Quando comecei a pesquisar sobre, aos 17, eu fiquei apavorada. Principalmente depois de perguntar à minha então psiquiatra se eu poderia ter o transtorno, porque ela disse algo como “você não tem. pacientes borderline são praticamente impossíveis de tratar. eles não levam à frente terapia; eu tive uma única paciente assim e ela desistiu na segunda consulta. também não há medicação própria”.
numa primeira busca o estigma e as vinculações taxativas são tudo que você encontra, o que me leva a pensar que talvez essa literatura seja tão numerosa quanto a que se propõe a analisar profissionalmente os aspectos e razões reais do comportamento tipicamente borderline, e, infelizmente, mais acessível.
e como todo preconceito, há a retroalimentação - nasce da discriminação e a propaga.
essas “pesquisas” deixam nas entrelinhas que os portadores de TPB são pessoas inerentemente ruins. usando lógica básica, como você pode ser responsável pelos seus próprios sintomas, e como possuir uma doença te transforma em alguém reprovável?
pensando nisso eu resolvi esclarecer alguns desses pontos - (eu não criei os argumentos como defesa ou etc, o embasamento teórico está inteirinho no meu perfil).
a primeira característica listada pelo DSM-V é “Esforços desesperados para evitar abandono real ou imaginário”; o TPB compreende sensação constante de vazio, que se nutre também da depressão que costuma ser a comorbidade mais frequente. a condição neurológica + de vulnerabilidade social que cerca o TPB (famílias desajustadas, abuso físico ou sexual e o padrão de abandono por parte de cuidadores e de relações em geral) é responsável pelo trauma do abandono e o pavor de se ver sozinho. esse medo do self nasce também da fragmentação identitária ou total inconsistência da mesma, que se manifesta em crises de despersonalização e o auto abuso através do esforço para ser aceito.
estar por si mesmo, confortável e independente, compreende muito mais que vontade: a emancipação se alicerça na segurança, no padrão aprendido e na completa noção do “eu”.
o borderline tem comprometida sua identidade e se pauta constantemente no auto ódio e na autosabotagem.
essas agudas depreciação e desprezo por si mesmo desenvolve a ideia de se é medíocre, ridículo e sem valor - improvável de ser digno do amor alheio. daí vem a impotência de encontrar parceiros saudáveis, a submissão por acreditar merecer maus tratos e a permanência em relações insalubres pela crença da inevitabilidade de ficar sozinho e as ideias de “isso é o melhor que posso conseguir” ou “é um favor que ele ou ela me faz em estar com alguém como eu”, e por fim a percepção por parte desses parceiros e o abuso (proposital ou não) direcionado ao portador.
É dessa série de fatores que advém não apenas a dependência emocional (e não de uma súbita e consciente escolha ou de uma simples obsessão) e o que é erroneamente classificado como “manipulação”. O que acontece na realidade é que o desespero e o sofrimento pelos traumas anteriores, pelos sentimentos demasiadamente intensos e ambíguos (outro padrão nuclear) e pelo medo do abandono se manifestam, não propositalmente, em atitudes apelativas que buscam compreensão de um estado que os outros além de não entenderem, abominam. Trata-se de um esforço por direitos básicos de espaço e voz. o amor e a proteção que um portador recebe na sua trajetória é muito, muito pouco em comparação à quantidade de cuidados que outros recebem. é exatamente pela carência e pela noção inconsistente do que é de fato o amor que ocorre esse imploro por afeto e companhia - custe a dor infligida a si próprio que custar. então SIM, automutilação, ameaças e tentativas de suicídio e o eterno imploro aos que dizem nos “amar” e eleitos inconscientemente como cuidador/família existem. mas não através de intenções premeditadas e vontade simples, mas de dor real ainda que por situações imaginárias.
lembrem-se que a paranoia, apesar de imaginária, é legítima para aquele que a desenvolve. o sofrimento por medos “irreais” é verdadeiro.
