Solomon falou sobre esperar -
Ele sabia que mesmo essa ciclotimia tirana é capaz de se ausentar, distraída entre seus pares. E então você quase, apenas quase, pode fingir ser normal e aproveitar um segundo fazendo parte da vida
Mas a calma, principalmente, também passa.
Então cá estou eu, devorando toda porcaria enlatada que encontro nos armários porque não consigo parar minha mandíbula. E vou enfiando comida até que pareça reter um estoque de inverno.
Sendo lembrada contínua e incessantemente “você vai ficar gorda outra vez” como quando eu tomava lítio e depakote e a dose cavalar de quetiapina à noite me cobrava por doce e doce e doce
Eu quero atravessar a parede com minha cabeça
E atravessar minha cabeça com essa parede
E tentar assim na brutalidade consertar essa maquinaria vagabunda e defeituosa
prenhe de vergonhas. Vergonha do escândalo da ansiedade, das paixões inflamadas e randômicas, dispersas e súbitas, vergonha da anatomia da desculpa, vergonha dos surtos
E de como eu pareço esse primata infecto durante eles
E não admito agora que nada me toque -
Nem mesmo as mãos que eu mais amo e quero que tomem pra si em concha esse corpo
EU NÃO ADMITO AGORA NADA DESSE CORPO
E meus seios e minhas coxas e minha bunda me enjoam e eu queria fugir de tudo que sua e pende
Eu queria o divórcio dessa carne-lápide
Eu não consigo nem ser triscada
ou ter essas tantas léguas desvirginadas por um bater pertinho e borboletado de cílios úmidos
Assustados comigo
Diante do meu monstro transitório
Então eu escrevo e busco
Rastreio minha origem minha gênese minha epigenética
Detecto minhas ferrugens prematuras
Caçando uma subjetividade que só pensei vislumbrar por aí afora
Implorando ao cotidiano que me confira uma minúcia de intimidade comigo mesma
Pra que assim eu possa me apoiar no que li e soube e me disseram ser eu
Essa eu longe de mim
Alheia
Tonta
Disparatada
Como uma panaceia pro meu vácuo hermético
Assistindo minha mãe única família restante e possível cada dia mais abatida e decepcionada
desistindo de mim
num tom mais enérgico e hostil do que aquele que ela costumava ter aos meus 9 anos quando eu não me preocupava em ser normal e tinha certeza de um futuro brilhante
De quando saí do interior carregando minha vó morta e todas as coisas que me faltaram descobrir sobre ela e agora ela está cimentada naquela caixa azul e sem graça
sem graça nenhuma
Agora minha mãe têm a pressão descontrolada e mesmo no útero eu fui culpada disso
E a qualquer momento A QUALQUER MOMENTO
esse coágulo no cérebro doce dela explode e todo aquele sangue -
E o corpo dela amolecendo
E então os últimos hormônios artificiais que me mantêm derretendo
Implorando pelo 17 andar do prédio que eu escolhi como plataforma do oposto do voo
Lembrarão de mim como um pássaro azul aleijado
E todos os compromissos que me parecem puramente burocráticos durante os dias de dia agora são desafios de pisar em brasa
brasa essa dos meus órgãos incendiários
todos eles a favor dessas moléculas de quebras matriciais identificadas
mas talvez só corrigidas bem depois da minha morte
e da morte dos tempos que pertenceriam aos filhos que eu gostaria de ter
mas não posso pois minha desgraça é hereditária e meu sangue um veneno
roubando o direito das minhas crias de formarem a própria família que nunca tive e me acalentava pensar que teria
então por isso e um bocado mais apenas falto sem avisos prévios porque isso significaria me explicar sobre minha incompetência mental
minha inferioridade
e assim perco as chances de me inserir em rotinas normais que ocupem minha cabeça e minhas mãos com mais do que minha própria derrota
Porque sobretudo eu não confio em mim quando assim
Todos os indícios eu tenho de desabar em público e quem entenderia?
não é físico e não pode ser visto e contido
e muito menos seria acalentado
e eu ficaria a esmo sem teto perambulando por avenidas muito atentas aos meus olhos esbugalhados e lotados
O que me sobra são os ansiolíticos e os remédios pra dormir cujo sono nunca me chega pleno
E tudo aquilo que eu demonstro ser é coagido é moldado pela química externa
sou rarefeita como pessoa
montada por peças maiores que eu
mas que escondo na palma das mãos
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