“Hiper-reatividade”.
É esse o termo que usam pra falar do que, na prática, nunca se define pra mim.
O que mutila num rompante.
Um instante e a gravidade me escapa; o mais básico, o banal, o trivial some, num sopro. O humor, esse bordado delicado que vou fiando sem jeito, se retorce e enrola, perde as pontas, vira nós, corto a peça toda, não quero continuar. Muito trabalho. Não sei fazer isso. Não quero mais tentar.
Dói.
As vezes, uma palavra que ressoa mal. Em tom ou ambiguidade. Falta de atenção corriqueira. A rotina que consome. Meus focos são egoístas e eu não sei olhar pluralmente.
Não sei sobre o desinteresse, a pouca importância, o depois.
E isso não tem nada a ver com romantismo.
Isso é sobre doença.
Ler e tentar abordar objetivamente é a forma que encontro de me distanciar um pouco da agonia intermitente e transformar em teoria. Mas entre a “hiper-reatividade” que consta no artigo e as minhas conclusões paranóicas dos últimos dois minutos sobre estar a ponto de ser abandonada e traída outra vez porque sou uma besta insuficiente e repulsiva - não parece haver correspondência.
É apenas uma terminologia fria e imóvel sobre minha vergonha, meu fracasso, minha sina.
Parte de não crer em divindades ou no sobrenatural me permite não considerar planos, caminhos ou destinos pré-concebidos. O que significa que, sob limitações econômicas e sociais, eu poderia fazer o que quisesse.
E acredito que há pessoas que tenham esse privilégio.
Mas eu não.
Ao menos até agora, depois de mais de uma década, não me parecem haver perspectivas ou esperanças muito elaboradas sobre um dia eu me sentir no controle e poder experimentar o que dizem sobre a vontade.
Em tempo integral, inclusive agora, embora eu esteja mais calma que meu normal e nada significante tenha acontecido, eu me vejo um fantoche. As reações desmedidas movem os membros e emitem sons e arranham o ar e eu mal percebo enquanto acontece; fico encolhida numa vértebra, encarcerada numa amígdala de vidro, tentando guardar meus pulsos, pedir desculpas, praticar o que eles dizem sobre pensamento e comportamento.
Mas - esse extremo me chega em questão de segundos, o tempo parece estupidamente aleijado, e toda a raiva e uma variação anônima de dor se projetam imediatas, socando meus músculos, prontas pra sair. O corpo todo sacode num súbito calor, uma fisgada fria me aparece desde o tórax às coxas, uma energia incomum palpita sempre me sussurrando sem língua ordens de violência.
Eu pareço subitamente mais burra. De acreditar que podia me misturar entre os “normais” sem ter esses reflexos percebidos. De cogitar que hoje seria diferente e eu estaria mesmo aprendendo a frear isso.
Mas é súbito.
E não pede permissão ou licença.
Não importa o quão devastada e constrangida eu esteja - esse isso não conhece limites, respeito, sensatez.
E eu nunca encontro os meios suficientes pra pedir perdão pelo mau jeito ou pausar um pouco essa culpa.
Porque talvez, só talvez... se eu tentasse um pouco mais, se eu não fosse tão dispersa e passional, ou tão imatura e inconsequente.
E todas as pessoas com quem eu topei e quis ser apagada - pra que ninguém jamais lembrasse do quão ridícula eu sou quando bêbada e sintomática. E todas as noites intermináveis que eu mesma quis destruir, me custassem quantos neurônios fossem - pra que todas as mãos imundas me fugissem dos olhos, mesmos anos depois. Agora eu sei que meu cérebro é esquisito a ponto de ter áreas mais irrigadas à mera menção de experiências ruins. Mas saber como acontece, ou porquê, não alivia o quê.
Todo o tempo que eu perdi sentindo, e apenas sentindo, e reagindo, e ganindo, animalizada me julgando nada mais que imbecil.
Saber que não é apenas isso não exclui que de fato eu sou. Mais até do que pensava.
