“Cada buraco apresenta texturas diferentes e únicas, curvas e rigidezes para proporcionar sensações intensas que são impossíveis de alcançar mesmo através da penetração real”. é essa a propaganda da Aura Dolls, fabricante de bonecas sexuais em Toronto.
já era possível escolher altura, peso (que deve variar de acordo com os seios, afinal TODAS são magras), cor e textura do cabelo, cor dos olhos, medidas e formatos de seios/cintura/quadril/bunda/coxas e até mesmo unhas, tamanho, forma e cor dos lábios vaginais, bem como do ânus. era possível, ainda, encomendar um modelo baseado em fotografias de alguém ou de um famoso. mas não basta; as bonecas sexuais agora são dotadas de IA. são várias as empresas, como a Sinthetics, que permitem que os clientes modelem, além da aparência, também a “personalidade” das bonecas (agora andróides). em 2017 foi lançada a Harmony, capaz de mexer a cabeça, os olhos, e de falar por meio de um aplicativo conectado a um tablet; o aplicativo permite aos clientes programarem a voz e o humor da boneca.
algumas dessas bonecas/andróides estão programadas para dizer “não”, simulando recusa ou contrariedade — para criar um cenário de estupro. outras são projetadas para parecer crianças.
até mesmo o Aliexpress, um dos sites de compra online mais acessado do mundo, chegou a vender bonecas sexuais personalizadas semelhantes a crianças de até três anos. as mesmas eram produzidas pela marca japonesa Trottla, criada por Shin Takagi, um pedófilo confesso; as bonecas infantis podem ser vestidas com uniformes escolares ou lingeries e roupas de couro, e nas propagandas aparecem em camas em poses que sexualizam crianças — e muitas delas têm feição de dor e choro.
agora essas bonecas podem até mesmo simular um orgasmo:
“Os computadores não têm emoções, mas minhas bonecas, sim, e seu comportamento é muito similar ao de uma mulher. Não são meros corpos em que se pode praticar o coito, é preciso excitá-las previamente. (...) Cada boneca tem três estados ou modos: amistoso, romântico e sexual, e o ideal é que se transite do primeiro ao último para que ela vá se excitando”.
é o que diz Sergi Santos, criador da boneca/androide da empresa Syntheas Amatus: ela fala até 6000 frases e possui sensores nas mãos, quadris, seios, boca, rosto, vagina e ânus, além de ser equipada com um vibrador na vagina que é ativado quando o usuário souber “excitá-la” (atingir o nível de estímulo programado). isso porque, quanto à IA, essas androides têm quatro níveis: o primeiro é o de memória, que permite armazenamento de informação por até um mês; o segundo é a programação chamada por Santos de “libido”, e é ela que determinará diversas modalidades de orgasmo (como suave, médio ou explosivo). o terceiro e quarto níveis dizem respeito à capacidade de predizer quando o homem vai ejacular. como se já não bastasse, Santos pretende imbuí-las das habilidades de masturbar e emitir calor por meio TPE (termoplástico elastômero).
vale mencionar que Santos confessou ao The Sun que para ele “humanos não são o suficiente”, e por isso criou as bonecas de acordo com suas preferências sexuais, já que a esposa não o atendia como ele desejava. ele acredita que homens e mulheres “enxergam o sexo de uma maneira diferente” porque “homens querem mais sexo” e “um homem quer sentir, no geral, que a mulher está desesperada para fazer sexo com ele”.
a tendência das inovações tecnológicas de IA sobre os brinquedos pornográficos parece ser “torná-los aptos para um relacionamento”, como afirma Loui Love, o fundador da empresa chinesa Silicone Lovers.
e pra quem argumenta sobre haver apenas uma minoria com poder aquisitivo suficiente para o acesso, há modelos chineses que podem ser adquiridos por 1.000 euros (cerca de 3.750 reais).
a verdade é que essa indústria se desenvolve e se expande apoiada no panorama social de individualismo e propriedade, aproveitando a solidão, a tendência ao isolamento e a crescente perda de habilidades sociais das pessoas.
as bonecas/andróides são sempre acessíveis sexualmente, lindas — isto é, rigorosamente de acordo com os padrões hipersexualizantes e objetificantes —, não têm pelos nem poros nem manchas e tampouco opiniões, não envelhecem e obedecem a todas as preferências específicas (seja aparência ou “personalidade”) do seu proprietário.