vocês já devem ter ouvido sobre Ana Beatriz Barbosa e seus livros sobre diversos transtornos; autora de Mentes Perigosas: o Psicopata mora ao lado (2008), Mentes Inquietas: TDAH, desatenção, hiperatividade e impulsividade (2009), Mentes Depressivas: as três dimensões da doença do século (2017), Mentes Ansiosas: medo e ansiedade além dos limites (2011), Bullying: Mentes perigosas nas escolas (2009), Mentes Consumistas: do consumismo à compulsão por compras (2014), entre outros. Curiosamente, Barbosa escreveu sobre borderline. Corações Descontrolados: ciúmes, raiva e impulsividade - o jeito borderline de ser, de 2012. Por favor entendam que não duvido da capacidade e inteligência de Barbosa como psiquiatra renomada que é, mesmo porque li unicamente essa obra. O que quero dizer é que, talvez, por estratégia capitalista, a autora se fixou em opiniões do senso comum que se baseiam em preconceitos sutis, decreto na intenção de ser didática. O problema é realmente que a intenção fantástica de didatismo nasceu não da cuidadosa investigação para traduzir à linguagem comum a literatura técnica sobre o transtorno. Numa análise básica, observem que enquanto a maioria dos livros de Barbosa sobre transtornos mentais introduz o conceito de “mente”, o que impõe sobre o preconceito enraizado a indicação de que se trata de uma doença que acomete primeiramente a cabeça. No caso do borderline, a autora inicia com um título impactante e passional estilo novela mexicana, focando no ciúmes e na raiva como características principais, e indicando que o TPB trata-se de um JEITO, e não uma condição neurológica e comportamental. Em nenhum momento há a menção de que é um transtorno e não uma vontade. E, pasmem: a capa é um salto vermelho pisando e estilhaçando um porta retrato decerto com a foto de um casal. O visual, além de na maioria dos casos conquistar mais a atenção, é um texto que depende de interpretações íntimas sobre cada um dos seus elementos durante a leitura; o efeito que essa imagem somada a esse título geram é devastador. O livro é interessantíssimo quanto a trazer muitos depoimentos de pacientes e algumas informações básicas caracterizando a doença. Mas, para mim, compromete a visão holística do TPB por meio da responsabilização, ainda que vez ou outra Barbosa deixe nas entrelinhas que não se trata de culpa. É preciso um conhecimento prévio para desenvolver aguçado senso crítico sobre as afirmações sobre TPB para não acreditar que somos, novamente, inerentemente descontrolados, tóxicos e perigosos.
O ciúme que contextualiza o TPB não se constrói sobre uma decisão autônoma - assim como todo ciúme, acredito eu; o ciúme é filho do trauma, da insegurança e da baixa auto estima, e na maioria das vezes é muito mais doloroso para quem o sente do que para o objeto direcionado. As sensações que caracterizam o ciúme variam entre a desvalorização de si mesmo, a desconfiança aprendida e, novamente, o temor do abandono. É um sofrimento geralmente secreto, já que a maioria teme ser taxado de louco. Os fatores de construção social do gênero não apenas permeiam, como definem o ciúme: a dependência desse homem (lembrem que a estatística do TPB é de que 75% dos seus portadores são mulheres) e a rivalidade feminina que gera comparação e insegurança sobre si mesma são heranças patriarcais que se abatem sobre a maioria das mulheres, em diferentes intensidades. Depreende-se então que, não é que o TPB apresente esses sintomas aleatoriamente, e sim INTENSIFIQUE o que já existe.
O TPB em geral fortalece patologicamente comportamentos já existentes extrapolando ao nível de transformá-los em sintomas.
