Uma vez, numa fase aguda da depressão, lembro que eu conversava com um amigo também deprimido, e ele me disse algo que nunca esqueci - e que sempre menciono quando o assunto é esse.
O maior problema pra compreensão da depressão é que ela não permite palavras.
Eu sei que costumamos ter momentos de profunda emoção em que as palavras nos faltam, mas é muito além disso.
Na depressão, o problema semântico se vale de duas faces: a primeira é que de fato não existem substantivos e verbos suficientemente efetivos pra descrever os estados de ânimo devastados; a segunda é que, tendo em mãos unicamente o vocabulário “comum”, as pessoas não sentem o impacto, e as descrições não bastam.
Todo mundo já se sentiu deprimido.
Todo mundo experiencia com frequência os mesmos sentimentos que assolam um depressivo.
A depressão não é sobre uma coisa nova, e sim sobre coisas que todos nós conhecemos e partilhamos - extrapoladas ao nível de sintomas, incapacitando e paralisando.
Quando as pessoas me dizem que a depressão não é tristeza, eu só concordo em parte. É tristeza também, não apenas. Mas é uma tristeza infindável, urgente e arrasadora como aquela que se abate depois de uma tragédia, e ao mesmo tempo constante e estruturada a cada minúcia sua como a melancolia diária. É a ansiedade como saber que um acidente vai destruir você e tudo que você amou exatamente agora. Mas não agora. Não agora. Ou talvez. Incerteza. Iminência. Teu corpo todo tensiona, ignora a dor do estado, você entra em uma constância de estresse e pressão, e tudo funciona como se você estivesse prestes a fugir. Nas ansiedades - pois são tantas gradações - eu descobri que o mental é nada mais que mediocremente físico: a sensação de eterna falta de ar e o incômodo agudo do coração que martela descompassado são opressores e reais da mesma maneira que o pensamento acelerado e obsessivo. É também desinteresse, tédio, cansaço. É ter o olhar plácido e vazio perdido no horizonte de um muro até que a visão desfoque e você não perceba. O tempo todo. E apesar de toda essa indisposição pra mais natural e simples das atividades, não existe sono. Não sono de verdade, biológico e reparador. Apenas alternância entre insônia irritada e minúsculos e breves comas. Uma forma diferente e dinâmica de se estar morto. É pensar no que tem de fazer, seja tomar um banho ou ir a uma festa que há algumas semanas te deixaria eufórico e sentir um relance - uma súbita percepção de se estar cansado demais. Da rotina e das fugas dela. Das pessoas, porque elas parecem tão distantes no espaço e na saúde emocional, e chegar até elas compreende esforço e contar o que acontece é impossível. De repente a convivência social vira uma coleção de desculpas necessárias.
O amor não se vai. Mas ele parece inativo, enterrado sob camadas de pele grossa, não se sabe se protegido ou em fuga. Como, como diabos eu fui capaz um dia de manusear tão naturalmente esse amor? E agora ele parece longínquo demais, e eu mal tenho mãos pra tanto- deve ser um engano.
Em geral, fluxos de consciência como esse não são entendidos. A literatura da depressão flerta com a poesia, pela liberdade e pela licença de não fazer sentido vulgarmente, ou de criar o sentido a partir da própria experiência. Pela inutilidade e pela não obrigatoriedade com o compromisso de ser aceita. Por se deslocar por um terreno voltado quase que unicamente pro interno, pro visceral.
Como já comentado na Woolf, talvez a relação entre depressão e literatura é que somente nessa se encontra a liberdade necessária à expressão do horror.
Talvez até escrevamos. Mas não falamos. No trabalho, na faculdade, na rua, em casa. O ar sussurra que é privativo e vergonhoso. Nada aponta pro momento exato em que o espectro que abarca esse desânimo múltiplo atravessa o nível de normalidade. Porque primeiro não existe um momento exato. E segundo não existe normalidade. A necessidade social de se estabelecer limites precisos entre os que devem conviver e cumprir suas tarefas e àqueles que devem ser isolados, ainda que sutilmente, é que cria o padrão de sanidade.
A semântica da doença mental é muito mais numerosa popularmente quanto à depreciação do que quanto aos elementos pra sua descrição.
Nós usamos a mesma palavra pra definir mais de 322 milhões de estados no mundo. Esse é o problema do diagnóstico seco.
É um fracasso linguístico que nos desencontra.
Então provavelmente quando eu digo “estou deprimida”, e você me responde “eu também”, embora nós entendamos o básico sobre, e estejamos absolutamente arrasados no interior desse significado, não é o bastante.
Acreditem: não estamos nunca falando da mesma coisa.
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