a indústria por trás disso não é outra senão a pornográfica, tão perversa que usa de argumentos superficialmente convincentes pra tornar aceitável que homens construam ao seu gosto exemplares de mulheres “perfeitas” para que realizem tudo aquilo que não encontraram, não aceitaram, ou não podem fazer com mulheres reais e comuns.
o orgasmo programado não é sobre prazer sexual feminino ou sobre uma espécie de educação sexual que ensina aos homens como fazer mulheres gozarem, mas sim sobre uma fantasia sexual e egoica de “ser capaz” de causar um orgasmo.
um desses argumentos é dado pelo próprio Santos:
“As bonecas sexuais podem acabar com a prostituição e o trabalho sexual, reduzirão o contágio de doenças venéreas e tenho certeza de que muitos se sentirão mais seguros com estes robôs”.
a ideia de bordeis de bonecas sexuais (como já existem, por exemplo, na França) parece sedutora por não envolver exploração e tráfico de mulheres humanas, mas é preciso ir mais a fundo na análise; a oferta crescente de bonecas sexuais não interfere de maneira alguma na exploração e tráfico sexuais — afinal, esse é um dos mercados mais lucrativos do panorama capitalista; não se pode esquecer que mulheres pobres, famintas, abandonadas e pertencentes a minorias sociais são incontáveis, vulneráveis, e, claro, de menor custo que andróides; além disso, o bordel de bonecas responde à mesma premissa que, de tão naturalizada, nem chega a ser percebida: a de que o sexo é um direito dos homens e um dever das mulheres, e se elas não podem corresponder às exigências sexuais masculinas, apenas cria-se uma “mulher” que o faça.
talvez um dos aspectos mais doentios seja que as bonecas podem ser programadas para fingir não-consentimento, tornando possível simular estupros; os defensores argumentam que isso diminuiria o número de crimes sexuais, como se a violência sexual fosse um instinto irrefreável masculino e não uma escolha deliberada. além disso, já existe uma classe de mulheres tratada pelo patriarcado capitalista como “liberadas para uso” — as prostitutas, de preço e quantidade muito mais satisfatórios — e isso nunca impediu ou diminuiu estupros e outras formas de violência.
é esse também o argumento que justifica a produção de bonecas sexuais infantis, pois supostamente atenderiam às necessidades de pedófilos, diminuindo assim o número de abusos sexuais infantis. na verdade, isso parece dizer que pedófilos têm de ter sua sexualização de crianças atendida de alguma maneira (como por meio da pornografia), e desvia do foco, que deveria ser a busca por tratamento, e não por paliativos. não há provas suficientes sobre a afirmação de defesa, e o perfil dos compradores apreendidos sugere que muitos já têm condenações anteriores por abuso ou pornografia infantis. sem mencionar que é possível, ainda, enquadrar as bonecas sexuais infantis como pornografia infantil.
de acordo com Jon Brown, da Sociedade Nacional de Prevenção à Crueldade contra Crianças, “não há nenhuma evidência que suporte a ideia de que o uso das chamadas bonecas sexuais infantis ajude a prevenir um abusador em potencial de cometir a ofensa contra crianças reais. E, na verdade, há um risco de que essas pessoas usando bonecas sexuais infantis ou objetos realistas possam se tornar dessensibilizadas e seu comportamento se torne normalizado para elas, então elas podem continuar machucando crianças, como é frequentemente o caso daqueles que vêem imagens indecentes.”
um exemplo é o caso do britânico Turner (72), preso por importar uma boneca sexual infantil chinesa: quando a polícia vistoriou sua casa, foram encontradas mais de 34 mil imagens indecentes de crianças, de 3 a 16 anos.
essas justificativas apenas normalizam e permitem às pessoas a prática de comportamentos que devem ser apenas erradicados.
outro argumento de defesa é o de que essas bonecas serviriam às necessidades sociais de homens solitários e carentes e/ou com dificuldade de envolvimento com as pessoas; as propagandas parecem dizer: 'você não tem amigos? você não tem um companheiro de vida? não se preocupe, podemos criar uma relação artificial para você', quando na verdade a atenção deveria se voltar para os motivos que conduzem a esse isolamento social — que podem ser desde uma dificuldade afetiva tratável a hábitos repelentes e ofensivos. um problema de relacionamento na vida real deve ser tratado a partir de outras pessoas, e não da ideia de que um robô pode suprir essas necessidades sendo “tão bom” quanto uma pessoa. além disso, o que praticar/treinar com máquinas subservientes e sem sentimentos, pensamentos ou desejos próprios pode ensinar sobre relacionamentos com mulheres e pessoas em geral? esse argumento do “companheirismo” admite companhia como uma via unidirecional para homens — como se desafios, desentendimentos, sentimentos e pensamentos não fossem características valiosas ou desejadas em uma mulher.
