gilles. “La Litérature et la Vie”, Critique et Clinique, Minuit, Paris, 1993, 
pp. 11-17.

Hutcheon, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. 1945. São paulo: Imago, 1991. 

Júnior, José Leão de Alencar. História com ficção: a confecção narrativa da história e da literatura. Rev. de Letras - vol. 18 - n° 1 - jan/jun 1996.

Weinhardt, Marilene. Considerações sobre o romance histórico. Letras, Curitiba, n.43, p. 11-23, 1994. Editora da UFPR.

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