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Sobre o splitting (cisão/pensamento dicotômico/clivagem) no borderline



A maioria dos sintomas do TPB não são “novidade” ou sentimentos que se restringem aos portadores.


São pensamentos e emoções comuns, que acometem a todos, mas que em razão do transtorno, são extrapolados a nível patológico, caracterizando padrões que prejudicam a vida.


Julgamentos que oscilam e alternância de concepções são características humanas: nada mais ordinário que mudar de opinião.


Acontece que para os portadores de TPB, por ser um SINTOMA e não estar sujeito à vontade e opção, isso acontece com muito mais frequência e intensidade.


É a esse padrão de pensamento dicotômico e maniqueísta, em geral antagônico, que chamamos de “splitting”. Em tradução livre quer dizer “divisão, ruptura, rachadura”. Nós temos a capacidade de pensar em meio termos, possibilidades e transições prejudicada. E isso, friso como sempre, não depende de uma simples escolha; ser incapaz (ao menos momentaneamente, já que a terapia elabora estratégias cognitivas e comportamentais) de avaliar as situações de vários ângulos, considerando os diversos aspectos, acarreta um sofrimento emocional imenso nas relações com os outros e principalmente consigo mesmo.


O núcleo do transtorno borderline são as emoções amplificadas e urgentes, que geram dificuldade de interpretar a si mesmo e no geral. O prejuízo social e sentimental sobre as relações nasce daí, e não do fato consumado de que sejamos deliberadamente impossíveis de lidar.


Nossa capacidade interpretativa e de julgamento é precária. Há evidências neurológicas disso (para aqueles que precisam ver pra crer). Existem inúmeros testes envolvendo essa questão, posso postar sobre eles depois. Exemplos: estudos que submeteram portadores a expressões faciais negativas provaram que nosso cérebro é muito mais atento e suscetível a elas (contextualizem, a coisa não é tão óbvia), em outros estudos semânticos envolvendo também termos que remetem a julgamento, reprovação, abandono e etc nosso cérebro novamente reagiu de forma peculiar. Ou seja, o modo como encaramos os gatilhos é intenso demais, e sem tratamento, irrefreável. Isso explica o comportamento sempre desconfiado que muitas vezes desemboca em paranoia, buscando indícios de iminência de abandono ou desafeto.


Uma ação comum desse tal splitting ou clivagem é a opacidade de julgamento sobre situações e pessoas (em geral isso não se desencadeia pura e simples, mas sim de forma acumuladora); os problemas cotidianos podem causar um momentâneo (porém não menos grave) estado depressivo (lembrar que isso não nasce do nada, a comorbidade mais comum do TPB é a depressão), por subitamente engatilhar a ideia de que todos os problemas superam os momentos de estabilidade e calma que temos, que eles são insolucionáveis e que nossa vida é inteira miserável e uma desgraça pros que conosco convivem. Uma discussão normal, que acontece em toda convivência, se transveste de fatalidade, e pensamentos auto depreciativos sobre não sermos de fato amados e sermos um peso insuportável se iniciam numa espiral que, se não interrompida, causam também um estado extremamente depressivo. também por esse julgamento comprometido é que a ideia sobre as pessoas costuma oscilar entre antagonismos: ela pode ser magnífica (lembrar das emoções extremas) ou tóxica e perigosa. Nossa interpretação é ancorada no medo do abandono, e a ansiedade se prova por meio de uma sensação eterna de iminência do mesmo. Não deixa de ser, deturpado ou não, um mecanismo de defesa. E esse padrão de pensamento nada tem a ver com infantilidade ou falta de bom senso, e sim com uma sintomática complexa. Somente com o tratamento medicamentoso e terapêutico, e principalmente o incessante auto trabalho fora dos consultórios, é que nós podemos pensar menos tragicamente, em termos de outras possibilidades.


As crises são, comparadas a outros transtornos, mais rápidas. E quando nós novamente recuperamos o controle, o efeito do splitting não acaba, e se transforma numa culpa esmagadora, que nos leva em geral ao auto ódio.


O splitting é chamado de “pensamento preto-e-branco”, pela figura de não conseguirmos tanto quanto o “normal” pensarmos em nuances cinzas.


Aos portadores, tentem sempre avaliar se, quando as crises atacam, isso não se alicerça nessa divisão. Analisar o sintoma que desencadeia a crise é necessário pra combatê-la, porque prova que tem muito menos a ver com o que acontece ou com sua culpa.