as bonecas significam, ainda, que menos mulheres reais seriam cogitadas para um relacionamento exatamente pelo que as tornam seres humanos e mulheres, visto que os critérios ideais parecem transitar entre a ausência de livre-arbítrio e uma aparência “perfeita” — afinal, os modelos perpetuam a opressão pela feminilidade, desde a maquiagem, as unhas pintadas e as medidas corporais idealizadas à passividade e permissividade incondicional; embora os compradores as encomendem e as personalizem, não existe uma consistente variação na aparência: a maioria é branca, não há gordas, nem velhas, nem deficientes, nem qualquer mulher que escape um pouco ao padrão instaurado.
“Harmony sorri, pisca e franze a testa. Ela pode manter uma conversa, contar piadas e citar Shakespeare. Ela recordará seu aniversário... o que você gosta de comer e os nomes de seus irmãos e irmãs. Ela pode manter uma conversa sobre música, filmes e livros. E, claro, Harmony terá relações sexuais com você sempre que quiser.”
quando criadores de andróides sexuais afirmam que os mesmos também servem para relacionamentos, pois em muito se assemelham a mulheres reais, implicitamente afirmam também que a mulher ideal deve corresponder apenas aos requisitos de disponibilidade sexual, poucos sons e frases que assegurem o ego do comprador, e maneiras limitadas (que eles chamam de personalidade) totalmente adaptáveis às demandas; há inclusive quem defenda a autorização do casamento com esses andróides, estupidamente usando como exemplo o casamento entre pessoas do mesmo sexo (como se fosse remotamente comparável).
é muito provável, que, assim como a pornografia, os andróides sexuais se tornem um vício ou assumam um caráter obsessivo e exclusivo, não dando espaço para outras práticas e substituindo relações humanas.
há algo profundamente errado em um mercado que pretende atender às demandas sexuais, mas é integralmente construído por homens (e diga-se de passagem, indivíduos doentios como Santos e Takagi) para homens; sim, são produzidos bonecos masculinos, mas em número mínimo: mulheres não os compram. por que será?
talvez porque até hoje foram os homens que defenderam a noção de sexo como domínio, auto-satisfação e impessoalidade, capazes de abrir mão de proximidade emocional, intimidade, subjetividade alheia; a mensagem é que o sexo é uma coisa que os homens recebem ou pegam das mulheres, e não algo que deve ser mutuamente apreciado por duas pessoas, e que exige cuidados, compaixão, respeito, empatia.
uma das comparações mais usadas (e injustas!) se refere aos vibradores femininos; acontece que (1) vibradores não são usados (e publicizados) como substituintes de relações reais (2) trata-se de outro contexto social, em que a sexualidade feminina é reprimida e condenada de modo que às mulheres não pertence o próprio prazer, e no qual os homens não sabem nada sobre prazer e orgasmo femininos (3) vibradores não objetificam homens. não são nada mais que objetos sexuais que não ameaçam a realidade afetiva e social e não endossam qualquer tipo de violência.
tomando como exemplo a boneca sexual “Samantha”: exibida no Festival de Arte Electrônica de Linz, ela foi severamente “molestada” a ponto de ser enviada de volta para sua empresa para ser reparada, ainda que Samantha, assim como varias outras bonecas, seja projetada para ser resistente a atos brutais. pensando nisso, em 2016 houve debates acalorados sobre questões éticas acerca da necessidade de reconhecer direitos de robôs; embora se mencione “direitos de robôs”, a expressão não passa de uma desculpa: robôs não possuem status moral, de modo que seus “direitos”, são, na verdade, uma legislação que tenta instituir limites para a violência que se pode praticar contra algo que simula uma mulher humana.
esse futuro próximo em que andróides sexuais são eleitos como companheiros válidos afirma ferozmente que homens não precisam do contato físico ou trabalhar as habilidades sociais, compartilhando e experimentando o prazer psicológico gerado pelo sexo ou pelo fato de se sentir desejado por alguém; esses objetos/produtos não são mais que outra modalidade de objetificação feminina: eles se aproximam não de mulheres, mas de desejos ideais personificados; não são produzidos para atender às “necessidades sexuais” masculinas, mas sim às suas necessidades de violência e perversão. e definitivamente não desfazem a violência ou a dominação, simplesmente a normalizam.
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