Uma das características constantemente listadas sobre o TPB é a promiscuidade - e eu acredito ser uma das mais discriminatórias e absurdas. A noção de promiscuidade em geral se abate sobre MULHERES, culpabilizadas por suas manifestações sexuais e reprimidas desde o nascimento. Phyllis Chesler é autora da obra magnífica Women and Madness (1972), em que faz um apanhado da história e relação das mulheres com a “loucura”, e posteriormente questiona suas razões e seus critérios de diagnóstico. Um dos pontos mais reiterados por Chesler é a promiscuidade. O mito da puta nasce da condenação da sexualidade feminina que estrutura o patriarcado. E as putas são taxadas não apenas como mulheres indignas, mas também como loucas. Entretanto é preciso considerar não apenas a libido natural e sua manifestação livre, mas principalmente o equívoco que compreende a ideia de LIBERDADE SEXUAL. é preciso entender que a liberdade sexual feminina NÃO EXISTE dentro do sistema patriarcal e capitalista. O que existem são tentativas e cooptação dessa utopia pelo dinheiro e pelo machismo estrutural. Somos levadas a crer num conceito de liberdade que continua beneficiando o desejo masculino, como pornografia violenta, prostituição e a noção de “ser vadia” à vontade (quanto na verdade essa noção não significa vadiagem e sim emancipação). Essa “liberdade” é na verdade uma manipulação do nosso próprio poder de escolha e da necessidade ou não de dizer NÃO.
Da carência, do medo e da urgência por afeto, combinados com negligência própria e familiar, esforços para se encaixar no que é tido como “normal” e desespero por aceitação alheia é que se origina o comportamento sexual irresponsável e desregrado - e isso não se pauta em ideias conservadoras de que o corpo é um templo e o sexo é sagrado, mas no auto abuso cometido em nome dessa busca extrema por companhia e conforto. Existem estudos, por exemplo, que relacionam as causas da aids com a auto negligência advinda do estado depressivo. Assim como vícios, o sexo irresponsável pode ser tentativa inconsciente de fuga e indicativa de faltas emocionais.
Isso não significa que comportamento sexual superior à média e relações com múltiplos parceiros ou mesmo a poligamia se construam a partir disso. O que pontuo aqui é a consequência do sintoma mencionado, a busca excessiva por afeto, e o desenvolver de TODO abuso: a sensação de desamparo, culpa, dor e o trauma posterior.
A caracterização do TPB de décadas atrás, mas que predomina até hoje, de estado fronteiriço entre a neurose e a psicose (borderline significa fronteira) é popularizada como “limite entre a loucura e a razão”. Além de deixar implícito que esses limites podem ser escolhidos dependendo da situação, o uso do termo “loucura” infelizmente ainda gera uma intensa e dolorosa discriminação para com aqueles que apresentam algum transtorno. “Loucura” é uma ideia que pesa e nos é jogada como xingamento desde o aparecimento dos sintomas. Além disso o termo costuma designar principalmente os estados de delírio e alucinação da psicose aguda. Existe um estereótipo dos neuroatípicos que não apenas é ofensivo como brutal.
Nenhum, repito, nenhum comportamento auto destrutivo pode advir apenas do livre arbítrio. Quem, em sã consciência, empreenderia tantos esforços em tentativas de se ferir ou se matar por simples desejo?
A carência, em seu significado mais social, desenvolve a necessidade irreprimível de atenção - porque a maioria daqueles que possuem TPB sofrem não apenas do vazio crônico, mas de negligência emocional. A autolesão vem da culpa e/ou da necessidade imediata de externalizar a dor e do alívio emocional. Pela intensa estimulação da amígdala, a reatividade à situações externas parece, ao espectador, desmedida e exagerada - mas, internamente, é compatível com a dimensão do sofrimento. O medo e a ansiedade comprometem essencialmente a noção de TEMPO e a esperança é a primeira que se vai. Naquele instante, a solidão parece inevitável e a desvalorização por parte do outro que é intensamente amado e por parte de si mesmo é absurda. É aí que o portador se fere sintomaticamente - e isso não envolve culpa total nem do borderline nem do parceiro. Há gatilhos, mas não acredito que haja uma incontestável culpa de qualquer dos envolvidos.
Enfim, não queria que esses apontamentos básicos sobre os estigmas que permeiam o TPB ficasse tão longo e entediante, mas como portadora e em nome daqueles que ainda não entendem os sintomas ou foram vítimas de negligência teórica e profissional eu me sinto no dever e no direito de expor a realidade do transtorno.
Comentários
Postar um comentário