Àqueles que convivem com portadores, pensem nisso antes de nos julgar como simplesmente exagerados e dramáticos. 


O splitting dói muito. Mina nossas relações. Afasta àqueles que não entendem. Destroem nossa esperança de receber afetos sinceros e estáveis. E criam feridas abertas que nunca cessam de sangrar - inclusive sobre os outros.


Uma observação:


O splitting em mim desenvolveu uma ideia de que eu sou um peso, um fardo e que em geral as pessoas não merecem conviver comigo. Principalmente depois de muitas situações abusivas em que eu fui agredida psico e fisicamente.


Eu passei a diminuir o contato com o mundo externo e já cheguei a passar 4 meses sem falar com quase ninguém, mesmo indo à faculdade todos os dias. Eu passava dias sem falar com ninguém, e lembro que uma vez notei minha voz rouca pela falta de uso. Isso tanto pela tristeza quanto por me achar uma merda.


Eu me isolei demais. E o isolamento é tanto o primeiro passo quanto a consequência da depressão. Desde o primeiro semestre de 2016 eu vinha extremamente deprimida, e apenas no meio de 2019 foi que comecei a melhorar. Essa é a fase em que mais interajo e mais me encontro estável, mas ainda to me acostumando.


Ainda assim, eu tenho medo de manter e construir relações, porque a sensação de que inevitavelmente vou perder pessoas a quem muito me afeiçoei nunca, nunca me deixa.  As vezes eu quero muito conversar com as pessoas, mas algo em mim fica dizendo: você vai perdê-las de qualquer maneira, porque você é uma péssima pessoa. 

O ciclo do auto ódio é uma das partes mais difíceis de superar.


Então as vezes eu me mantenho distante por sentir que é um favor que faço aos outros. E expor coisas tão, mas tão pessoais aqui foi o modo que encontrei de tentar, desesperadamente, me comunicar e fugir desse isolamento. 


O preconceito social sobre quem tem borderline é muito, muito cruel. Nós somos taxados de manipuladores, ciumentos, assassinos. Muitas vezes por pessoas que conviveram conosco e disseram nos amar; essas pessoas sabem exatamente o que nos fere e usam isso contra. Eu não julgo quem faz isso porque acontece em toda relação. As pessoas se machucam mutuamente, não é bom, mas é natural. Acontece que conosco a coisa é muito dolorosa. Impede que falemos sobre a realidade do transtorno e do prejuízo social que ele traz.

Então eu falo aqui. Ainda que muitas vezes eu não consiga achar as palavras pra contar pras poucas pessoas que ainda são próximas.


Sempre que vou postar sobre qualquer assunto de cunho mental aqui, eu dou uma boa pesquisada. Principalmente em artigos científicos, porque são mais confiáveis, mas de vez em quando eu acesso links comuns. E em uma dessas pesquisas encontrei a página https://m.facebook.com/pages/category/Education/V%C3%ADtimas-de-Borderlines-188566598458671/?locale2=pt_BR.


Eu rolei rapidamente a página, porque não quis ficar pior ainda com isso.

Mas notei que muitas das postagens trazem notícias sobre crimes que em nenhum momento mencionam que o agressor tinha TPB, mas apenas pelo crime ser passional ou etc ele é tido como sendo praticado por portadores do borderline.


Segundo os administradores e seguidores, nós somos todos agressores e abusadores que fazem vítimas.


Imaginem o que é pra alguém que já sofre diariamente e há anos com esses sintomas e com o isolamento ler que as pessoas consideram um crime a convivência conosco.


E pros ignorantes à realidade do transtorno, e que não se põem a pesquisar, essa é toda a informação que detém sobre TPB.


Páginas como essa são um desserviço ao conhecimento público NECESSÁRIO sobre o borderline, que já é tão marginalizado e estereotipado. No mínimo mereciam um processo, mas principalmente uma reeducação. Imaginem se a página fosse esquizofrenia, que já é um transtorno mental mais antigo e por isso mais conhecido (ainda que também sofra demais com a ridicularização). “Vítimas da convivência com o esquizofrênico.”


É sobre isso que falo quando digo que nós somos responsabilizados e maltratados por termos uma doença.

E por isso nos culpamos. E nos culpamos. E nos odiamos.

E 10% dos portadores suicidam.


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