As distorções românticas são uma praga moderna, e quando eu descrevo como são as emoções amplificadas e a inquebrável dependência que tenho de algumas pessoas costumam achar apenas intenso, ingênuo, pueril. Mas eu nunca tive a oportunidade de ver e interpretar as coisas devagar e sobriamente. Minhas conclusões são sempre limitadas, como um pensamento decepado, apressadas e apavoradas, e se atropelam e debatem buscando a saída de emergência, a válvula de escape. E nessa rigidez cognitiva o que me aparece, piscando em neon tamanho 72 é: enfie um cano gelado no céu da boca e dispare.
no espelho também não há fuga; o corpo todo é um lugar de ódio e descarrego, terminantemente marcado. Os rasgos no pulso de quando eu entendi que me machucar não significava tentar suicídio, e parecia uma saída menos prejudicial do que tomar diazepam. A cicatriz esbranquiçada na minha testa de quando eu odiei minha cara a ponto de abrir uma fenda ali. Os pontos sarados no tornozelo da noite em que procurei cortar uma veia escondida, sem alarde, sem incomodar. As falhas no cabelo de quando arrancava obsessiva, e de agora, quando os remédios se mostram fortes demais. Os quilos todos que eu ganhei, tendo de me acostumar com um novo corpo que não escolhi. Descobrir o movimento, sempre cansado e despretensioso. As olheiras que eu disfarço com camadas e camadas de maquiagem pra que pensem que eu ando sim, dormindo melhor. Os dentes doloridos de ranger durante o sono. O pulso que estala depois de uma luxação socando uma árvore, o pescoço que vez ou outra inflama depois de eu me jogar de um carro em movimento pra fugir de uma discussão.
“Por que você é assim? Por que faz essas coisas?”
E quando eu não soube responder, nenhum sangue na avenida seria preço alto demais pra não ter de admitir.
Eu não sei. Eu também não sei sobre isso.
Eu sei que parece poético dizer que somos incógnitas e que não entendemos a nós mesmos e temos sensações fortíssimas e descontroladas, e mesmo que parece morbidamente interessante ser triste mas - é disso que falo quando digo que até então nenhuma língua me foi suficiente. Porque eu não sei explicar que não falo disso, definitivamente eu nem toco nesse assunto, mas falo de algo muito mais rastejante e grotesco, coisa daquelas que ninguém quer saber que existe (e não deveria mesmo). Então, nunca foi sobre poesia.
Eu passei a contornar blocos pra não esbarrar com conhecidos, evitar aglomerações pra não ser reconhecida, sumir da rotina dos que comigo conviviam, passar despercebida pelos que sou apresentada agora. Porque são muitos lutos, e eles se sucedem incessantemente, independente do que eu me esforce pra ser ou fazer; e se acumulam, se enroscam, impedem o ar e prendem a circulação - mas não matam. Não matam.
E eu não sei se a compreensão de agora seria capaz de lidar com as antigas sensações mortificadoras de solidão e culpa, e não quero correr o risco de quebrar outra vez.
Delírio e dissociação são partes dos dias comuns. Os reflexos distorcidos, superlativos - como num espelho côncavo - parecem a única compreensão que eu conheço e tenho acesso. E é cansativo, mesmo fisicamente - a carne sobrevive amortecida, estafada, triste. Triste, sim. Por nunca ter conhecido a escolha, e por ter acreditado até pouco tempo atrás que eu podia contornar esses impulsos se fosse boa e forte o bastante.
Enquanto isso eu continuo alvejada por qualquer causa considerada irrelevante. Mas algo no ninho do meu cérebro não entende isso ou aquilo como irrelevâncias; tudo é sinal, aviso prévio e indício de que algo logo estará insuportavelmente errado; e que de alguma forma eu terei provocado isso também.
Eu gostaria de nunca ter sido uma experiência na vida de ninguém.
Mas gostaria disso apenas porque sei que não há paciência e interesse que se mantenham intactos ou ao menos motivados depois de me conhecer realmente. Depois que eu contar tudo ou quase tudo, na maior parte das vezes sem posse alguma de palavra.
Não há coração ou cabeça dispostos a entender e não exigir que eu implore,
não há amor que suporte e permaneça,
não há deus que responda
não há noite plácida, de sono real e não induzido.
não há ausência dessa sensação de perigo e terror nas esquinas,
há trabalho. e confronto, e trabalho. quase escravo, se o fator tempo for levado em conta.
Então,
nunca foi sobre a poesia.
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